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 Prudentia, Religiões e Sociedade 

 

Jean Lauand
jeanlaua@usp.br
Prof. Titular da Fac. Educação da USP
artigo enviado para a publicação em 8/07/02

"Tia Zina a esta hora começa a ficar insuportável, vai me aporrinhar para valer.
Mudei em alguma coisa, sim. Tempos atrás pedia, tira meu medo, Deus.
Hoje, digo, estou com medo, meu Pai, me abraça (...)
Sabina deixou um recorte de jornal debaixo da minha porta:
APARIÇÃO DE NOSSA SENHORA EM MINAS GERAIS!
É gozação dela comigo, porque a vidente tem o mesmo nome meu e
ela pensa que eu vou sair correndo para ver a aparição. Boba.
Nossa Senhora está na minha casa é me esperando, pra me ajudar
a dar banho em tia Zina, sem fazer careta. Sabina emprega muito
mal a palavra 'mística'. Tivesse ela que dar banho em tia Zina,
descobriria com quanta água e sabão se faz um santo. Falo sem soberba, não quero menos".
(Adélia Prado, Filandras , Rio de Janeiro, Record, 2001, pp. 79-80)

 

Baseados em quê tomamos nossas decisões? A arte de decidir bem, reta e adequadamente, era denominada pelos antigos Prudentia. Originariamente, a virtude da Prudentia (a principal entre as virtudes cardeais!) não tem nada que ver com a encolhida cautela a que, hoje, chamamos prudência; Prudentia (a legítima, a verdadeira) é, pura e simplesmente, a arte de decidir certo.

Estudando o tratado De Prudentia de Tomás de Aquino, deparamos uma doutrina maravilhosa e riquíssima e, além do mais, de extrema atualidade. Encontramos, por exemplo, que a Prudentia é uma virtude intelectual; seu princípio é a inteligência reta, o olhar límpido capaz de ver a realidade e, com base na realidade vista, tomar a decisão boa, para “fazer a coisa certa”.

A inteligência da Prudentia é uma virtude e não dotes de inteligência, digamos, de Q.I., porque só o homem bom consegue ter a inteligência que não distorce o real (pense-se, por exemplo, na dificuldade de ver a realidade por conta de preconceitos, inveja, egoísmo etc.). Virtude da inteligência, mas da inteligência do concreto: a Prudentia não é a inteligência que versa sobre teoremas ou princípios abstratos e genéricos, não!; ela olha para o “tabuleiro” de nossas decisões concretas, do aqui e agora, e sabe discernir o lance certo, moralmente bom.

Entre muitos outros pontos geniais (o papel da memória na Prudentia, por exemplo) da doutrina clássica, destacaria aqui seu critério para saber o que é bom: a realidade! Saber discernir, no emaranhado de mil possibilidades que esta situação me apresenta (que devo dizer a este aluno?, compro ou não compro?, devo responder a este mail? etc.), os bons meios concretos que me podem levar a um bom resultado: e, para isto, é necessário ver a realidade.

Mas este ver a realidade é só uma parte da Prudentia; a outra parte, ainda mais decisiva (literalmente) é transformar a realidade vista em decisão de ação: de nada adianta saber o que é bom, se não há a decisão de realizar este bem...

O nosso tempo, que esqueceu até do verdadeiro significado da clássica Prudentia, atenta contra ela de diversos modos: em sua dimensão cognoscitiva (a capacidade de ver o real, por exemplo aumentando o ruído - exterior e interior – que nos impede de “ouvir” o real) e em sua dimensão preceptiva: o medo de enfrentar o peso da decisão, que tende a paralisar os imprudentes (pois é, a Prudentia toma corajosamente a decisão boa!).

É dessa dramática imprudência da indecisão que tratam alguns clássicos da literatura: do "to be or not to be..." de Hamlet aos dilemas kafkianos (o remorso impõe-se a qualquer decisão), passando pelo “Grande Inquisidor” de Dostoiévski, que descreve "o homem esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher" e apresenta a massa que abdicou da Prudentia e deixa-se escravizar, preferindo "até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal". E, assim, os subjugados declaram de bom grado: "Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis".

A grande tentação da imprudência (sempre no sentido clássico) é a de delegar a outras instâncias o peso da decisão que, para ser boa, depende só da visão da realidade. Há diversas formas dessa abdicação: das reuniões desnecessárias aos gurus, passando por runas, tarôs e toda sorte de esoterismos.

Uma das mais perigosas formas de renúncia a enfrentar a realidade (ou seja, a renúncia à Prudentia) é trocar essa fina arte de discernir o que a realidade exige naquela situação concreta por critérios operacionais rígidos, como num “Manual de escoteiro moral”. É bem o caso do radicalismo de certas propostas religiosas: em vez de se dar ao trabalho de discernir os casos, simplifica-se grosseiramente tudo: é pecado e pronto!

Certamente, há absolutos na moral (não existem homicídios ou adultérios bons); refiro-me à indevida absolutização do relativo... O regime Taliban, por exemplo, pretendia tornar dispensável o discernimento de cada fiel, por meio de um extenso e detalhado sistema de normas, que determinava inclusive as formas verbais de que a torcida podia se valer num jogo de futebol: ante a alegria do gol, a exclamação devia ser: “Al-hamdu lillah” (louvor a Deus); ante uma roubada do juiz, Allahu Akbar (“Deus é grande”) e, em qualquer caso: Allah (o palavrão estava proibido pelo Ministério do Vício e da Virtude).

