BOM HUMOR E BRINCAR EM S. TOMÁS DE AQUINO
Luiz Jean Lauand ( O Tratado sobre o brincar de Tomás de Aquino corresponde ao In X Libros Ethicorum, IV, 16 - Comentário à Ética de Aristóteles. A presente tradução foi feita a partir do texto latino da edição de Marietti, Turim, 1934). Apresentamos, a seguir, o Tratado sobre o Brincar de S. Tomás de Aquino (1225-1274), o principal pensador medieval. Dentre os diversos preconceitos a respeito da Idade Média, um dos mais injustos é o que a concebe como uma época que teria ignorado, ou mesmo combatido, o riso e o brincar. Na verdade, o homem medieval é muito sensível ao lúdico; convive a cada instante com o riso e com a brincadeira. Comecemos pela fundamentação teológica do lúdico. Recordemos que o cristianismo (tão marcante na Idade Média), ao dar ao homem um vivo sentido de mistério e uma humildade anti-racionalista (não anti-racional; anti-racionalista!), dá-lhe também o senso de humor. Pois a leveza do riso pressupõe a aceitação da condição de criatura, de que o homem não é Deus, do mistério do ser, da não-pretensão de ter o mundo absoluta e ferreamente compreendido e dominado pela razão humana. O racionalismo, pelo contrário, é sério; toma-se demasiadamente a sério e, por isto mesmo, é tenso e não sabe sorrir. O homem medieval brinca porque acredita vivamente naquela maravilhosa sentença bíblica que associa o brincar da Sabedoria divina à obra da Criação: quando Deus criou o mundo e fez brotar as águas das fontes, assentou os montes, fez a terra e os campos, traçou o horizonte, firmou as nuvens no alto, impôs regras ao mar e assentou os fundamentos da terra "ali estava Eu (a Sabedoria divina) com Ele como artífice, brincando (ludens) diante dEle todo o tempo; brincando (ludens) sobre o globo terrestre, e minhas delícias são estar com os filhos dos homens" (Prv 8,30-31). Já de outro ponto de vista, o histórico-psicológico, também é facilmente compreensível a atitude lúdica da Idade Média, uma época jovem. A juventude e a velhice não se predicam só das pessoas singulares, mas também das épocas e regiões. A atitude jovem que distingue hoje a América é semelhante à que caracteriza a Idade Média. Assim, a Idade Média (sobretudo a Primeira Idade Média), na ingenuidade de sua juventude, valorizou, mais do que qualquer outra época, a cultura popular. Fomentou-a. Os mais sábios mestres dirigem-se a seus alunos de modo informal e lúdico (aliás um dos sentidos derivados de ludus é escola; fenômeno paralelo ao da derivação de escola de scholé, lazer). Em Alcuíno (séc. VIII), por exemplo, encontramos diálogos repletos de enigmas, brincadeiras e piadas, pois - é a sua norma pedagógica - "deve-se ensinar divertindo". Para a época, é perfeitamente natural que um intelectual do porte de um Alcuíno ensine às crianças através de brincadeiras, como a seguinte:
O exemplo acima é um típico exercício da escola elementar medieval, unindo o didático ao lúdico. "Cavalgar" exige complemento direto, acusativo. O aluno que esquecesse deste ponto da gramática não resolveria a adivinha; já aquele que se lembrasse, saberia que a palavra em questão começa e termina por m: malum (pomo) e mula (ou, no acusativo, mulam) é a solução. E no ensino de Aritmética é freqüente encontrarmos problemas com enunciado lúdico. Por exemplo: "Numa escada com 100 degraus, no 1º. degrau está pousada uma pomba; no 2º., 2; no 3º., 3; e assim por diante até o 100º. Diga, quem puder, quantas pombas há no total? (1)" Não só o conteúdo do ensino era apresentado de forma jocosa; pratica-se nas escolas dos monges o lúdico também para "aguçar o engenho das crianças". Misturados em listas medievais de ensino elementar de Aritmética, encontramos problemas como este: "Um homem devia passar de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e