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A Vocação Humana: uma Abordagem
 Antropológica e Filosófica

 

Sílvia Regina Rocha Brandão
Fac. de Artes S. Marcelina (S. Paulo)

 

            O trabalho de acompanhamento de jovens em suas escolhas vocacionais revelou que, a despeito do acesso a informações e processos de autoconhecimento, eles encontravam-se inseguros e insatisfeitos diante de suas opções profissionais. Tornou-se evidente a necessidade de compreender esta dificuldade de escolha entre os jovens e de buscar possibilidades de enfrentá-la através do processo de Orientação Vocacional.

1. Escolha profissional: dificuldades atuais e perspectivas

“...Com Deus existindo, tudo dá esperança:

sempre o milagre é possível, o mundo se resolve.

Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem,

e a vida é burra.”

(João Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas, p. 48).

            O momento da opção profissional tem se revelado como dotado de uma crescente dificuldade de escolha entre os jovens, constatada por especialistas em Orientação Vocacional, por pesquisas acadêmicas e pela grande imprensa.

            Nos resultados de uma pesquisa realizada em 1992, sob coordenação da Profª. Drª. Maria de Lourdes Ramos da Silva, com alunos de graduação da Universidade de São Paulo apurou-se que “acentua-se a significativa porcentagem de alunos dos últimos anos que, se lhes fosse possível voltar novamente ao momento do vestibular, não escolheriam novamente o mesmo curso”. (Silva 1992, p. 99). A evasão de cursos universitários tem aumentado (quase metade dos alunos que entram na faculdade a cada ano no Brasil desistem do curso — cf. Revista Veja de 20/08/97) gerando prejuízo não apenas pessoal; mas, também, social afetando especialmente as instituições públicas, cujos recursos acabam por não ser adequadamente aproveitados. A causa desta evasão, certamente, não está na falta de informações ou de opções. O problema reside na incapacidade de decidir-se, de posicionar-se e, principalmente, na falta de critérios claros para tomar tais decisões.

            A sociedade contemporânea, em grande parte, revela muita insegurança e incerteza quanto a valores: não há pontos de referência estáveis. Isto gera crise e confusão, tornando muito difícil para o homem atual identificar, em última instância, “o que vale a pena” e dedicar-se a isto; o afastamento das questões mais essenciais como o porquê da existência, um sentido ou causa à qual entregar a vida, gera esquecimento ou inexistência de critérios para orientar e sustentar decisões ou ações: “a modernidade destruiu a metafísica do ser e terminou autodestruindo a metafísica do sujeito. Resta uma débil ontologia na qual a realidade é substituída por sua representação. (...) Diante do vácuo do simples rechaço, a educação precisa ‘encontrar o fundamento’ tanto para uma compreensão da realidade quanto para orientar e justificar as nossas próprias ações.” (Garcia Hoz 1988, p. 119).

            A dificuldade do homem contemporâneo de tomar consciência de si mesmo, de posicionar-se diante da realidade e a experiência freqüente de indecisão, são conseqüências de uma mentalidade que, negligenciando a necessidade deste fundamento, não favorece a descoberta de valores, nem um autêntico desenvolvimento humano. Não havendo uma clara hierarquia de valores, a postura assumida diante de situações que exigem soluções imediatas é a de relatividade, sem aprofundamento das razões das escolhas ou atitudes a serem assumidas.

            À confusão de valores, soma-se a instabilidade da economia e do mercado de trabalho. A forma atual de organização do trabalho, sempre mais competitiva e em rápida transformação, tem exigido definição profissional cada vez mais precoce e, ao mesmo tempo, oferecido uma crescente disponibilidade de mão de obra. Para os jovens, cada vez mais novos ao serem solicitados a uma definição neste universo profissional, é necessário oferecer algo que transcenda as perspectivas instáveis e dramáticas do mercado de trabalho. Esta urgência vem sendo captada por educadores que apontam a necessidade de educar para o mundo do trabalho e não apenas para o mercado de trabalho. “Deve-se formar para o mundo do trabalho ou para o mercado de trabalho? Formar para o mundo do trabalho significa capacitar o educando a viver de forma cooperativa e útil na sociedade em que se insere; já formar para o mercado de trabalho é buscar fornecer mão-de-obra exigida pelo processo produtivo.” (Silva 1998, p. 115). Ao realizar a escolha profissional dentro deste contexto dinâmico e instável é necessário considerar não estritamente a profissão, mas concebê-la dentro de uma dimensão mais ampla e, ao mesmo tempo essencial, que é a da vocação, possibilitando transcender o nível ocupacional inclusive para poder incluí-lo ou transformá-lo.

