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(notas [1] da conferência proferida no Seminário Internacional Cristianismo,
Filosofia, Educação e Arte III
–  Fac. de Educação
da Universidade de São Paulo, 25-6-02)

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

Não é objetivo desta conferência considerar sistematicamente a virtude da prudentia em Tomás de Aquino: tal tarefa é sem dúvida importante e já foi empreendida por especialistas, de modo adequado. O que, sim, interessa aqui é apontar um problema mais geral na fronteira entre ética e linguagem, e destacar alguns aspectos que evidenciam a atualidade da doutrina de Tomás sobre a virtude da prudentia (e a memoria e a docilitas): sua relação com a problemática de nosso tempo, seu "alcance existencial" e pedagógico.

Linguagem e percepção da realidade

O relacionamento entre pensamento e linguagem é tema básico para a compreensão da ética e da educação moral nas análises que Tomás de Aquino faz das virtudes cardeais e da prudentia, de extrema importância para o homem de hoje.

O pensamento e a vida estão mais ligados à linguagem do que à primeira vista supomos. Para além do âmbito da mera comunicação, a força viva da palavra não só transmite, mas até mesmo gera e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos, o que podemos pensar e sentir.

Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. Quando a língua viva dispõe de uma determinada palavra (e quando dela nos apropriamos...) é possível a configuração de uma realidade que - precisamente pela palavra - emerge da massa informe de experiências confusas e desconexas que vamos acumulando. Em geral, vale a regra: nossa possibilidade de "visualização" da realidade depende  do léxico vivo da língua.

E, reciprocamente, esse léxico só surge e mantém seu vigor graças ao interesse vital de uma comunidade pela realidade em questão. Para o brasileiro médio, por exemplo - com a devida licença do conselheiro Acácio -, é muito mais fácil a captação do que ocorre numa partida de futebol (de lances geniais a pressões psicológicas sutis) do que, digamos, no golfe. Pois o interesse vivo pelo futebol é tão intenso e estendido que dispomos de um léxico de "alta resolução". Variações em um determinado tipo de jogada - para as quais outras línguas mal dispõem de um nome próprio - recebem em nosso idioma denominações precisas: bicicleta, meia-bicicleta, puxeta e voleio...! E - como na interação dialética da peça publicitária: "o biscoito vende mais por que é fresquinho ou é fresquinho por que vende mais?" - é em virtude dessa riqueza de léxico que o futebol se mantém como realidade viva entre nós.

Neste aspecto fundamental da educação moral, um dos principais pensadores contemporâneos, Josef Pieper, ao longo de seu clássico tratado sobre as virtudes cardeais, Das Viergespann [2] , insiste em que há mútua alimentação entre a percepção e vivenciamento da realidade moral e a existência de linguagem viva. O empobrecimento do léxico moral é, hoje, um dos mais agudos problemas da educação moral, na medida em que gera um círculo, literalmente, vicioso: a falta de linguagem viva embota a visão e o vivenciamento da realidade moral; o definhamento da realidade esvazia (ou deforma) as palavras... Faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos acesso à realidade.

Além disso, o relacionamento entre ética e linguagem torna-se ainda mais problemático por conta da conhecida "lei" - C. S. Lewis estuda isto brilhantemente em seu clássico Studies in Words - que registra a inflação semântica das palavras que exprimem realidades morais. O pior é que não se trata só de esvaziamento das palavras fundamentais, mas, por vezes, de autêntica inversão de polaridade: a palavra que designava uma virtude passa a designar um vício. É o que ocorreu, por exemplo, com a palavra "simples" (simplex) e com a palavra "prudência" (prudentia).

Pois, como vimos no artigo anterior, a virtude da prudentia (recta ratio agibilium), a arte de tomar a decisão certa, é o próprio centro da vida moral, atuando em dois âmbitos literalmente decisivos: ela é cognoscitiva e é também prescritiva: trata-se de conhecer a realidade (recta ratio) concreta para tirar daí a decisão de ação (agibilium). E a clássica prudência, de principal, dentre as virtudes cardeais - mãe (genitrix virtutum) e guia (auriga virtutum) das virtudes -, passou a significar a indecisão de um cálculo egoísta...

Para bem compreendermos o alcance da virtude da prudência, são necessários alguns esclarecimentos conceituais.

As partes quasi integrais da Prudência

Santo Tomás, precisamente a propósito da prudência, retoma, exemplificando, os três tipos de partes das virtudes cardeais. E diz que há partes integrais, como a parede ou o teto são partes da casa; subjetivas, como "boi" e "leão" em relação ao "ser animal", e potenciais, como a dimensão nutritiva ou sensitiva em relação à alma (II-II,48,1).

