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Escalada Rumo à Educação de Qualidade
Ana Lúcia Carvalho Fujikura
Mestre em Letras - CEAr- Dlo-Fflch-USP -
analcf@uol.com.br
"Quando você demonstra interesse e boa vontade, realiza tarefas lindas!". Escrita por uma professora da segunda série do Ensino Fundamental e dirigida a uma criança de 8 anos, estudante de um dos grandes colégios da cidade de São Paulo, a frase pode até parecer um estímulo, mas revela, nas entrelinhas, o desencontro existente entre a educação atual e o público a que se dirige – desencontro fruto do desconhecimento, da desatualização dos profissionais envolvidos com educação (notadamente daqueles que lidam com a educação infantil) e da ainda incipiente participação dos pais na vida escolar dos filhos. É justamente desse descompasso que trataremos neste artigo.
Se a autora da infeliz frase imaginasse o quanto suas palavras soam terrivelmente cruéis, provavelmente ficaria arrependida: a "falta de interesse" e a "má vontade" sugeridas pela professora permanecem gravadas na mente da criança com muito mais força do que a mensagem aparentemente incentivadora. À criança, resta, então, a perplexidade e a estigmatização definitiva: a sua falta de correspondência às expectativas (e por que corresponder?) só pode ser caracterizada como "desinteresse" e "má vontade" (se já é assim com apenas 8 anos... o que esperar do futuro?). Considerar uma criança de 8 anos (saudável, sem problemas emocionais, com uma família estável) "desinteressada" e de "má vontade" mostra, na verdade, que o verdadeiro "desinteressado" é justamente o outro lado – que nunca questionou ou sequer refletiu por que as atitudes da criança traduziam-se em aparente "desinteresse". Ao contrário, o problema da "desatenção" da criança foi logo decifrado, transferindo-se a responsabilidade para ela mesma, por meio de um duvidoso juízo de valor.
Tal fato – muito mais comum do que se pensa – expõe o quão devagar anda a atualização dos professores em geral e, conseqüentemente, das escolas. Naturalmente, todas as circunstâncias políticas, econômicas, culturais e sociais devem ser levadas em consideração ao empreendermos uma análise da atual conjuntura educacional – entretanto, mesmo que todas essas circunstâncias justifiquem tal conjuntura (e a justificam em grande parte), não podemos nos acomodar diante do sacrifício e do desperdício do potencial das novas gerações, fruto da falta de um empenho mais objetivo em busca de uma educação verdadeiramente de qualidade.
Tratemos, inicialmente, do desconhecimento – apesar da velocidade das transformações ocorridas no campo da tecnologia e do acesso facilitado às informações, percebemos que tal evolução chegou apenas em parte ao universo escolar. Se (em se tratando de escolas particulares) há mais computadores, mais quadras esportivas, mais laboratórios de ciências, mais oportunidades para se aprender idiomas e esportes, por outro lado (e, aqui, escolas particulares e públicas se assemelham), as atitudes e a "essência" remontam a anos passados – "forma" e "conteúdo" acabam por chocar-se, pois tecnologia e oportunidades diversas, de um lado, e arcaísmo nas relações, na forma e nos objetivos de ensino, por outro lado, formam um universo contraditório e sem sentido para o aluno. É o caso expresso pelo "interesse", "boa vontade" e "tarefas lindas" – o conhecimento atual aponta para atitudes criativas, para a busca de soluções inusitadas, para a liderança ética, para o resgate dos valores... enquanto o (des)conhecimento da escola diz à criança: siga o modelo, conforme-se, não seja curioso, não queira ver o que há do outro lado da janela, tenha um pouco de "boa vontade" e mereça os nossos cumprimentos...
O mundo, a partir da globalização gerada pela evolução das comunicações e pelas transformações econômicas, pede a formação de um profissional versátil, com elevada capacidade de aprendizado, hábil nas relações interpessoais, ético, poliglota, desenvolvendo 3 ou 4 carreiras ao longo da vida e outras tantas exigências que, apesar de parecerem descabidas, revelam, na verdade, todo o potencial de habilidades que o ser humano é capaz de desenvolver. Esse conhecimento, entretanto, não chegou à escola – e se chegou, não se sabe o que fazer com ele. Não se entenda, aqui, porém, que falamos de uma educação voltada inteiramente para o que o mercado de trabalho nos pede hoje. Trata-se, sim, de não transformar a escola em um mundo à parte, desconectado da realidade da vida e que impede o aluno de desenvolver toda aquela série de habilidades que evidenciam todo o seu potencial.