um maço de couves. E não pôde encontrar outra embarcação a não ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha recebido ordens de transportar ilesa toda a carga. Diga, quem puder, como fez ele a travessia? Resposta: Primeiro leva a cabra, deixando o lobo e a couve. Depois volta e retorna com o lobo. Deixado o lobo, toma a cabra etc.". O lúdico como atitude recebe também uma fundamentação filosófica, particularmente em Tomás de Aquino, que entoa o elogio do brincar. A atualidade de seu pensamento manifesta-se de modo mais agudo na Ética, campo em que Tomás situa o lúdico. Tomás trata tematicamente do brincar no Comentário à Ética de Aristóteles (IV,16) e na Suma Teológica, II-II, questão 168, artigos 2, 3 e 4, que comentaremos brevemente, a seguir. Observemos desde já que em todos os textos de Tomás recolhidos neste trabalho, traduziremos ludus por brincar. E deixemos claro que o ludus de que Tomás trata nestes textos é sobretudo:
Ainda uma observação sobre as palavras ludus e jocus. No latim, a palavra jocus é originalmente reservada para as brincadeiras verbais: piadas, enigmas, charadas etc. Já ludus - de que se originaram as palavras: aludir, iludir, ludibriar, eludir, prelúdio etc. - refere-se, originalmente, ao brincar não-verbal, mas por ação. No século XIII, jocus e ludus são usadas como sinônimas: "As palavras ou ações - diz Tomás em II-II, 168, 2, c - nas quais só se busca a diversão chamam-se lúdicas ou jocosas" e "a distração se faz pelas brincadeiras (ludicra) de palavra e ação (verba et facta)". Assim, o lúdico assume diversas dimensões: o estado de espírito de brincar e suas eventuais manifestações em brincadeira verbal, a de ação e a de jogos. Porém, para bem compreendermos o tratamento que Tomás dá ao brincar, é necessária uma breve exposição de sua concepção de ética. Para Tomás, a moral é o ser do homem, doutrina sobre o que o homem é e está chamado a ser. A moral é entendida como um processo de aperfeiçoamento, de auto-realização do homem; um processo levado a cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o nível mais fundamental, o do ser-homem: "Quando, porém, se trata da moral, a ação humana é vista como afetando não a um aspecto particular, mas à totalidade do ser do homem... ela diz respeito ao que se é enquanto homem" (I-II, 21, 2 ad 2). A moral, nesse sentido, pressupõe antes e acima de tudo conhecimento sobre o ser do homem; um conhecimento que, insistamos, remete a um único fundamento: a natureza humana. Deste modo, toda norma moral deve ser entendida como um enunciado a respeito do ser do homem e toda transgressão moral traz consigo uma agressão ao que o homem é. Para Tomás, cada norma moral é, na verdade, um enunciado sobre o ser. Os imperativos dos mandamentos ("Farás x...", "Não farás y...") são, no fundo, enunciados sobre a natureza humana: "O homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização, requer x e é incompatível com y". Neste quadro, podemos compreender a doutrina de Tomás sobre a virtude. A virtude - como também seu oposto: o vício - é um hábito (naturalmente, a virtude é hábito bom; e o vício, mau). O nosso tempo anda tão desorientado no que diz respeito à Educação Moral que a própria palavra hábito nos causa aversão: associamos hábito a condicionamento, domesticação etc. Porém, o verdadeiro sentido do hábito, o que lhe dá Tomás, nada tem que ver com essas deformações. Hábito é pura e simplesmente uma qualidade adquirida (auto-adquirida e livremente desenvolvida) que facilita e aperfeiçoa a ação e aperfeiçoa também o próprio homem. O bem objetivo sobre o qual incide a virtude costuma situar-se como um termo médio entre dois extremos de vício: o do excesso e o do defeito. Daí o adágio "in medio virtus", a