Prossegue, explicando que, no caso das virtudes, partes integrais [3] são as que concorrem para o ato perfeito da virtude (do mesmo modo que, digamos, uma casa sem teto não seria uma casa completa).

Já as partes subjetivas são as diversas espécies da virtude; a prudência pode voltar-se para a boa direção de si mesmo ou do coletivo (neste caso, Tomás analisa a prudências militar, a doméstica e a política).

As partes potenciais são virtudes adjuntas que se dirigem a atos secundários, que não possuem toda a virtualidade da virtude principal.

Ainda em II-II, 48, 1, Tomás enumera as partes da prudência.

Destacaremos aqui duas virtudes dentre as cinco partes quasi integrais da prudência em sua dimensão cognoscitiva: a memória (memoria) e a docilidade (docilitas).

As outras partes são:

- A inteligência (intellectus), entendida não enquanto faculdade intelectiva, nem enquanto cognoscitiva de universais, mas como uma "outra inteligência" (alius intellectus) [4] , que conhece a outra "ponta" (extremi): um primeiro singular e contingente operável, a menor do silogismo da prudentia, que deve ser particular (II-II,49,2, c e ad 1). Se a memória diz respeito ao passado, o intellectus refere-se ao presente "operável".

- A solertia, tal como a docilitas, refere-se à aquisição de uma reta opinião. Ao contrário desta, porém, dá-se não por meio de ensinamento de outro, mas per se inveniendo, com rápida e fácil descoberta do meio (II-II, 49, 4).

- Finalmente (II-II, 49, 5), a ratio, razão: não enquanto faculdade, mas enquanto "raciocínio" sobre os casos particulares e incertos.

Prudência e contingência

Tomás nos artigos 1 a 5 (de II-II, 49) trata, em particular, de cada uma daquelas cinco virtudes - partes quasi integrais da prudência em sua dimensão cognoscitiva (das quais interessam-nos particularmente a memoria e a docilitas). Uma constante essencial, nesses artigos, é o fato de que a prudência versa sobre ações contingentes.

Assim, no artigo 1, dedicado à virtude da memoria, Tomás observa que não pode o homem reger-se por verdades necessárias, mas somente pelo que acontece in pluribus (geralmente). Note-se que esta é também a razão da insegurança em tantas decisões humanas: a prudência traz consigo o enfrentamento do peso da incerteza, que tende a paralisar os imprudentes [5] .

Como já apontávamos em artigo anterior, é dessa dramática imprudência da indecisão, que tratam alguns clássicos da literatura: do "to be or not to be..." do Hamlet de Shakespeare aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer decisão), passando pelo Grande Inquisidor de Dostoiévski, que descreve "o homem esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher" [6] e apresenta a massa que abdicou da prudentia e se deixa escravizar, preferindo "até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal" [7] . E, assim, os subjugados declaram de bom grado: "Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis" [8] .

Cabe ressaltar - porque é de especial interesse para a educação - a central afirmação de S. Tomás: "A prudência não é inata em nós; ela procede da educação e da experiência" [9] .

Memória e Prudência

A prudência versa sobre o contingente e, portanto, é pela experiência (per experimentum) que deve o prudente guiar-se, pois, "diz o Filósofo", "a virtude intelectual origina-se e desenvolve-se com a experiência e com o tempo". Mas a experiência, por sua vez, não é senão memória acumulada... [10] .

Tomás, no ad 2 de II-II, 49, 1, aponta as quatro leis fundamentais da educação da memória:

1) Estabelecer semelhanças (similitudines) adequadas para o que se quer recordar. Mas, adverte, não semelhanças usuais, pois guardamos melhor o invulgar. E, assim, prossegue o Aquinate, é necessário encontrar semelhanças ou imagens, pois as realidades espirituais facilmente se esvaem se não estão "amarradas" a alguma semelhança corpórea (nisi quibusdam similitudinibus corporalis quasi alligentur). E isto, conclui, porque o conhecimento humano é mais forte com relação ao sensível.

2) Na segunda lei, Tomás afirma ser necessário organizar e dispor em ordem aquilo que se quer lembrar, de tal modo que haja uma associação por encadeamento.

3) É necessário, prossegue o Aquinate ao enunciar a terceira lei, que o homem tenha solicitude e afeto para com aquilo que quer recordar [11] , pois onde não há interesse e amor, não se fixam as impressões na alma.

