Nota introdutória ao Tratado
sobre o brincar de Tomás.
Luiz Jean Lauand
O comentário de Tomás, cerca de três
vezes mais volumoso do que o original aristotélico (1127 b 30 - 1128 b 10), segue, passo
a passo, a tradução de que Tomás dispunha. Tal tradução, apesar de muito boa para os
padrões da época, é obscura em certas passagens, como aquela em que Aristóteles, para
ilustrar a diferença entre a atitude viciosa e a virtuosa, contrapõe as antigas às
novas comédias. Diz o original aristotélico: "Para os antigos autores cômicos era
a obscenidade o que provocava o riso; para os novos, é antes a insinuação, o que
constitui um progresso". Já na tradução de que Tomás se vale não há tal
contraposição e o Aquinate entende "suspeita" onde o original diz
"insinuação". Daí sua afirmação, interessante, mas que nada tem que ver com
o texto aristotélico: "E (Aristóteles) diz que tal critério é especialmente
manifesto quando consideramos os diálogos tanto nas antigas como nas novas comédias.
Porque, se em algum lugar nessas narrações ocorria alguma fala torpe, isso gerava em
alguns a irrisão enquanto tais torpezas se convertiam em riso. Para outros, porém,
gerava a suspeita, enquanto suspeitavam que aqueles que falavam torpezas possuíam algum
mal no coração" (859).
De resto não há grandes discrepâncias.
Tomás pouco acrescenta a Aristóteles nos pontos 853, 855 a 858, 860 a 863, 865 e 866. E,
dentre as novidades em relação ao original, destaca-se a bela fundamentação do brincar
como virtude (850 e 851).
TRATADO SOBRE O BRINCAR
(Comentário à Ética a
Nicômaco, Livro IV, 16).
Santo Tomás de Aquino(Trad. Luiz Jean
Lauand)
INTRODUÇÃO
850- Aristóteles,
depois de ter determinado as virtudes que dizem respeito aos atos humanos sérios,
estabelece neste capítulo uma certa virtude que diz respeito ao brincar.
E sobre três pontos incide sua análise:
I- Mostra que pode dar-se virtude e vício
sobre o brincar.
II- Trata da virtude que versa sobre o
brincar e dos vícios que lhe são opostos.
III- Mostra a diferença entre essa virtude
e outras duas, anteriormente tratadas.
I- Existe uma virtude do brincar.
A respeito do primeiro ponto, deve-se
considerar que não teria sentido falar de virtude e vícios referentes a atos que em si
são maus e não se podem dar sob forma de bem (1), como mostramos anteriormente. Assim,
pois, se o brincar não pudesse ter caráter de bem, não poderia haver uma virtude que
tivesse por objeto o brincar.
851- O
brincar, porém, algum caráter de bem possui, na medida em que é útil para a vida
humana. Pois, assim como o homem necessita, de vez em quando, interromper o trabalho e
descansar da atividade física, assim também, de vez em quando, necessita subtrair-se à
tensão de ânimo exigida pelas atividades sérias, para repouso da alma: e isso é o que
se faz pelo brincar.
E por isto Aristóteles diz que, ao
proporcionar ao homem um certo repouso das preocupações - que nesta vida e no
relacionamento humano não faltam -, o brincar tem caráter de bem, de bem útil. Daí que
no brincar possa dar-se um harmonioso diálogo e comunicação entre os homens: de tal
modo que no brincar o homem diga e ouça adequadamente o que lhe é de proveito.
Há, contudo, uma grande diferença entre
dizer e ouvir; há muitas coisas que um homem decentemente ouve, mas não poderia
decentemente dizer.
II-A virtude do brincar e os
vícios que lhe são opostos
II.1- O meio e os extremos no brincar.
(No dizer, no ouvir e) Onde quer que haja
diferenças entre o que convém fazer e o que não convém fazer, aí também haverá não
só o meio (da virtude), mas também o excesso e a falta (dos vícios) em relação ao
meio. E, assim, a respeito da brincadeira, há também termo médio e extremos.
II.1.1- O vício por excesso.
