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Fingir e Educar - Imitar e Aprender
(o wei na educação clássica chinesa)

Ho Yeh Chia
Mestre em Educação FEUSP

 

"Tudo se finge primeiro; germina autêntico é depois"
(João Guimarães Rosa "Sobre a escova e a dúvida" in Tutaméia)

"Quem brincava de princesa, acostumou na fantasia"
(Chico Buarque "Quem te viu, quem te vê", 1966)

 

Apresentamos aqui - a modo de brevíssimo esboço - algumas indicações sobre a importância do fingir na educação (naturalmente, não no sentido de um fingimento hipócrita, mas do caráter modélico de uma educação que vem do exterior para acabar atingindo o mais profundo interior).

Assim, nestas breves notas, pretendemos assinalar uma contribuição do pensamento clássico chinês e, a partir das idéias de Xunzi, abrir um diálogo entre a cultura ocidental e a oriental, em torno da questão. E, oportunamente, indicar também a importância do imitar, como um bom começo para qualquer aprendizagem, tal como se propõe no "Livro da Educação"(1) do Livro dos Ritos, um importante clássico editado pelo próprio Confúcio.

A problematicidade do tema - para muito além de um mimetismo tolo - foi levantada também por diversos autores ocidentais, como Pascal, Fernando Pessoa e Guimarães Rosa (nossa epígrafe é já um resumo de todo o tema da educação moral e do fingir). Também o famoso "Autopsicografia" expõe, de forma bela e sensível, o complexo papel do fingir na criação e em todo o processo existencial:

 

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
na dor lida sentem bem,
não as duas que ele teve,
mas só a que eles não têm. (...)

E nos Pensamentos de Pascal, lemos: "É preciso que o exterior se una ao interior para obter de Deus. Isto é, que nos ponhamos de joelhos, oremos com os lábios etc."(2).

Xunzi (ca. 260 a.C) - que viveu na Época dos Estados Combatentes -, foi um dos maiores seguidores de Confúcio, também desenvolveu idéias sobre a importância do "fingir" no processo de desenvolvimento humano (certamente wei, que acabou por significar hoje "fingir", é em Xunzi a atividade humana, como contraponto ao que é inato no homem: este é "autêntico"; aquele, de algum modo, "fingido").

Xunzi que defendeu que a natureza humana é má - ao contrário de outro grande e consagrado sábio, Mêncio (séc. IV a.C), também seguidor de Confucio, que defendeu que a natureza humana é boa - propôs uma educação que vem do exterior para modificar o interior; pois se, segundo ele, a natureza humana é má, então o homem necessitará de uma influência externa para poder chegar ao bem. E esta influência é uma educação por meio do "fingimento" (wei, com as devidas ressalvas de tradução, feitas acima).

Se para Mêncio, há a virtude Ren(3), inata em todo ser humano, e portanto o objetivo da educação é desenvolver ao máximo esse potencial e realizar essa virtude que está encerrada em cada um de nós; para Xunzi, por sua vez, o que o homem tem é apenas uma capacidade para diferenciar, distinguir as coisas (como por exemplo: o bem do mal, o belo do feio).

Assim, o bem não é mais algo conatural ao homem, mas escolhido racionalmente com a ajuda da educação: essa escolha racional só é possível graças à capacidade que o homem tem de diferenciar, de classificar, de julgar o que é bom e o que não é bom para ele. Ora, esse conhecimento que o homem deve ter para julgar e diferenciar as coisas não é inato, mas aprendido, educado, influenciado pela cultura: daí a importância dos ritos. Pois o desevolvimento desse conhecimento e dessa capacidade só é possível a partir do que ele chamou de "fingimento".

Um tal "fingimento" não é algo inato, mas educado. Não é um fingimento falso, mas, sim, um árduo trabalho de educação (entendida principalmente como auto-educação), distinto da natureza, que é espontânea.