Como bom pedagogo, Tomás - ao falar do "dom da palavra" em II-II, 177, 1 - diz que aquele que ensina deve tocar o sentimento, mover ao afeto e isto acontece quando faz com que o discípulo "seja movido ao amor das realidades significadas pelas palavras e queira pô-las em prática: e isto ocorre quando a formulação é tal, que o ouvinte se emociona" (quod aliquis amet ea quae verbis significantur, et velit ea implere: quod fit dum aliquis sic loquitur quod auditorem flectat).

4) Finalmente, diz Tomás ao enunciar a quarta lei da memória, é necessário meditar freqüentemente sobre o que queremos guardar na memória. E cita o provérbio: "o costume é como uma natureza". "Daí que nos lembramos rapidamente do que muitas vezes consideramos, associando, como que naturalmente, uma coisa a outra".

Estas duas últimas leis enunciadas por Tomás, tal como no caso da prudência, unem a ordem intelectual à moral. A memoria, mais do que uma questão de técnicas mnemônicas, liga-se a um saber pessoal e coletivo. Com muita propriedade, lembra Pieper: "Por memória entende (Tomás) algo mais do que, por assim dizer, a mera faculdade natural de lembrar-se (...). A ‘boa’ memória, entendida como requisito de perfeição da prudência, não significa senão uma memória ‘fiel ao ser'. (...) O falseamento da recordação, em oposição à realidade, mediante o sim ou o não da vontade, constitui a mais típica forma de perversão da prudência" [12] .

O artigo de Tomás sobre a memoria fecha-se com a resposta à terceira objeção, a objeção de que a memória não poderia ser parte da prudência, pelo fato tão simples de que a prudência é para o "agível" (operabilium) do futuro, enquanto a memória é do passado. A resposta de Tomás a esta objeção associa o passado ao futuro: "É mister tomar do passado argumentos para o futuro. E, assim, a memória do passado é necessária para bem aconselhar-nos sobre o futuro".

A docilitas

Do mesmo modo que pode haver um falseamento da lembrança, pode se dar também um falseamento da percepção da realidade presente, que se recusa à objetividade.

Daí que, no art.3 (sempre em II-II,49), dedicado à outra parte quasi integral da prudência, a docilitas, Tomás afirme a necessidade dessa disposição de abertura e acolhimento para aprender, a que se opõem a auto-suficiência e a indiferença negligente (ad 2). O Aquinate volta a lembrar que a prudência tem por objeto ações particulares e que estas se dão em diversidade praticamente infinita (quasi infinitae diversitates). Assim, para exercer a prudência, não pode um indivíduo sozinho, em pouco tempo, considerá-las todas. Tomás conclui, remetendo ao cabedal da experiência coletiva: "É necessário considerar atentamente (attendere) as opiniões e sentenças (mesmo não demonstradas) dos anciãos e dos experientes, não menos do que as verdades demonstradas, pois, pela experiência, eles penetram nos princípios".

Pieper indica o sentido do conceito de docilidade em S. Tomás: "Sem docilitas não pode haver prudência perfeita. Mas a docilitas não é evidentemente a submissão e o zelo superficial do ‘bom discípulo’. O que o termo designa é aquela disponibilidade leal que, em face da multiplicidade realista das coisas e das situações experimentadas, renuncia a refugiar-se estupidamente na absurda autarquia dum saber fictício. O que o termo designa é aquela capacidade de se deixar ensinar, capacidade que brote, não de uma vaga modéstia, mas simplesmente do desejo verdadeiro - o que já, de resto, necessariamente, contém a autêntica humildade. A falta de abertura e a auto-suficiência intelectual são, no fundo, formas de resistência à verdade das coisas reais; ambas assentam na incapacidade de o sujeito conseguir fazer calar o seu ‘interesse’- condição imprescindível da apreensão da realidade" [13] .

Algumas implicações pedagógicas

Após esta breve introdução conceitual, passemos a discutir algumas conseqüências existenciais e pedagógicas.

Primeiramente, o caráter dramático da Prudência. Ela é uma virtude que - como insiste Tomás - versa sobre o "aqui e o agora", sobre a realidade contingente, singular, infinitamente variada, com a qual eu me encontro e requer de mim uma decisão. Para decidir corretamente, devo enxergar a verdade, o logos, o que a realidade exige de mim. Trata-se, portanto, antes de mais nada, de uma clarividência, de uma simplicitas, de uma capacidade intelectual de ver o real. Mas não de um real teórico, teoremático; e sim do concreto: saber discernir no "aqui e agora" o que vai me realizar ou o que vai me destruir... Tomás, sempre atento à linguagem, dirá que prudens vem de porro uidens, “ver longe”. Nesse sentido, há uma sugestiva expressão que se usa muito em espanhol: "las veo venir", equivalente aos nossos: "já vi esse filme antes", "já dá para ver onde isto vai parar"...

