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Sociedade Vigiada

 

Jaques de Camargo Penteado

"Por trás de Winston a voz da teletela tagarelava a respeito do ferro gusa e da superação do Nono Plano Trienal. A teletela recebia e transmitia simultaneamente. Qualquer barulho que Winston fizesse, mais alto que um cochicho, seria captado pelo aparelho; além do mais, enquanto permanecesse no campo de visão da placa metálica, poderia ser visto também. Naturalmente, não havia jeito de determinar se, num dado momento, o cidadão estava sendo vigiado ou não. Impossível saber com que freqüência, ou que periodicidade, a Polícia do Pensamento ligava para a casa deste ou daquele indivíduo. Era concebível, mesmo, que observasse todo mundo ao mesmo tempo. A realidade é que podia ligar determinada linha no momento que desejasse. Tinha-se que viver – e vivia-se por hábito transformado em instinto – na suposição de que cada som era ouvido e cada movimento examinado, salvo quando feito no escuro" George Orwell, 1984, 7a ed., São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1973, p. 8.

Introdução

 

     Animal racional, o homem é formado de matéria e espírito. Neste interagem a inteligência, a vontade, a memória e a imaginação que operam por meio do corpo. O intelecto é apto para encontrar a verdade e a vontade é capaz de recepcionar o bem. Exsurge a magnífica possibilidade de opção que se traduz na liberdade e caracteriza a pessoa humana. "A liberdade humana há de pois constituir antes um ser de espécie positiva: a estrutura íntima de tudo quanto acontece por meio do homem e que aponta para a sua essência. Um ente é livre, não na medida em que é independente de outros entes ou de leis, mas na medida em que é dependente de si próprio, em que se possui a si mesmo, e nesta relação consigo mesmo encontra o fundamento bastante do seu ser e do seu comportamento"(1).

 

     No Interior do homem, a vontade movimenta a inteligência para conhecer o bem e se delineia a própria vida individual com a definição daquilo que o ser humano quer e aquilo que não quer. Fica traçada a irrepetibilidade de cada vida. Planos e desejos, gostos e desgostos, satisfações e carências, segurança e medo, idéias e emoções permanecem no interior do homem. Retiram-no do gênero e o fazem espécie. Deixou-se o abstrato e se está diante da concreção. Um ser em si que outrem não é capaz de desvendar. É condição de existência recolher-se na sua interioridade e viver sem intromissão de terceiros. O conceito moderno de privacidade consiste no "direito de uma pessoa a ser deixada em paz para viver sua própria vida com o mínimo de ingerências exteriores" (Congresso de Estocolmo – 1967).

 

     Racional, o homem é também social. Realiza-se na comunidade. Naturais necessidades levam-no a exteriorizar o que está em sua intimidade. A comunicação é vital. Umas vezes simplesmente para expressar e outras vezes para se realizar. Aquelas como mecanismos de descompressão ("jogar conversa fora") e estas diante da impotência para, isoladamente, alcançar os seus fins (terceira dimensão revolucionária: liberdade, igualdade e fraternidade). Confia o seu interior por mero exercício de sociabilidade e descobre a sua intimidade para receber ajuda qualificada, conseguir trabalho que o dignifique. Abre-se ao amigo e se revela ao profissional capaz de o curar, amparar, ilustrar, assegurar. Precisa do médico, do advogado, do empregador... Precisa ser ele mesmo, espontaneamente, livre(2).

 

     "Ainda que a legislação de um país não protegesse a vida privada existiria em todos os homens um dever moral de o fazer, já que se trata de âmbitos que se referem à dignidade da pessoa como tal, aos seus direitos fundamentais, naturais. Com efeito, se a pessoa só fosse pessoa pelo reconhecimento da sociedade não haveria nenhuma razão para que se respeitasse a sua intimidade e vida privada. No entanto, a verdade é precisamente o contrário: a sociedade é para a pessoa, não a pessoa para a sociedade. Como já se viu noutros temas, as pessoas têm deveres muito concretos para com a sociedade, mas entre estes deveres não está incluído a sua anulação, a desaparição da sua personalidade"(3).

 

As normas em vigor

     No caso brasileiro, a Constituição da República garante um estado democrático de direito, a dignidade da pessoa humana, visando a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com prevalência dos direitos humanos, sendo invioláveis a "intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação", a casa é o asilo inviolável do indivíduo e inviolável é a comunicação entre as pessoas, são inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos, poderá haver restrição à publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem (arts. 1o, 3o, 4o e 5o).

     Os organismos internacionais também asseguram a privacidade. Proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem que "ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques" (art. XII). Enuncia o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos que "ninguém poderá ser objeto de ingerências arbitrárias ou ilegais em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais a sua honra e reputação" e "toda pessoa terá direito à proteção da lei contra essas ingerências ou ofensas" (art. 17).