Não se entenda, igualmente, que as escolas devam apenas munir seus alunos de uma série de requisitos, colocados em prática num futuro próximo, esquecendo-se e desprezando-se todo o saber acumulado pela humanidade nos campos da literatura, filosofia, ciência, matemática etc. Os fins da educação sempre voltaram-se para a transmissão do legado cultural da humanidade – e hoje isso não só não é diferente, como pode ser feito de modo muito melhor, muito mais interessante e "saboroso", graças não só à facilidade de informações como também aos conhecimentos adquiridos, ao longo dos últimos anos, acerca dos perfis de desenvolvimento das crianças e jovens.
O desconhecimento é gerado, em grande parte, pela desatualização. Por exemplo: as contribuições dos estudos sobre neurologia infantil ainda são quase que desconhecidas aqui – basta ver o exíguo número de títulos publicados a respeito e o trato dado ao assunto nas universidades (quase nenhum ou nenhum, na maioria dos casos). Saber que a criança começa a aprender desde o momento da sua concepção, retroalimentando seu mundo interior a partir do que recebe do exterior, e que, a partir de seu nascimento, é capaz de assimilar toda a estimulação fornecida pelo ambiente (a chamada plasticidade do cérebro humano) é uma afirmação hoje comum nos meios científicos e que deveria redimensionar a importância dos primeiros anos de vida de uma pessoa: as influências recebidas do ambiente, durante o período compreendido entre os 0 e os 8 anos de idade, deixam marcas definitivas no indivíduo.
Ao nascer, a criança possui bilhões de neurônios que estabelecerão conexões entre si chamadas sinapses – tais conexões multiplicam-se rapidamente conforme a estimulação exterior. O fenômeno das sinapses configura as estruturas funcionais do cérebro, que constituirão a base fisiológica das formações psíquicas condicionantes das aprendizagens. E por que o período até os 8 anos de idade acaba sendo importante? Pelo simples fato do estabelecimento de conexões neuronais seguir uma curva descendente: no nascimento, ao mesmo tempo em que a possibilidade de sinapses é ilimitada, inicia-se uma "corrida" contra o tempo, pois, a partir dos 7 ou 8 anos, essa possibilidade é praticamente nula. Portanto, em nossas vidas de adulto, vivemos com as conexões formadas na infância! Naturalmente, aprendemos novas habilidades, mas, para tanto, utilizamos somente aquelas conexões.
Tal conhecimento obriga-nos, então, a oferecer ricos e variados estímulos à criança (desde o nascimento!), uma vez que provocarão um efeito imediato na configuração cerebral e, em conseqüência, na qualidade das funções psíquicas, repercutindo na aprendizagem e no desenvolvimento. A inexistência de tais estímulos pode provocar efeitos negativos e, muitas vezes, irreversíveis. A estimulação levada a cabo na infância envolve aspectos que abrangem tanto o desenvolvimento sensorial quanto o desenvolvimento das habilidades motoras e cognitivas. Tal estimulação acompanha o processo de construção do sistema nervoso, que se dá em várias etapas – da concepção até por volta do sexto (ou oitavo) ano de vida.
Oferecer ao bebê e à criança um ambiente rico em estímulos favorece o seu desenvolvimento integral, enriquecendo sobremaneira a sua formação intelectual. Infelizmente, quando nos deparamos com a grande maioria das creches e das escolas de educação infantil, observamos o total desconhecimento a respeito de fatos científicos já tão consumados no exterior: a inexistência de espaços amplos que favoreçam a atividade física necessária e adequada, a falta de programas que fomentem a curiosidade e o espírito investigativo, o insípido desenvolvimento de habilidades artísticas, transformam essas escolas e creches em meros "depósitos" de crianças, em vez de verdadeiros centros educativos.
O desconhecimento dos educadores e, conseqüentemente, dos pais a respeito da importância de uma educação infantil de qualidade é notado pela proliferação dessas pseudo-escolas, conseqüência da falta de rigor (ou de opção...), por parte dos pais, na escolha de uma verdadeira escola para o filho. Tanto pais quanto educadores chegam até mesmo a questionar: "mas eu não tive nenhuma estimulação desse gênero e sou bem-sucedido profissional e financeiramente, para que, então, todo esse aparato?". Pois respondo: o mundo em que vivemos hoje e que possibilitou esse êxito financeiro e profissional não será o mundo de amanhã, com toda a certeza... – assim como o mundo de nossos avós há 50 anos não é o mesmo mundo de hoje... Portanto, para aqueles que ainda não atentaram para a necessidade urgente de investimento (por parte do Estado principalmente, mas, também, dos pais) na educação das novas gerações, alertamos para o risco de termos acentuada a imensa diferença sócio-econômica existente entre o nosso país e os países que já enxergam essa realidade, fazendo os investimentos necessários.