Esse caráter dramático da prudentia manifesta-se no fato de que ela, sim, é uma atitude racional, é a limpidez da inteligência que vê o real (e isto é uma qualidade moral: só o homem de coração puro vê o real), mas não há critérios operacionais para determinar qual a decisão certa. Suponhamos, por exemplo, que aceitemos os dez mandamentos como guia moral e que estejamos todos de acordo em que é necessário, digamos, amar pai e mãe... Porém, como realizar este “amar pai e mãe” na situação concreta em que estes pais reais - Sr. João e Da. Maria - se encontram no aqui e no agora: o que é o melhor, objetiva e concretamente, para eles? Oferecer-lhes todas as comodidades, poupando-lhes todo trabalho ou deixá-los que se ocupem de suas tarefas para que não caiam numa torpe alienação?

A condição humana é tal que - muitas vezes - não dispomos de regras operacionais concretas: há um certo e um errado objetivos, um “to be or not to be” pendente de nossas decisões, mas não há regra operacional. Tal como para o bom lance no xadrez, há até critérios objetivos... mas não operacionais!

Nesse sentido, está a agudíssima página de Guimarães Rosa - todo um tratado de filosofia da educação moral na boca do jagunço Riobaldo em Grande Sertão: Veredas (Rio , José Olympio, 5a. ed., p. 366):

"Sempre sei, realmente. Só o que eu quis, todo o tempo, o que eu pelejei para achar, era uma só coisa - a inteira - cujo significado e vislumbrado dela eu vejo que sempre tive. A que era: que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver - e essa pauta cada um tem - mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber? Mas, esse norteado, tem. Tem que ter. Se não, a vida de todos ficava sendo sempre o confuso dessa doideira que é. E que: para cada dia, e cada hora, só uma ação possível da gente é que consegue ser a certa. Aquilo está no encoberto: mas, fora dessa conseqüência, tudo o que eu fizer, o que o senhor fizer, o que o beltrano fizer, o que todo-o-mundo fizer, ou deixar de fazer, fica sendo falso, e é o errado. Ah, porque aquela outra é a lei, escondida e vivível mas não achável, do verdadeiro viver: que para cada pessoa, sua continuação, já foi projetada, como o que se põe, em teatro, para cada representador - sua parte, que antes já foi inventada, num papel...".

Por mais que nosso tempo insista em querer relativizar a verdade, no fundo sabemos que há certo e “errados” objetivos e que a decisão do agir é um problema de ratio, de recta ratio... Quando, diante de uma ação, perguntamos “por quê?”, estamos perguntando é pela razão (reason, raison...): “Por que razão você fez isto?”. E o mesmo ocorre quando, diante de uma ação, dizemos: “É, você tem razão...”, “está coberto de razão”, etc. E para uma ação que é um grave mal moral, dizemos: “Que absurdo!!!”.

Isto não quer dizer que a pessoa tenha sempre uma justificativa racional pronta, consciente para cada ato. A prudência decide bem, mas com a espontaneidade da virtude. Aliás, segundo Tomás, a função da virtude (como a de todo hábito em geral) é precisamente a de permitir realizar o ato com facilidade, “espontaneamente”, com um certo “automatismo” que não tira a liberdade, antes pelo contrário... (quem objetaria a espontaneidade adquirida - após árduos esforços - dos hábitos para extrair acordes do piano, falar uma língua estrangeira ou andar de bicicleta?).

Seja como for, não deixa de ser inquietante que na lingugaem quotidiana "razão" vá dando lugar a expressões a-racionais: “Não estou a fim...!”, "sei lá...", etc. (por outro lado, nossa gíria também tem tiradas geniais, como na expressão que resume toda a doutrina da prudentia - e seu enlace entre Ser-Verdade-Bem - em três palavras: “Cai Na Real!”).

Por essa razão (com perdão pelo jogo de palavras...), para os antigos, que bem conheciam o ser humano, a virtude da Prudentia era também designada originariamente por discretio, discernimento, uma virtude difícil porque requer (entre outras qualidades) experiência e memória, mas também objetividade da inteligência. Baseados em quê tomamos nossas decisões? Quando não há a simplicidade que se volta para a realidade como único ponto decisivo na decisão, acabamos decidindo com base em diversos outros fatores: por preconceitos, por interesses interesseiros, por impulso egoísta, por inveja ou por qualquer outro vício... Nesse sentido, já a Bíblia (Eclo 37, 11) adverte que não se deve pedir conselho... “...a uma mulher sobre sua rival; ao covarde sobre a guerra; ao invejoso sobre a gratidão; ao preguiçoso sobre o trabalho; etc.”