            É necessário que, ao realizar uma opção tão fundamental como a vocacional que, em princípio envolve toda a vida, o jovem possa ser convidado a aproximar-se, a perguntar-se sobre o sentido e finalidade de seu existir. Às questões normalmente colocadas como ‘o que gosto de fazer?’, ‘o que me dá prazer realizar?’, ‘o que sei fazer?’, ‘com qual profissão me darei bem na vida?’, devem ser acrescentadas: ‘a que sou chamado?’, ‘que sentido pode haver no trabalho que desejo realizar?’, ‘qual a finalidade do meu existir?’. Assim, no processo de orientação vocacional, além das dimensões psico-sociológicas, devem ser igualmente consideradas as dimensões antropológica e filosófica, que são fundamentais para o entendimento da vocação humana.

            Considerar uma questão do ponto de vista filosófico significa buscar a verdade sobre ela, exige uma preocupação com o todo e não apenas com sua aplicação, seu uso imediato. Nessa perspectiva, para apreender o que há de essencial acerca da vocação do homem deve-se partir da grande interrogativa sobre o ser do homem, de suas características idiossincráticas. Desta forma, partindo da concepção de pessoa - segundo os autores contemporâneos Josef Pieper, Viktor Frankl, Luigi Giussani -, de algumas categorias que apresentem tanto as potencialidades especificamente humanas quanto a expressão delas no relacionamento com a realidade, pode-se chegar a uma compreensão mais ampla da vocação humana - a partir também de filósofos contemporâneos como Julían Marías e Alfonso Lopez Quintás -, de forma a oferecer aos jovens subsídios para realizar uma escolha e um caminho vocacional mais humanos.

2. Características antropológicas do homem

“Humano significa: conhecer além das estrelas

 que estão por cima do teto que nos cobre, isto é,

 além de toda a adaptação necessária ao concreto de todos os dias,

 estar consciente da totalidade das coisas,

 superar o ‘meio’ e adentrar-se pelo mundo.”

(Pieper, Que é filosofar? Que é acadêmico?, p.22)

            A compreensão do que é o homem está vinculada à idéia de pessoa. O conceito de pessoa esteve sempre presente em toda tradição do pensamento ocidental; os pensadores gregos identificaram no ser do homem duas categorias ou dimensões: o corpo e a alma, o espírito e a matéria. É no homem que estas duas dimensões da realidade se acham presentes, constituindo uma unidade indissolúvel.

            A pessoa, uma totalidade aberta a outras totalidades, é considerada em toda a tradição judaico-cristã um valor absoluto: a pessoa vale por si. O homem é pessoa, com possibilidades muito precisas de percepção e relacionamento com o real, que podem ser descobertas e utilizadas a partir de um trabalho de humanização.

            A pessoa, olhando seu próprio existir, imediatamente reconhece que é criatura, não é capaz de se dar a própria existência. É feita por um Outro, que lhe confere o ser segundo uma certa direção e forma, como explica Luiz Jean Lauand: “Já vimos que ao criar Deus dá o ser às criaturas. Mas as criaturas não são de qualquer maneira; o ser atualiza — torna atual, dá ato, torna real — uma essência, um protótipo ideal pensado, projetado por Deus. Ora, isto significa que o ser dos entes não é caótico e absurdo, mas estruturado, organizado, planejado; poderia ser comparado com um prédio, que é concretização material de uma planta ou projeto arquitetônico. No prédio diferentemente do canteiro de obras, cada tijolo, cada cano, cada fio, tem o seu lugar, e o todo está harmonicamente integrado — ordenado — em função de uma finalidade.” (Lauand 1993, p. 38). Há no homem alguns traços que o impulsionam, uma condição original que o dirige para determinado desenvolvimento que, porém, só será atingido com sua atuação livre e responsável.

            A característica própria, distintiva do ser humano é a razão. Luigi Giussani afirma: “Por razão entendo o fator distintivo próprio daquele nível da natureza chamado homem, isto é, a capacidade de dar-se conta do real segundo a totalidade dos seus fatores.” (Giussani 1988, p. 31). Razão é a estrutura interna de compreensão do homem, sua capacidade intelectual de compreensão. Esta forma peculiar de se relacionar e conhecer o real foi chamada pela tradição do pensamento ocidental de capacidade de conhecimento espiritual e é definida como “capacidade de pôr-se em relação com a totalidade das coisas existentes. A essência do espírito não se define tanto pela nota de incorporalidade, mas antes de tudo, pela capacidade de relacionar-se com a totalidade do ser. Espírito significa força de relacionabilidade com a totalidade do ser, tão ampla e compreensiva que o campo de relações que lhe está ordenado transcende essencialmente os limites do mundo circundante.” (Pieper 1981, p. 17). Assim, a possibilidade de relação do homem com a realidade é extremamente ampla e elevada, tornando-o capaz de estar diante da totalidade do real: o ‘mundo’ do espírito é a totalidade do ser.

