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Violência e Impunidade da Polícia Militar -
Críticas e Sugestões

(Comentários ao Cap. III do "Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos")

 

Martinho de Moraes Netto
(1º Ten PM da PMESP - Acad.
Ciências Jurídicas PUC-SP)

Introdução


          Não é comum o diálogo entre os meios acadêmico e policial: antigos preconceitos mútuos tendem a descartar "a priori" a possibilidade de ouvir, condição básica, afinal, de todo diálogo. Pessoalmente, sinto-me integrado nos dois meios e, portanto, à vontade para tratar de questões - como a do presente artigo - que parecem situar-se numa interface, aparentemente problemática. Agradeço à editoria de Videtur pelo espaço acadêmico e pela abertura de propiciar esse diálogo.

          A Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi instituída pelo Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), no qual os Estados Americanos signatários, propuseram-se meios para a busca concreta de "um regime de liberdade pessoal e justiça social, fundado no respeito dos direitos humanos essenciais" para todo o Continente. O Pacto pretende, seguindo a orientação da Declaração Universal de Direitos do Homem e da Carta de Organização dos Estados Americanos, promover de forma convencional, a proteção internacional dos direitos essenciais da pessoa humana, por serem estes, independentes de nacionalidade.

          O Pacto expõe os deveres dos Estados e os direitos protegidos, que por sua vez estão divididos em Direitos Civis e Políticos e Direitos Econômicos e Sociais. Em sua segunda parte, estabelece os Meios de Proteção, os Órgãos Responsáveis, suas funções e competências. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, juntamente com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, são os organismos competentes para assuntos relacionados com o cumprimento dos compromissos assumidos pelos Estados signatários da Convenção. A Comissão tem função consultiva; a Corte, jurisdicional.

          O Brasil ratificou somente a competência da Comissão, não reconhecendo, portanto, a Corte Internacional. A Comissão tem como função principal "promover a observância e a defesa dos direitos humanos" estimulando sua consciência nos povos, formulado recomendações aos governos, atendendo consultas formuladas por Estados-membros, preparando relatórios que entenda convenientes, solicitando informações aos Estados-membros etc. A Comissão também examina comunicações de violação de direitos humanos ocorridas em Estados-membros, apresentadas por qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou mesmo por entidade não governamental legalmente reconhecida. Para que seja admitida uma petição ou comunicação, esta deverá obrigatoriamente provar que esgotou todos os recursos da jurisdição interna de seu país e que decorreram, no máximo, seis meses da decisão final.

          Recebida qualquer denúncia, a Comissão verificará a admissibilidade da petição e solicitará informações ao Estado-membro ao qual pertença a autoridade apontada como reponsável pelas violações. Se a petição for admitida e o expediente não for arquivado por motivo superveniente, a Comissão procederá um exame do exposto na petição e, se necessário, realizará uma investigação, onde o Estado deverá auxiliá-la proporcionando todas as facilidades. Quando tratar-se de casos graves e urgentes, poderá realizar a investigação tão somente com a apresentação da petição, mediante prévio consentimento do Estado envolvido.

          Caso se chegue a uma solução amistosa, a Comissão redigirá um relatório, contendo a exposição dos fatos e a solução alcançada; dentro, então do prazo de três meses o Estado interessado deverá dar solução, cumprindo o convencionado no relatório.

          Neste quadro, a violência policial tornou-se assunto de um relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O relatório possui dez capítulos, dos quais o mais longo (cap.III ) trata do tema citado. Dada a importância do assunto, e do interesse geral que normalmente suscita, escolhemos este tema para uma pequena análise, dentro de um enfoque diverso. Por ter notado que o relatório não buscou os argumentos das polícias, nem analisou o problema com a profundidade e isenção que merece, procuramos aqui trazer alguns elementos que possam esclarecer melhor a questão, numa visão ‘de dentro para fora’. Evidentemente a preocupação de proporcionar uma polícia mais humana e cidadã, é salutar, mas temos percebido que esta bandeira tem acobertado uma velada manobra de desmoralização dos órgãos policiais, ao restringir a óptica a fatos negativos, quando os positivos são de longe mais numerosos.

 

1. Visão Geral do Relatório

          O relatório está dividido em quatro partes, cada uma delas apresentando o problema em tópicos: a parte "A" trata do tema Violência e Impunidade Policial, começando por apresentar o problema como atinente às forças de segurança brasileiras em geral - Polícia Federal, Polícia Civil Estadual e Polícia Militar Estadual - passando em seguida a concentrar as atenções nas forças militares estaduais. Traça em rápido quadro estrutural da Segurança Pública em nível nacional, externando a competência constitucional de cada força.

          Ainda na parte "A" o relatório passa a demonstrar o quadro da violência policial, especialmente ligada às Polícias Militares, em todo o território nacional, apresentando, como informações, estatísticas de homicídios de 1994 que atribuem 8% às polícias militares e 4% a "esquadrões da morte". Fala-se de execuções extrajudiciais e de atuação indulgente da Justiça Militar.

          Passa-se a uma crítica do caráter militar das Polícias Militares, atrelando tal caráter a uma seqüela do Regime Militar, atribuindo-lhe, por conseqüência, a responsabilidade pela atuação violenta da Polícia.