     Sob o título de proteção da honra e da dignidade, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos dispõe que "ninguém poder ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação" (art. 11, n. 2).

     Também a Convenção Européia dos Direitos do Homem determina que "qualquer pessoa tem o direito ao respeito da sua vida privada e familiar, do seu domicílio e da sua correspondência" e "não pode haver ingerências da autoridade pública no exercício destes direitos senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que, numa sociedade democrática, seja necessária para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar econômico do país, a defesa da ordem e a prevenção de infrações penais, a proteção da saúde ou da moral, ou a proteção dos direitos e das liberdades de terceiros" (art. 8o).

     A doutrina européia exige do Estado "um papel activo inerente ao efectivo respeito da vida privada e familiar", devendo ser ressalvado "um justo equilíbrio entre o interesse geral e o interesse do indivíduo", entendendo-se que o "direito ao respeito da vida privada não se limitava a possibilitar ao indivíduo o viver protegido da publicidade no desenvolvimento de sua personalidade, mas ainda o de travar relações com outros seres humanos", exigindo-se que a lei reguladora seja "acessível, precisa e compatível com a preeminência do direito, pois o cidadão deve poder dispor de informações suficientes, nas circunstâncias do caso, sobre as normas jurídicas aplicáveis e poder prever as conseqüências que podem decorrer de determinado acto", lei que deve "fixar o conteúdo da restrição; os cidadãos poderão reclamar um controle sobre essas restrições, sempre que possível judicial, ainda que um controle parlamentar e mesmo um administrativo com um mínimo de eficácia se admita", a "medida deve responder a um motivo social imperioso ou a motivos pertinentes e suficientes; a medida restritiva terá de ser a menos gravosa das disponíveis, no justo equilíbrio entre o interesse público e a vida privada, e mostra-se proporcional ao fim a atingir"(4).

 

Os valores de nosso tempo

     O Estado, os organismos privados e cada um de nós, individual e concretamente considerados, estamos convocados à educação para a cidadania, para a convivência das pessoas, para a construção de situação propícia ao desenvolvimento de cada um segundo as suas potencialidades. Como nos realizamos em sociedade, precisamos promover o bem comum que compreende o respeito pela pessoa, o provimento das suas necessidades básicas e a fixação de uma ordem justa e permanente.

     Uma sociedade que se baseie no consumismo desenfreado, na concentração perniciosa das rendas, no amoralismo dos meios de comunicação de massa, no desinteresse pelo destino dos mais fracos, pautando-se pelo radicalismo do movimento de lei e ordem que cria um número cada vez maior de figuras criminosas e comina penas cada vez mais graves, não pode – ainda que a pretexto de proteger a propriedade – instalar um sistema de vigilância totalitário que prive o ser humano de sua natural inclinação à sociabilidade.

     É lógico que não se pode viver com um trânsito caótico e inseguro e que os avanços tecnológicos devem ser empregados para punir os infratores, mas não é razoável que se fotografe o motorista (basta a placa do veículo), deve ser disciplinado o destino da fotografia, o responsável por sua custódia, a questão de sua divulgação, a sua destruição oportuna, as conseqüências da publicidade indevida e tantos outros pontos. O que não se aceita é um método de instrução de motoristas que não os ensina a dirigir cabalmente, um processo de habilitação superficial, a eventual corrupção de fiscais de trânsito e, diante de tanta imprevisão, que o cidadão cumpridor dos seus deveres acabe fotografado no interior de seu carro e, pior, tenha a fotografia divulgada.

     Pior ainda se o cidadão retratado for uma autoridade pública e não houver notícia de que tenha sido multado por eventual violação de regra de trânsito. Seriam normas que, como teias de aranha, prenderiam os débeis, mas seriam destruídas pelos fortes e poderosos. Teríamos um sistema em que os idosos, as senhoras e os pacatos seriam constrangidos por truculentos "seguranças particulares" à porta de bancos e os grandes crimes financeiros continuariam a ser perpetrados pelos "colarinhos brancos" que entram no mesmo edifício pelo heliporto. A segurança com justiça deve ser igual para todos.

     Não é possível um guarda para cada cidadão. Um cidadão, em princípio, não precisa de guarda porque bem formado. A democracia implica educação para o respeito aos direitos dos demais. O homem não é nem o inocente de Rousseau e nem o perverso de Hobbes, mas um ser com qualidades positivas e negativas e que pode lesar bens jurídicos alheios e, portanto, ser submetido ao devido processo legal e punido com justiça para que aprenda a viver em comunidade, se recupere e para que os demais evitem violar as normas. É evidente a vantagem de se prevenir a ocorrência de infrações. Contudo, a forma de prevenir violações é importante.