            É no nível espiritual que se encontra uma outra característica distintiva do homem: a busca de sentido. “O homem é um ser que, propriamente e em última instância, se encontra à procura de sentido. Constituído e ordenado para algo que não é simplesmente ele próprio, direciona-se para um sentido a ser realizado (...)”. (Frankl 1990, p. 11). Ao definir o homem como desejo de sentido, Frankl busca superar teorias que concebem o homem como “um ser que reage a estímulos ou obedece a impulsos” (Frankl 1989, p. 23) : além de buscar a satisfação de suas necessidades e seu equilíbrio homeostático, ele tem urgência em encontrar e realizar um sentido. É inerente ao homem o anseio por descobrir um ‘para quê’, uma finalidade última para existência, algo pelo qual valha à pena entregar a vida. A possibilidade de realizar o desejo de sentido, a afirmar um significado último para a existência, está em responder, de forma singular, própria, às situações concretas, cada uma delas única e irrepetível. Uma vida plena de sentido se constrói buscando e encontrando o significado de cada experiência cotidiana.

            O ser humano é caracterizado pela capacidade de ir além de si, está dirigido a algo ou alguém diferente de si. Viktor Frankl denominou autotranscendência esta abertura radical do ser humano à realidade. “Ser homem necessariamente implica uma ultrapassagem. Transcender a si próprio é a essência mesma do existir humano.” (1990, p. 11). O homem não se contenta em permanecer fechado em si mesmo, reconhece que lhe corresponde profundamente viver por um ideal, por uma finalidade última.

            É na relação com a realidade que o homem descobre suas potencialidades, necessidades e as possibilidades de nela intervir; é no encontro com o real que pode reconhecer a singularidade e unicidade de seu ser. Frankl afirma que a existência humana, a existência pessoal, representa uma forma especial de ser: “ser-pessoa significa um absoluto ser-diferentemente Com efeito, o essencial e valioso “caráter de algo único” de cada homem não significa senão que ele é precisamente diferente de todos os outros homens”. (Frankl 1989, p. 117). Assim, cada homem é único e irrepetível, tem um modo próprio de existir, um ‘ser-assim’ que lhe permite responder a circunstâncias irrepetíveis, afirmando valores que só ele seria capaz de fazê-lo naquele momento, daquela maneira.

            É próprio do homem a capacidade de decidir, de agir e, portanto, de responsabilizar-se. Uma das manifestações da natureza humana é a capacidade de agir com autonomia e responsabilidade, de posicionar-se diante da realidade com autodeterminação. Ser responsável significa assumir decisões e atitudes dentro das circunstâncias concretas da vida, afirmar valores e posicionamentos a partir de critérios que são identificados pela consciência. O ser humano é responsável porque é livre, porque é um ser que decide, escolhe como proceder em sua existência. A liberdade é a capacidade do homem de conduzir-se a si mesmo, de estabelecer, orientado pela consciência, os critérios que nortearão seus atos e escolhas, de decidir-se pelo bem. Para exercer essas potencialidades especificamente humanas como a responsabilidade e a liberdade, é preciso um processo educativo “no qual a pessoa possa desenvolver sua inteligência para descobrir o bem e sua vontade para realizá-lo” (Garcia Hoz 1988, p. 59).

3. A vocação a partir da concepção de homem como pessoa

“Teodoro falou uma coisa alinhada de perfeita:

‘a vocação é um afeto’.”

(PRADO, Adélia. Manuscritos de Felipa, p. 104)

            O conceito vocação tem sido entendido de forma redutiva, na maioria das vezes identificado com o sentido profissional ou muito próximo a ele. Julián Marías denomina de vocações parciais aquelas que se referem a alguns aspectos ou facetas da personalidade, comuns a várias pessoas, portanto, genéricas. Seriam formas secundárias de vocação. A vocação no sentido mais profundo e radical envolve a pessoa em sua totalidade e singularidade: “a vocação concreta (...) é única, rigorosamente pessoal; é a vocação em que cada um consiste mais propriamente, e coincide com o eu de cada um”[1] (Marías 1984, p. 69)

            A vocação é um convite, uma proposta à liberdade e respon-sabilidade do homem, à qual ele pode aderir ou não, mas não lhe compete fabricá-la ou modificá-la. É um chamado que vem de encontro ao homem, a ele cabe apenas atender ou não. Marías esclarece que “a vocação também não é escolhida, porém não seria correto dizer que me encontro com ela; antes ela me encontra, me chama, e correlativamente a descubro; não me é imposta, e sim apresentada, e embora não esteja em minhas mãos ter ou não ter essa vocação, permaneço frente a ela com uma essencial liberdade: posso segui-la ou não, ser fiel ou infiel a ela.” (Marías 1983, p.24).