virtude está no meio, com o que, naturalmente, não se afirma ser a virtude uma burguesa mediocridade de média, mas sim um agudo pico entre dois abismos de erro. Assim, por exemplo, a virtude da liberalidade, o reto uso do dinheiro, é termo médio entre a avareza e o malbaratar irresponsável. Ao tratar do brincar na Suma, a afirmação central de Tomás (fundamentada na concepção de ética que indicamos) encontra-se no ad 3 do art. 3: Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae, o brincar é necessário para a vida humana (e para uma vida humana). A razão dessa afirmação, como sempre, a encontraremos no ser do homem, desenvolvida no artigo 2, que passamos a resumir. Nele, Tomás afirma que assim como o homem precisa de repouso corporal para restabelecer-se (sendo suas forças físicas limitadas, não pode trabalhar continuamente), assim também precisa de repouso para a alma, o que é proporcionado pela brincadeira. Daí decorrem importantes conseqüências para a educação: o ensino não pode ser aborrecido e enfadonho: o fastidium é um grave obstáculo para a aprendizagem (2). A tristeza e o fastio produzem um estreitamento, um bloqueio, ou, para usar a metáfora de Tomás, um peso (aggravatio animi) (3). Daí que Tomás recomende o uso didático de brincadeiras e piadas: para descanso dos ouvintes (ou alunos). E, tratando do relacionamento humano, Tomás chega a afirmar que ninguém agüenta um dia sequer com uma pessoa aborrecida e desagradável (4). Após estabelecer a necessidade do brincar, o Aquinate indica três precauções a tomar nessa matéria: 1. Evitar brincadeiras que envolvam agir ou falar torpe ou nocivo. 2. Não se deixar envolver tão desenfreadamente pelo brincar a ponto de perder a gravidade da alma. E aplica ao adulto o mesmo critério do brincar que se impõe às crianças: "não permitimos às crianças toda espécie de brincadeiras, mas só as que não sejam moralmente más". 3. Cuidar de que sejam adequados o momento ("brincadeira tem hora!"), o lugar ("Aqui não é lugar de brincadeira!") e as pessoas envolvidas. Feitas essas considerações, Tomás conclui: "Vê-se pois que as brincadeiras devem ser ordenadas pela regra da razão (e razão, no caso, significa: conhecimento objetivo do ser). E o hábito que opera segundo a razão é a virtude moral. Há portanto uma virtude do brincar que é o que Aristóteles chama de eutrapelia".
(1) Este problema (e o seguinte) encontra-se na antologia de textos didáticos medievais, por nós publicada sob o título Educação, Teatro e Matemática Medievais, 2ª. ed., S. Paulo, Perspectiva, 1990. (2) Suma Teológica, prólogo. Em outro lugar da Suma Teológica, no tratado sobre as paixões, Tomás analisa um interessante efeito da alegria e do prazer na atividade humana, o que ele chama metaforicamente de dilatação: que amplia a capacidade de aprender tanto em sua dimensão intelectual quanto na da vontade (o que designaríamos hoje por motivação): "A largura é uma dimensão da magnitude dos corpos e só metaforicamente se aplica às disposições da alma. 'Dilatação' indica uma extensão, uma ampliação de capacidade e se aplica à 'deleitação' (Tomás joga com as palavras dilatatio-delectatio) com relação a dois aspectos. Um provém da capacidade de apreender que se volta para um bem que lhe convém e por tal apreensão o homem percebe que adquiriu uma certa perfeição que é grandeza espiritual: e por isso se diz que pela deleitação sua inteligência cresceu, houve uma dilatação. O segundo aspecto diz respeito à capacidade apetitiva que assente ao objeto desejado e repousa nele como que abrindo-se a ele para captá-lo mais intimamente. E, assim, dilata-se o afeto humano pela deleitação, como que entregando-se para acolher interiormente o que é agradável" (I-II, 33, 1) (3) I-II, 37, 2, ad 2. (4) I-II, 114, 2 ad 1. |