Mesmo sem chegar a extremos como o da criação de um Ministério do Vício e da Virtude, a tentação é a de tornar dispensável a virtude pessoal da Prudentia: deixando tudo definido e operacionalizado num código e pronto. Lembro-me aqui daquele sargento que comandou a operação de resgate, no Parque Nacional do Itatiaia, de um amigo, alpinista de primeira escalada, que acabou por ficar sinucado numa estreita pedra, sem poder sair. O sargentão do resgate, tendo subido a uma pedra paralela e estando a uma distância de 3 ou 4 metros do meu amigo, e antes de lançar-lhe a corda, tomou o megafone (desnecessário) e, com a melhor psicologia de quartel, ordenou: “Vítima, não entre em pânico, vítima!” (a primeira regra do Manual de Resgate é: “Faça com que a vítima não entre em pânico”...).

Para além de leis secas, rigidezes e literalidades, as religiões correm ainda outro risco de imprudentia: no afã de libertar-se do peso da responsabilidade de decidir, o crente transfere o abacaxi para Deus (ou para o sobrenatural). Certamente, Deus pode inspirar-nos em nossas dificuldades de decisão e a Ele devemos humildemente recorrer para pedir luzes e discernimento. O problema, nisso como em tudo, são os abusos.

Todo aquele que crê, dizíamos, está legitimado em pedir luzes a Deus para suas decisões (é o que, para a doutrina católica, é “conselho”, dom do Espírito Santo); o que não se pode é avalizar com a autoridade divina posições meramente temporais, como a de saber se a falta foi dentro ou fora da área... Em todo caso, a iluminação sobrenatural deve ser, caso queiramos fazer uso público dela, de tal ordem que torne visíveis para qualquer um a realidade de que se trata (acho que é isso que se pede naquele verso do mais clássico hino ao Espírito Santo, o “Veni Creator”:  Mentes tuorum visita, visita as mentes dos que são teus...). Outra atitude degeneraria em tirania, em teocracia.

Um exemplo nos ajudará a entender. O exemplo nos vem da própria Bíblia, do capítulo 13 do profeta Daniel. Dois anciãos, juízes (iníquos) de Israel, repelidos pela bela Susana em seus desejos adúlteros, vingam-se levantando contra ela o falso testemunho de adultério: “Vimos um jovem assim, assim, adulterando com ela no jardim etc.”. Quando a multidão já está preparada para aplicar à casta Susana a pena de morte por apedrejamento, Deus inspira ao jovem Daniel (cujo nome, aliás, significa, juiz de Deus) a defesa da inocente. Mas Daniel não afirma em nenhum momento sua iluminação sobrenatural; o que ele faz é apresentar argumentos humanos, que todos podem comprovar, sobre a injustiça daquele processo: interroga em separado, diante do povo, os juízes iníquos: “Debaixo de que árvore ela estava adulterando?” e ante a disparidade de respostas, torna-se evidente que estavam mentindo e o povo aplica-lhes a pena de morte que tinham planejado para Susana...

É muito perigoso o uso indevido da religião em questões meramente temporais (naturalmente, questões éticas como a defesa da vida ou da justiça social não são questões meramente temporais e as religiões podem - e devem - trazer reflexão adequada para seu equacionamento na sociedade).

O Brasil inteiro chorou recentemente o desaparecimento de Chico Xavier, uma figura boníssima e um exemplo de humildade e de amor. Mas esse grande líder espírita protagonizou alguns episódios curiosos e que suscitam inquietante reflexão.

Num processo por homicídio, em 1985, um juiz de Campo Grande aceitou que a defesa apresentasse “cinco cartas psicografadas pelo médium Chico Xavier, nas quais a vítima dá a entender que a arma disparou acidentalmente. O júri o absolveu, mas a sentença foi anulada por recurso da promotoria, que quer condenação por homicídio doloso” (“Marido das cartas psicografadas volta a júri”, O Estado de S. Paulo, 6-4-90, p. 16).

Em outro júri de homicídio, um juíz de Gurupi-GO, em 1987, convocou Chico Xavier como testemunha (não como testemunha visual, mas mediúnica!!), pelo fato de o médium ter recebido mensagem do além da pretensa vítima (“Testemunha do crime: o médium”, O Estado de S. Paulo, 25-3-87, p. 17). E o "Jornal Espírita" comentou essa notícia em matéria de primeira página: "Haverá de chegar um tempo em que os espíritos poderão vir do 'lado de lá' - com o aval das autoridades - consertar tantas injustiças" (Ano XI, No. 143, Maio de 1987).

Outro tanto poderia ser questionado a propósito da prática de cirurgias por médiuns, o que, na prática, equivale a uma dispensa do diploma de médico. Etc.

Que os espíritos nos orientem sobre questões de foro íntimo ou, então, tal como no caso do profeta Daniel, nos apontem as razões - visíveis para todos - que possam nortear nossas decisões prudentes.