            Tampouco as circunstâncias da vida de uma pessoa podem ser escolhidas. Não são decisões suas o lugar ou época em que nasceu, sua família, características físicas, etc... Estas circunstâncias são impostas e é a partir delas que sua vida será configurada; porém, a escolha ou decisão humana incide no modo, no ‘como’ vai construir sua história, na maneira particular, pessoal de se relacionar com o que lhe foi dado. “O que se escolhe na vida é algo diferente: não o que se é, e sim quem se vai ser. Há que se precisar um pouco mais: não escolho quem tenho que ser (isto vem definido pela vocação, frente a qual, repito, sou livre porém à custa da inautenticidade, se a uso para afastar-me dela) e sim quem e de que maneira vou ser; em outras palavras, qual vai ser a trajetória efetiva de minha vida, na medida em que permite a circunstância.”(Marías 1983, p.24).

            Assim, a trajetória é expressão da liberdade da pessoa, é a realização de um caminho pessoal construído a partir da vocação proposta e da circunstância imposta.

            A descoberta da vocação antropológica, do chamado a ser si mesmo e a sua realização, através das trajetórias biográficas, esclarece e dá sentido às vocações específicas, como as profissionais, dando-lhes um caráter único e insubstituível. A vocação profissional — que supõe a escolha de uma carreira profissional, bem como seu cumprimento — deve estar subordinada, então, a afirmação de quem a pessoa é e deseja ser: é este ‘alguém’ que dá consistência e significado para o que vai ser realizado.

4. O trabalho com expressão da ontologia humana

“A vida do homem consiste no afeto

que principalmente o sustenta

 e no qual encontra a sua maior satisfação.”

São Tomás de Aquino

            Este conjunto de características antropológicas da vocação humana possibilitam aprofundar temas relacionados ao caminho vocacional, que são comumente entendidos a partir da perspectiva hedonista e redutiva, como o conceito de auto-realização, felicidade e do sentido do trabalho.

            O conceito de auto-realização, modernamente identificado como conquista de satisfação, sucesso, prazer, tem sido cada vez mais valorizado, e ao mesmo tempo, mal compreendido. A busca de realização está direcionada a aspectos parciais do homem, a ponto de muitas vezes se conceber ‘realização’ como sinônimo de realização profissional, de status ou sucesso advindo do exercício profissional. Considera-se realizado quem atingiu seus objetivos ou está em pleno desenvolvimento dos planos estabelecidos para si; a realização é concebida como resultado de empenho e domínio sobre o real, de forma a alcançar metas previamente estabelecidas.

            Ao tratar do tema da auto-realização, São Tomás “refere-se a um processo levado a cabo livre e responsavelmente e que incide sobre o nível mais fundamental, o do ser-homem” (Lauand 1993, p. 40). Este processo está dirigido ao máximo das possibilidades humanas, ao ultimum potentiae: “o máximo que se pode ser enquanto homem, a realização ao Máximo (ultimum) do que somos, do que estamos chamado a ser (potentiae)” (Lauand 1988, p. 27). Isto significa que a auto-realização do homem é construída durante toda a vida, é um movimento dinâmico contínuo, onde constantemente o homem experimenta sua existência como um ‘ainda não’ ou um constante ‘tornar-se’, ‘vir-a-ser’. Assim, o homem está sempre a caminho de sua plena realização, é um caminhante, um peregrino que se encontra em um percurso: “outro não é o sentido do conceito de ‘status viatoris’. Existir como homem significa estar ‘no caminho’” (Pieper 1969, p. 18)

            A busca da realização, a aspiração à felicidade é próprio da pessoa, dos seres espirituais, é um ‘querer’ dado pela natureza, como explica Pieper: “Afirma-se que queremos a felicidade, por natureza. Nós, isto é, todos os seres espirituais. Somente uma pessoa, um alguém, pode ser feliz ou infeliz. (...) São Tomás não se cansa de exprimir sempre em novas formulações este pensamento: ‘O homem quer a felicidade por natureza e por necessidade’ (I, 94, 1)”(Pieper 1969, p.11)

            O desejo de felicidade é, então, um querer natural, próprio da natureza humana, que a constituiu segundo esta direção e forma. Esta vontade natural de felicidade age como uma força de gravidade, sobre a qual o homem não tem nenhum poder, mas para a qual tende inexoravelmente, irresistivelmente. O homem está instalado na felicidade, e o fato de uma experiência feliz não perdurar para sempre é algo que “o afeta exteriormente, mas não em sua condição interna que pede perduração. (...) Ser feliz é pretener continuar sendo feliz.” (Marías 1989, p.265) Portanto, a felicidade está vinculada à autenticidade da vida humana, à possibilidade de relacionar e integrar cada aspecto parcial com um ponto unitário, na busca da realização total, da plenitude do viver humano.