          Atribui à Polícia Militar abusos de toda ordem, bem como atuações preconceituosas onde negros, pobres, desempregados e crianças de rua, são o alvo principal. Chega-se a dizer que as autoridades policiais incentivam e apoiam publicamente tais abusos. Toca-se também na questão da confiança e credibilidade tributada pela população às PPMM, mostrando insegurança daquela em relação a estas.

          Por fim, trata a parte "A" da dificuldade de investigação desta violência policial, atribuída a um corporativismo "interna corporis", e à "lei do silêncio" que vigora entre as testemunhas. Também fala da lentidão do processo e "da desconfiança da população". Termina a parte "A" apresentando as iniciativas dos governos estaduais, e da própria União, visando a redução da impunidade e da violência.

          A parte "B" cuida dos esquadrões da morte e grupos de extermínio. Seriam equipes constituídas por antigos oficiais da Polícia Militar, com o fim de combater o crime e "fazer justiça". Tais grupos são compostos por policiais da ativa, ou expulsos, e por organizações criminosas envolvidas ou não no tráfico de entorpecentes.

          O alvo de tais grupos são adultos e crianças envolvidos com o mundo do crime ou considerados uma ameaça social. Procuram impedir o aumento da criminalidade e a multiplicação de pessoas consideradas indesejáveis. Os grupos muitas vezes estão ligados a políticos e agem impunemente. O relatório atribui a existência de tais grupos à ineficiência policial e ao descrédito da Justiça junto à população quanto à Justiça. O próprio relatório, ao analisar casos de linchamento, desmente este fato ao concluir que a eficiência policial foi responsável pelo impedimento de 54% de 2/3 dos casos avaliados.

          A parte "C" trata exclusivamente da impunidade policial. Apresenta os sistemas de controle interno e externo das corporações - Corregedorias, Ouvidoria da Polícia/SP, Ministério Público Militar e Comum, Justiça Militar - dando especial ênfase à Ouvidoria criada em São Paulo, órgão complementar da polícia, dirigida por um representante civil e destinada ao controle externo da PM. Salienta que coincide com a sua criação, a queda do número de mortes causadas por policiais militares. Existem outros órgãos de controle, que não são mencionados pelo relatório, e que no entanto são mais eficazes e expressivos; serão abordados adiante.

          Quanto à Justiça Militar, esclarece sua competência - processar e julgar os integrantes das PPMM acusados pela prática de crimes militares -, seus princípios - hierarquia e disciplina - , sua normatização, e a recente transferência de competência para a Justiça Comum dos crimes dolosos contra a vida. Os TJMs Estaduais foram criados pela Emenda Constitucional nº 7 de 1977, sob a égide do regime militar; conforme o relatório da Comissão esta mudança é responsável pelo aumento da criminalidade policial, bem como pela sua impunidade.

          A Comissão classifica a Justiça Militar como "foro de exceção", salientando que a Constituição Federal de 1988 ratificou tal "foro de exceção". Passa então a esclarecer a estrutura de julgamento: na 1ª instância constitui-se em uma auditoria composta por um Conselho; tal Conselho é integrado por quatro oficiais e um juiz togado. Se verá adiante que esta estrutura é muito semelhante à do Tribunal do Júri, possuindo a mesma filosofia, que nada tem de atentatória, antes visa garantir uma Justiça mais perfeita e completa. Fala-se da lentidão da Justiça Militar - que nisto nada difere da Justiça Comum - apresentando como motivos o excesso de trabalho, a escassez de juizes e fiscais, a excessiva formalidade dos procedimentos e dos incidentes dilatórios - motivos idênticos aos que causam a lentidão da Justiça Comum.

          O relatório acredita que os TJMs são indulgentes e geram impunidade nas PPMM, o que favorece o crescimento da violência policial. Fala-se de inquéritos parciais, mal elaborados, com poucas diligências o que dificulta mais ainda o prosseguimento dos processos, fato que não corresponde à verdade. No Estado de São Paulo, Integrantes do Ministério Público Comum têm se manifestado no sentido de que os Inquéritos da Polícia Militar são em regra minuciosos e bem elaborados; outrossim a Corregedoria da Polícia Militar e o Ministério Público Castrense exercem rigorosa fiscalização sobre os procedimentos investigatórios.

             Apresenta-se o projeto de lei do Deputado Hélio Bicudo, que pretende que os Policiais Militares deixem de ser considerados militares, e passem a ser julgados pela Justiça Comum para todo e qualquer crime. E termina abordando as mudanças do Código Penal Militar e apresentando críticas.

          A parte "D" do relatório apresenta as conclusões e sugestões, em grande parte aplicados, constantes do Programa Nacional de Direitos Humanos tais como: a) incluir nos cursos das academias policiais, matérias específicas relacionadas com o respeito aos direitos humanos; b) criação de corregedorias; d) instauração de processo apuratórios de imediato e afastamento das atividades de policiais acusados de violação de Direitos Humanos. Outras sugestões estão ainda em projeto, mas sua implementação é próxima.

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