Não só as fascinantes descobertas a respeito do cérebro (ocorridas principalmente nos anos 90, conhecidos como a "Década do Cérebro") trouxeram um novo rumo à educação infantil: em vista dos problemas observados entre a juventude (drogas, depressão, promiscuidade, delinqüência etc.), cresceu igualmente o interesse pelo efetivo desenvolvimento moral das crianças. Ao falarmos em "desenvolvimento integral", devemos ter como objetivo educativo também a formação moral – que passa pelo exercício das virtudes: "hábitos como diligência, sinceridade, responsabilidade pelos próprios atos, coragem, perseverança..., realmente nos capacitam a executar melhor nosso trabalho (...). São nossas virtudes (...) que nos possibilitam ser melhores estudantes, melhores pais, melhores esposos, melhores professores, melhores companheiros, melhores cidadãos. A auto-estima e a satisfação que acompanham as realizações são os frutos e não os sustentáculos da virtude. As virtudes precisam ser cultivadas em primeiro lugar. Além disso, virtudes são um meio para a felicidade. Martha Washington resume bem essa relação existente entre virtude e felicidade: ‘Grande parte da nossa felicidade ou angústia depende de nossas disposições [virtudes] e não das circunstâncias. Nós carregamos as sementes de uma ou de outra dentro de nossas mentes, onde quer que sigamos’. Professores e escolas têm o papel de trazer à tona essas sementes da virtude"1.
Naturalmente, se as pesquisas científicas a respeito do cérebro não transformaram a nossa prática educativa atual, que dirá a evolução do conhecimento a respeito do desenvolvimento da moralidade infantil, bem como da socialização baseada, simultaneamente, na autonomia e na ajuda mútua, na capacidade de tomar decisões e na escuta de opiniões... Não precisamos, portanto, nos alongar nesse ponto. Vivemos, na educação, um momento paradoxal: ao mesmo tempo em que mudanças são proclamadas e sugeridas, visando acompanhar as transformações pelas quais o mundo passa atualmente, perdemos de vista os fins éticos e culturais que a educação deve empreender. E, espremidos nessa "crise de identidade", encontramos os pais – provavelmente as maiores vítimas da desorientação e da falta de informações objetivas a respeito do que deve ser, hoje, uma educação de qualidade.
A maioria dos educadores desconfia da capacidade que os pais têm de educar os filhos, afastando-os da escola ("pais, somente do portão para fora"). Perdem, com essa atitude, uma ótima oportunidade de conhecer as famílias, orientá-las, ressaltar o papel fundamental que possuem na educação dos filhos, estabelecendo, assim, uma relação de confiança onde todos só têm a ganhar. Os pais, por sua vez, sentindo-se constrangidos e intimidados, acabam conformando-se em comparecer à escola somente quando são chamados (ou seja, em geral, quando há problemas...), convencendo-se de que a escola deve saber o que faz... Com isso, notamos a existência, muitas vezes, de uma relação tensa entre pais e escola – esta acaba sendo, na visão dos pais, quase que um "mal necessário", quando, na verdade, deveria ser a concretização dos ideais familiares relacionados à cultura, aos conhecimentos e às habilidades desejadas para os filhos. Portanto, a participação dos pais na vida escolar dos filhos não pode estar restringida somente a festinhas e a reuniões programadas. Comparecer e atuar junto à escola deve ser um momento de alegria e prazer, graças à identificação que se deve sentir com o trabalho lá realizado. Os pais devem conscientizar-se de que essa participação possui um alcance profundo, pois estão em jogo aspectos decisivos da vida dos filhos.
É injustificável o temor que professores e diretores sentem pela efetiva participação dos pais no cotidiano escolar: a escola é colaboradora e nunca substituta da educação dos filhos – nesse sentido, não pode atribuir a si um papel de exclusividade e conseqüente exclusão da outra parte, ou seja, os pais. Além da criação de uma verdadeira parceria, que gerará inúmeros benefícios às crianças e jovens, os pais podem estabelecer, com sua presença e atuação, um contato com a realidade da vida do dia-a-dia, trazendo contribuições de diversos setores da vida profissional, artística, cultural, social, refreando, assim, a tendência a esse "desligamento" do mundo tão comum ao universo escolar.
Talvez não seja preciso esperar por uma "revolução" provocada pelos pais: as escolas, adotando uma atitude de vanguarda (novamente contrária à sua tendência natural...), podem adiantar esse processo, transformando-se em centros educativos de excelência, cuja prática esteja baseada na reflexão, no estudo constante, na efetiva utilização das pesquisas em educação e, principalmente, na formação pessoal e profissional de seus membros – professores e demais funcionários. Somente o movimento de pais e educadores em busca de uma educação de qualidade impulsionará o desenvolvimento econômico e a conseqüente superação da desigualdade social existente hoje – é ilusório e ingenuamente perverso acreditar, portanto, que o desenvolvimento efetivo ocorra sem Educação.
1. Ryan, Kevin Values, views or virtues, ed. eletrônica em: http://www.edweek.org