     Devemos promover segurança sem violar os direitos humanos. Portanto, a vigilância eletrônica deve ser objeto de legislação específica que preveja as hipóteses de aplicação, a forma de sua utilização, a preservação das imagens gravadas, a disciplina de seu uso, guarda e destruição. O problema não é do uso da tecnologia ou da presença física de um funcionário encarregado de segurança, mas a falta de norma que, criando um sistema equilibrado, enseje a vigilância com certa cautelaridade, exigindo ao menos a probabilidade de lesão a bem jurídico para a sua atuação, em vez de total e indiscriminada incidência.

     Ninguém questionaria que se acionasse o sistema de filmagem das cenas de um assalto a partir do momento em que se percebesse a ocorrência ilícita, o que não é aceitável é que todos os cidadãos sejam submetidos à gravação indiscriminada em situações de absoluta tranqüilidade. Por outro lado, as gravações de crimes deveriam ser imediatamente entregues para as autoridades públicas definidas em lei, pois não é razoável que se veicule em redes de televisão as cenas que identificam inocentes, prováveis testemunhas que podem ser alvos dos integrantes do crime organizado. Não se sabe se houve cortes nas filmagens e sequer o seu destino. Portanto, deve ser regulada por lei a atividade preventiva de colheita de provas de infrações, fixando-se um mínimo de razoabilidade para início das filmagens.

     Enquanto não há sequer ameaça de lesão a bem jurídico não deve ser permitida a filmagem. Em princípio, as cidades devem ter um mínimo de segurança para que sejam utilizadas por aqueles que pagam impostos. Uma cidade insegura não atrai investimentos, turismo e não oferece um nível adequado de vida aos seus integrantes. Se o grau de violência é tão intenso que exigiria a instalação permanente de sistema de vigilância eletrônica é porque as autoridades encarregadas da segurança falharam. Estas autoridades estão convocadas a melhorar a distribuição de renda, a escola pública e privada, a saúde pública, o sistema carcerário. Punir os culpados com justiça e não subtrair a privacidade dos cidadãos.

 

Hipóteses de desvendamento da privacidade

     Em princípio a Constituição Federal protege a privacidade das pessoas. É viável a interceptação telefônica, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma da lei, para fins de investigação criminal ou instrução processual. Sobreveio a Lei 9.296/96 que impede a gravação telefônica quando não houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal, a prova puder ser feita por outros meios disponíveis ou o fato investigado constituir infração punida, no máximo, com pena de detenção. Como diz Nelson Nery Jr. a "solução da lei, quanto à necessidade da interceptação telefônica nada mais é do que, na prática, a adoção do princípio da proporcionalidade, já que a ofensa ao direito constitucional de inviolabilidade da comunicação telefônica não se justifica, ou seja, é maior do que o benefício que eventualmente se pretenda obter com tal ofensa"(5). Exige-se, mais, a descrição clara da situação investigada e a indicação dos investigados. O pedido deverá demonstrar que a interceptação é necessária à apuração de infração penal e os meios a serem empregados. A decisão judicial deverá ser fundamentada, indicando a forma de interceptação e a sua duração que não poderá exceder 15 dias, em regra. A gravação será transcrita e encaminhada ao juiz acompanhada de relatório. Prevê a inutilização da gravação que não interessar à prova.

   continua


 

1- Jorge de Figueiredo Dias, Liberdade-Culpa-Direito Penal, 3a ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1995, p. 144.

2- "O desacerto moral, o pecado, o vício, é, nesse contexto, precipuamente uma voluntária recusa a seguir leis que estão impressas no próprio ser do homem. A-gir contra a moral adquire, desse modo, um caráter de auto-agressão: assim co-mo golpear uma parede com a cabeça viola leis físico-biológicas, assim também pode haver uma violação de leis morais, referentes à realização do ser do ho-mem em sua totalidade. Por exemplo, alguém que pautasse sua vida pela má-xma: "Amar-me a mim mesmo sobre todas coisas!" estaria violando também u-ma lei natural, referente à natureza humana: pois o homem é um ser tal que sua felicidade, sua realização, é – como diz Kierkgaard – uma porta que abre para fora: quem a força para abrir para dentro, emperra-a" (Luiz Jean Lauand, Ética e Antropologia, São Paulo, Mandruvá, 1997, p. 12).

3- Rafael Gomez Perez, Problemas Morais da Existência Humana, Lisboa, Edições Prumo, 1983, p.184.

4- Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Aequitas-Editorial Notícias, 1995, p. 126.

5- Nelson Nery Jr., "Proibição da Prova Ilícita", in Justiça Penal 4, coord. Jaques de Camargo Penteado, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997, p. 26.