            O trabalho é um aspecto fundamental da vida por atender às necessidades humanas, tanto do ponto de vista material como espiritual, já que através das tarefas concretas o homem se sustenta e, ao mesmo tempo, expressa seu modo original de realizar valores em um determinado tempo e lugar.

            A descoberta do valor de sua contribuição pessoal para a vida em sociedade é fundamental para o homem contemporâneo que vive em uma sociedade onde é valorizado o individualismo, o isolamento e a competitividade.

            O trabalho pode constituir-se em uma oportunidade privilegiada para o homem atual redescobrir a possibilidade de autêntica relação eu-mundo — onde o pessoal não seja negado, esquecido ou dissolvido — na medida em que o trabalhar se torne ocasião de encontro. O filósofo espanhol contemporâneo, Alfonso López Quintás afirma que é no âmbito do encontro que a pessoa se desenvolve e se aperfeiçoa, é no encontro com o outro que o homem descobre-se, revela-se a si mesmo. Para que haja encontro é necessário ir além de uma simples proximidade com o outro; é fundamental a abertura, o diálogo, a comunicação: “o encontro é um enriquecimento mútuo: tu és um âmbito de vida, repleto de possibilidades, projetos, etc. Tu os ofereces a mim e eu os ofereço a ti; tu tens vontade de compreender-me e eu tenho vontade de te compreender; eu tenho vontade ir contigo, tu, comigo; e criamos um campo de jogo comum, criamos um campo de liberdade comum e isso é o encontro.î (Quintás 1999, p. 11). Quando há encontro de verdade é possível superar uma lógica individualista e sectária, para afirmar uma postura capaz de abertura, generosidade e acolhimento do diferente.

            Uma exigência fundamental para se gerar a possibilidade de encontro é buscar e compartilhar valores: quando as pessoas dirigem-se e empenham-se para atingir o objetivo último do trabalho que fazem juntas, que é a realização do bem comum, colocam-se a caminho, cada uma com sua contribuição, para a construção de uma nova realidade comum.

            O trabalho constitui, assim, uma possibilidade de colocar-se a serviço de outros. É nesta possibilidade de ser uma contribuição e expressão original que o trabalho ganha relevância e significado para a pessoa, constituindo-se ocasião de descoberta e integração da própria personalidade. Torna-se, então, fundamental a maneira como se trabalha, o que se expressa de especial e único, adquirindo menor importância a tarefa em si: “o que importa não é, de modo algum, a profissão em que algo se cria, mas antes o modo como se cria; que não depende da profissão concreta como tal, mas sim de nós, o fazermos valer no trabalho aquilo que em nós há de pessoal e específico, conferindo à nossa existência o seu ‘caráter de algo único’, fazendo-a adquirir, assim, pleno sentido.” (Frankl 1989, p. 160). Portanto, a realização que pode advir do trabalho está vinculada à expressão da singularidade do ser, daquilo que há de específico e original em cada homem.

            A plena realização humana não pode ser encontrada sem que estas características antropológicas possam ser descobertas e experimentadas. As decisões ou escolhas, bem como a realização do caminho vocacional, devem ser iluminadas e sustentadas por estas características, de outra forma tornam-se superficiais e frágeis. A dimensão profissional é apenas um aspecto da vocação humana e, portanto, a ela deve estar submetida.

            A possibilidade de um acompanhamento e ajuda eficaz nos processos de Orientação Vocacional está vinculada à compreensão da vocação antropológica do homem, que possibilita uma visão essencial e abrangente da questão. Quem é homem? Para que educar? Existe um ideal, que sociedade formar? Estas são questões fundamentais para um trabalho eficiente nas áreas da psicologia, pedagogia, sociologia. A Antropologia Filosófica deve estar na base de qualquer trabalho junto ao ser humano.

Referências Bibliográficas

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[1]. "La vocación concreta (...) es única, rigurosamente personal; es la vocación en que cada uno consiste más propiamente, y coincide con el yo de cada qual..."