É interessante observar que, desde a tenra infância, o drama da decisão, da prudentia, nos era proposto sob diversas formas. Éramos advertidos de que a vida - fortuna velut luna... - era uma ciranda na qual “vamos todos cirandar”, e que junto com juras de amor eterno vinham anéis de vidro:

“o anel que tu me deste

era vidro e se quebrou

o amor que tu me tinhas

era pouco e se acabou”.

E a inveja e a eterna insatisfação humana eram ludicamente desmascaradas: a galinha do vizinho é que bota ovo amarelinho (e ainda por cima bota um, dois,..., dez!).

E aprendíamos que a prudência só vem com a experiência:

“enganei um bobo,

na casca do ovo...”.

E mais: na ingenuidade da infância, assumíamos nossa incapacidade de realizar as escolhas fundamentais (como a de ter que decidir quem é que ia se encarregar da triste missão de jogar no gol...) e as confiávamos claramente à cega sorte (“lá em cima do piano tem um copo de veneno...” ou “minha mãe mandou escolher este daqui...”, ou ainda o “bem-me-quer”, “uni, duni, tê” etc.).

Hoje, adultos, não adotamos mais esse critério (que, pelo menos, tinha a vantagem de sinceramente reconhecer a incapacidade de decidir). Nós pretendemos não necessitar de uma virtude (toda a profunda antropologia das virtudes cardeais nem sequer está mais em nosso campo de visão...), pois presumimos dispor de recursos técnicos ou científicos que permitam tornar dispensável o âmbito moral, a virtude cardeal da Prudentia. Mas, não por acaso, “cardeal” vem da palavra latina cardus, gonzo, eixo em torno do qual se abre a porta (a porta da realização humana, do to be). Abdicar da Prudentia, a cardeal das cardeais, significa perder o eixo, o gonzo, tornar-se des-engonçado existencialmente! Abdicar da Prudentia é abdicar da realidade e confiarmos a um Ersatz - como ao Grande Inquisidor de Dostoiévski - as decisões fundamentais da existência...



[1] Estas notas complementam as que já apresentamos em artigo anterior, no No. 14 desta revista: “Prudentia, Religiões e Sociedade”: http://www.hottopos.com/geral/prud_relig.htm

[2] Pieper desenvolve essa tese principalmente nas introduções a cada virtude. Por exemplo: "(A verdade moral e também a verdade em geral) perde não só sua força conquistadora, mas também seu poder de divulgação, se não for regenerada incessantemente em seu sentido autêntico. E esta regeneração contínua realiza-se pela força incisiva da palavra viva. Daí a grande responsabilidade - que sempre acompanha o poder - para com a verdade dos que comunicam: podem anunciar a verdade ou desvirtuá-la" (pp. 211-212 da edição portuguesa: Virtudes Fundamentais, Aster, Lisboa, 1960.).

[3] Na verdade, Tomás fala de partes quasi integrais, "ad similitudinem partium integralium": a virtude, uma qualidade simples, não admite partes integrais em sentido próprio, pois não se trata de sua entidade, mas de funções (cfr. I-II,54,4).

[4] Enquanto aportação dos princípios universais ao caso particular. Assim (ad 1), a inteligência não só conhece os princípios especulativos ou práticos (como "não se deve fazer mal a ninguém"), mas se estende ao caso concreto presente e, neste sentido, é parte da prudência.

[5] Como apontávamos, curiosamente, a prudentia, virtude da decisão, converteu-se na atual "prudência" indecisa...

[6] DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Os Irmãos Karamázovi São Paulo, Ouro, s.d., p. 226.

[7] Ibidem, p. 225.

[8] Ibidem, p. 224.

[9] Ergo prudentia non inest nobis a natura sed ex doctrina et experimento (II-II,47,15,sed contra).

[10] Em II-II 47,16, Santo Tomás discute se a prudência pode se perder por esquecimento. E afirma que sendo apetitiva (e não só cognoscitiva...), não se perde diretamente (non directe) a prudência por esquecimento, mas conclui: "O esquecimento, no entanto, pode impedir a prudência, pois esta para preceituar, precisa de conhecimento e este, sim, pode ser esquecido".

[11] Saber de cor, com o coração, by heart, par coeur.

[12] PIEPER, Josef  Das Viergespann, München, Kösel, 1964, p. 29.

[13] PIEPER, Josef Virtudes Fundamentais, Lisboa, Aster, 1960, p. 26.