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O Piano

 

Sergio de Agostino
Mestre e Doutorando em Literatura
Espanhola e Hispano-Americana - USP

 

 

Por que, até então, ninguém ousara abrir aquela antiga porta já bastante maltratada pelo tempo e pelos cupins? Que segredo guardaria o interior daquele aposento, havia anos fechado pelo autoritarismo da velha matriarca, Sinhá Vitória, que o vigiava com a mesma sanha com que havia, sentinela implacável, dirigido, atentamente, a vida de suas três filhas, encerradas no antigo casarão como peças raras de museu? A bem da verdade, ninguém ao certo sabia, embora pairassem no ar algumas suspeitas que seriam desvendadas, em breve, pelas filhas, inconformadas com o despotismo da mãe, responsável pela infelicidade das três irmãs solteironas.

 

Com exceção de dois sobrinhos que foram criados por Sinhá Vitória, quando do falecimento de sua irmã menor, Celeste, homem algum voltou a pôr os pés naquela mansão, considerada por todos os vizinhos como inexpugnável fortaleza. Era tal e tanto o rigor da velha senhora em sobrepor a sua vontade a todo e qualquer interesse, que o marido a abandonara, alguns anos depois do casamento, por não suportar o gênio irascível da companheira. Seus sobrinhos, ao completarem a maioridade, libertaram-se da tutela da tia, com a mesma sensação de alívio com que o detento deixa o presídio, após ter passado bom tempo atrás das grades. A mesma sorte não tiveram as pobres filhas que, ano a ano, viam murchar as esperanças como fanadas rosas que perdem o viço e, despetaladas, caem uma a uma, ao mais leve sopro da brisa. Assim, a juventude cedia passo a uma velhice amarga e desiludida, enregelando aqueles corações que, sem conhecerem a primavera, já se encontravam no outono da vida.

 

Sinhá Vitória não dava oportunidade para o diálogo. Era seca de carnes e de espírito. Quando as filhas lhe perguntavam, com certo rodeio de palavras, pois temiam sua cólera, o que havia no quarto, além do piano de tia Celeste, resmungava alguns sons inarticulados e, em seguida, aprumando o corpo, ou melhor, o feixe de ossos, respondia mal-humorada: — "Cuidem de suas vidas". — como se tal pudessem fazê-lo, pobres criaturas policiadas pela brutalidade de uma educação que havia deformado, pelo medo, aqueles destinos.

 

Ao passarem pelo aposento, que se achava no final de um longo corredor, as três irmãs se detinham como se algo estranho as atraísse, convidando-as a entrar. Então vacilavam, e dominadas por uma sensação de medo, aproximavam-se, cautelosamente, da ovalada porta entalhada, onde toda uma comunidade de cupins, indiferente à obra do artista, completava a sua ação devastadora.

 

Colocadas em pontos estratégicos, observavam, dissimuladas, a velha senhora em suas andanças pela casa. Aguardavam a oportunidade de uma distração da mãe para tentarem penetrar, forcejando a porta, naquele ambiente. Ali, tênue claridade, coada pelas ramagens das árvores do jardim, insinuava, timidamente, a réstia de escassa luz, dificultando a curiosidade dos olhares. Tentavam, através da fechadura, divisar o segredo que aquelas paredes guardavam. Debalde foram as constantes tentativas. O insucesso, porém, não arrefecia o ânimo daquelas irmãs que, todas à porfia, estavam decididas a desvendar o mistério, burlando a vigilância de Sinhá Vitória, Cérbero atento na guarda de seu território.

 

Que diferença entre o temperamento alegre e bonachão de Celeste, sua finada irmã, e os maus bofes daquela harpia — como a chamavam os sobrinhos! A diferença física e moral era a nota distintiva de dois caracteres visceralmente opostos. Celeste, artista por temperamento, herdara do pai o gosto pela música e o prazer de executá-la. Vitória, não! Insensível às harmonias do espírito, concentrava a maldade nas garças pupilas que lhe refletiam a natureza mesquinha e dominadora herdada de sua mãe, Sinhá Leopoldina. Senhora de engenho, havia sido, em seu tempo, terror e flagelo dos escravos, não lhes dando outro mimo a não ser as rijas lambadas de um vergalho que trazia atado ao punho. Sádica, não conhecia outro afago que não fosse o gemido dos miseráveis seres estigmatizados pelo labéu de um sistema perverso, que submete a fragilidade dos fracos à prepotência dos poderosos. Cópia fiel de sua mãe, o tratamento Sinhá era a homenagem que a violência rendia à estupidez.

Frustrada, Sinhá Vitória não suportava o êxito da irmã a quem procurava prejudicar de todas as formas. O sucesso de Celeste era veneno a circular-lhe pelas intumescidas veias que pareciam saltar daquelas ríspidas mãos calejadas na maldade. O ódio atingira o clímax quando Celeste obteve o primeiro lugar em concurso promovido pelo Conservatório Musical, entre os mais promissores talentos do país. Desde então, os convites se sucediam uns após outros, para que Celeste se apresentasse nos mais consagrados centros musicais brasileiros e europeus.

 

Ao retornar de uma tournée pelo velho continente, já consagrada como virtuose, seu nome e foto estavam em todos os jornais que não lhe poupavam elogios. Aplaudida pela mais seleta elite musical, sua carreira foi brutalmente interrompida por fulminante infarto, mal começava a colher os doces frutos do talento reconhecido!

 

Durante os funerais, por mais que tentasse demonstrar pesar, Sinhá Vitória não conseguia esconder o alívio que aquela morte representava a seu orgulho ferido. Uma faísca má nos olhos revelava a negra argila de que era feito aquele coração.

 

Seus dois sobrinhos, ainda menores, agora duplamente órfãos de pai e mãe, tiveram de suportar a rabugice da tia, até o dia em que a maioridade lhes concedesse a liberdade. Para eles foi a carta de alforria que liberta o escravo de seu cativeiro.

 

Causou estranheza o fato de Sinhá Vitória ter ficado com o piano da irmã, tanto instara junto aos filhos de Celeste para que lhe confiassem a guarda da relíquia. Conseguido o intento, trancou-o naquele aposento que se fechou como túmulo na avara guarda dos despojos. Saboreava, assim, desprezível vingança contra a memória da morta, de cuja lembrança queria apartar-se, mas não podia. Ultimamente, suas visitas ao aposento eram freqüentes, isso espicaçava ainda mais a curiosidade das filhas. Ninguém, a não ser sinhá Vitória, tinha a posse da chave que trazia permanentemente consigo, o que impossibilitava qualquer incursão àquela dependência da casa. As irmãs, contudo, não davam trégua à imaginação. As mais calculadas táticas eram traçadas como o faz o general antes de tomar, de assalto, a praça inimiga.

Revolvendo velhos baús apinhados no sótão, encontraram um molho de chaves azinhavradas. Retirada a pátina, experimentaram, uma a uma, qual delas operaria o milagre. Finalmente, o prodígio se realizou: ao abrirem a porta, profunda comoção se apoderou das três filhas que, paralisadas, como se vissem assombração, presenciaram aquele espetáculo em que a decadência moral, aliada à física, se mostrava em toda a dimensão da trágica condição humana: Sinhá Vitória, em traje de gala, sentada ao piano, percorria os longos e ossudos dedos pelo teclado, simulando executar uma das composições preferidas por Celeste. Sobre o piano, numa vitrola, um disco girava, em surdina, era a Nona Sinfonia de Beethoven...