852- Aristóteles
mostra, inicialmente, o que caracteriza o vício por excesso e diz que aqueles que
exageram no brincar caem na irrisão e se chamam bomolochi, isto é, os que furtam
no templo, à semelhança das aves de rapina, dos abutres que voavam ao redor do templo
para roubar as vísceras dos animais imolados. Assim também estes espreitam a fim de que
possam "roubar" algo para convertê-lo em irrisão (2)
.
Tornam-se assim importunos pois sempre
querem fazer rir e aplicam-se mais a esse desejo do que ao de não dizer algo
inconveniente ou imoral e que não agrida aqueles com quem se metem com essas suas
troças. De fato, tanto mais eles querem dizer alguma grosseria ou algo que possa ferir o
outro quanto, com isto, induzem os outros ao riso.
II.1.2- O vício por falta.
853- Em
segundo lugar, Aristóteles mostra o que é o vício por falta. E diz que aqueles que não
querem dizer algo engraçado e se irritam com os que o dizem, na medida em que assim se
agastam, tornam-se como que duros e rústicos, não se deixando abrandar pelo prazer do
brincar.
II.1.3- O termo médio no
brincar.
854- Em
terceiro lugar, Aristóteles mostra o que é o termo médio da virtude no brincar. E diz
que aqueles que se portam convenientemente no brincar são chamados eutrapeli, que
significa "os que bem convertem", porque convertem em riso, de modo conveniente
e versátil, as coisas que se dizem ou fazem.
II.2- O brincar como indicador
das disposições morais.
855- Aristóteles
mostra como o que foi dito acima é próprio da diversidade das disposições morais. E
diz que esses movimentos da alma no voltar-se para o riso (no exagero, na adequação ou
na falta) são um certo indício da disposição moral interior. Pois, assim como pelos
movimentos corporais exteriores se discernem as disposições interiores do corpo, assim
também pelas ações exteriores se conhecem nossas disposições morais.
II.3- O excesso tomado por
virtude.
856- Aristóteles
mostra como, algumas vezes, o extremo é falsamente considerado como meio. E diz que há
muitos que exageram na apreciação do riso e há muitos que folgam mais do que o devido
com as brincadeiras e com que se diga a outros troças que os ridicularizem. Por isso,
para esses, os bomolochi são chamados eutrapeli - porque são por eles
muito apreciados, pois passam da medida no brincar, o que a muitos homens agrada
exageradamente.
Isso não impede que continue de pé a
grande diferença objetiva que há entre os bomolochi e os eutrapeli, como
evidenciamos acima (3).
II.4- Caracterização dos
hábitos acima enunciados: a virtude e os vícios do brincar.
II.4.1- O virtuoso em
relação ao brincar em geral.
857- Inicialmente,
Aristóteles afirma que o que caracteriza o termo médio da virtude do brincar é aquilo
que é próprio do epidéxios, isto é, do homem bem adaptado e disposto ao
convívio humano. É próprio dos que têm tal atitude ouvir e dizer ludicamente o que
condiz com um homem equilibrado e livre, no sentido de que tem o ânimo livre de paixões
servis (3).
858- Em
segundo lugar, Aristóteles argumenta em favor do que havia dito: onde quer que se dê
algo que se possa fazer decentemente, há campo próprio de virtude. E acontece que no
brincar pode-se falar e ouvir de modo conveniente: e isto se torna evidente pela
diferença entre os modos de brincar. Pois o brincar no homem livre, que se dirige por si
mesmo e espontaneamente a agir bem, difere do brincar do homem servil, que se ocupa de
coisas servis. E o brincar do homem educado, que aprendeu como deve brincar, difere do do
homem indisciplinado, cuja brincadeira não é refreada por nenhuma moderação.
Donde é evidente que é próprio do termo
médio da virtude a decência no dizer e no ouvir, que se dão no brincar.
859- A seguir, Aristóteles apresenta um certo critério para
distinguir o brincar do homem educado do do indisciplinado. E diz que tal critério é
especialmente manifesto quando consideramos os diálogos nas antigas e nas novas
comédias.
Porque se em algum lugar nessas narrações
ocorria alguma fala torpe, isso gerava em alguns a irrisão enquanto tais torpezas se
convertiam em riso. Para outros, porém, gerava a suspeita, enquanto suspeitavam que
aqueles que falavam torpezas possuíam algum mal no coração.
É óbvio, portanto, que não é pouco
importante para a moral se um homem diz na brincadeira coisas torpes ou honestas.
II.4.1.1- O virtuoso ante um
caso especial: o das troças.
860-
Aristóteles, inicialmente (primeiro membro), se questiona se se pode determinar o que é
portar-se bem no troçar quanto àquilo que se fala e, portanto, se se pode determinar um
falar que convém ao homem liberal, virtuoso e modesto. Ou (segundo membro) se não se
determina o bom troçar por isso, mas antes por parte do fim ou efeito: procurar não
ferir a quem ouve; ou ainda mais: procurar agradá-lo.
861- E,
respondendo à questão quanto ao segundo membro, Aristóteles diz que, sendo muitas e
diversas para cada um as formas do odiável e do agradável, é indeterminado o que fira
ou agrade a quem ouve.
Aquilo que agrada, naturalmente, qualquer um
de bom grado o ouve; as falas que se podem dizer aos outros (contanto que não se pretenda
feri-los) são, ao que parece, as mesmas que alguém pacientemente aceita ouvir.
862- Quanto
ao que dizer nas troças, Aristóteles mostra que algo pode ser determinado quanto ao
primeiro membro, isto é, quanto às troças que se dizem. É evidente que o homem
virtuoso não fará qualquer troça, pois a troça é uma certa ofensa. Não participa das
troças, na medida em que o que nelas se diga difame ou ofenda alguém, o que está
proibido pelos legisladores (4). Mas há outras troças que não se proíbem e de que
convém participar pelo prazer ou para a emenda de alguém ser feita sem difamação.
Aquele, pois, que em troçando se porta equilibrada e livremente, esse é para si mesmo
lei, pois, por opção pessoal, evita o que a lei proíbe e faz uso do que a lei concede.
863- Por
fim, Aristóteles conclui que tal é o termo médio do virtuoso, quer se denomine epidéxios,
isto é, bem adaptado, quer eutrapelus, isto é, o que bem converte.
II.4.2- Caracterização do
mal do excesso.
864-
Aristóteles caracteriza o mal do excesso e diz que o irrisor é pior que o bomolochus,
pois o irrisor o que quer é vexar alguém, enquanto o bomolochus não pretende
isso, mas, simplesmente, gracejar, embora para este objetivo não poupe a si mesmo nem aos
outros quando se trata de fazer rir; e converte a sua conduta e o que os outros dizem ou
fazem em objeto de riso; e diz o que nunca diria um homem virtuoso; e algumas das coisas
que ele diz não só não as diria, mas nem sequer as ouviria o homem virtuoso.
II.4.3- Caracterização do
mal da falta.
865- O
rústico ou duro, esse, já não traz nenhuma contribuição para as conversas lúdicas e
se aborrece com todos. E nisto consiste seu vício: em repelir totalmente o brincar que,
como o repouso, é necessário para a vida humana.
III- A distinção entre a
virtude do brincar e duas virtudes anteriormente tratadas.
866- Aristóteles
faz a distinção entre esta virtude e duas anteriores. E diz que três são os termos
médios no convívio humano de palavra e ação. A diferença entre essas virtudes se dá
pelo fato de que uma versa sobre a veracidade no dizer e no agir; as outras duas versam
sobre o agradável. Destas, uma se dá no brincar e a outra (5) no relacionamento sério.
(1) Não existem, por exemplo, virtudes referentes ao
ato de invejar ou ao de praticar adultério, que são, por natureza maus.
(2) Esta interpretação do significado da palavra
não se encontra no texto de Aristóteles comentado.
(3) Tomás não se refere à liberdade (e à
servidão) como condição social, mas como qualidade moral.
(4) O brincar é necessário, entre outras razões,
por suavizar as relações humanas. Daí que seja uma perversão o brincar que constrange
e discrimina (pense-se por exemplo nas piadas que fomentam preconceitos raciais).
(5) Trata-se da virtude que leva a um comportamento
correto e equilibrado entre o bom relacionamento com os outros e o não transigir (sob
pretexto de cordialidade ou harmonia) no que eticamente não se pode transigir.
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