"Natureza", para Xunzi, é aquilo que se manifesta no homem como espontâneo e inato. Tudo aquilo que o homem sabe fazer, ou que pode ter ou sentir sem precisar ser ensinado, como por exemplo: "quando tem fome, deseja se saciar; quando está com frio, busca se aquecer; ante o cansaço, deseja repousar. A isto chamo de natureza humana". E onde está o mal nisso? A maldade da natureza humana vem da tendência a sempre querer abusar dos desejos de se saciar, se aquecer, repousar etc., de estar sempre desejando mais e mais, sem saber onde parar.

Ora, se a natureza humana por si não pode ser boa, é preciso que o homem seja corrigido pelos ritos, pelos conhecimentos adquiridos através da educação para escolher e fazer o bem, assim como "A muda de árvore, que precisa ser apoiada para depois poder crescer reta; o ouro, que precisa ser cunhado para depois se tornar útil (como moeda); assim também o homem precisa ser educado para ser correto (...)".

Xunzi, então, defendeu uma educação que vem do exterior para atingir o interior, ou seja, buscar nos ritos os limites e os parâmetros para o comportamento humano, e com a ajuda de um esforço pessoal, o homem pode não sair do equilíbrio e não cair em excesso.

Assim, antes de que o homem saiba se equilibrar sozinho, ele tem de se regular por meio dos ritos, ou seja, "fingir" que sabe, e "fingir" que segue e compreende os ritos. Com o tempo, o que era "fingimento" tornar-se-á "conatural" pelo hábito. E o hábito, já o diz Aristóteles (e também a tradição chinesa) é uma "segunda natureza": o adquirido torna-se "espontâneo". Essa mudança é, na verdade, uma influência do exterior, do meio, do ambiente, do comportamento: é um modelar do ser humano.

Em Tomás de Aquino(4), encontramos uma outra consideração de natureza, a de"natureza ferida": a natureza humana é em si boa, mas ferida, propende para o mal.

Assim, para Tomás, pelas virtudes (pelo árduo caminho das virtudes...), recuperamos a possibilidade de espontaneidade: Virtutes perficiunt nos ad prosequendum debito modo inclinationes naturales (II-II, 108, 2). As virtudes nos aperfeiçoam, capacitando-nos para seguir de modo devido as inclinações naturais. E "aquilo que era difícil, pela virtude torna-se fácil" ("virtus est circa illud quod in se difficile est, sed tamen habenti virtutem fit facile" De Virt. q. 2, a.2 ra1).

Uma observação oportuna é sobre a íntima relação do "fingir" com o imitar. Registra-se no "Livro da Educação": "O filho de um bom ferreiro saberá bem as técnicas de fundir as lâminas de ferro para consertar recipientes e até sabe aplicar a mesma "lógica" para consertar vestes de pele de animais. O filho de um bom artesão de arco saberá usar a técnica de encurvar arcos para fazer outros instrumentos como uma cesta de arroz, por exemplo. Quando se ensina cavalos a puxar carros, deve-se colocar os filhotes para seguir seus pais, por trás dos carros, assim eles também aprenderão. Só quando um sábio começa a observar esses três exemplos é que ele pode começar a se dedicar a aprender."

De fato, no início da aprendizagem, nós não fazemos outra coisa senão imitar os que já sabem: brincamos de falar como nossos professores, fazer como nossos pais, comportar-nos como quem queremos ou gostaríamos de ser..., e fingimos ser como ele. E assim, aprendemos. Aprendemos também a ser nós mesmos, um saber que só germina autêntico depois de fingir primeiro...


(1). Apresentamos uma tradução comentada deste clássico no N. 3 da revista Notandum, ed. Universität Freiburg/Edf-Feusp, 1999. Ed. eletrônica neste mesmo site.

(2). N. 250. Agradeço ao Prof. Jean Lauand a revisão: devo a suas aulas e colóquios esta e algumas outras notas relativas a autores ocidentais.

(3). Discuto este conceito na introdução a "Analectos - Livro IV: Ren, a Humanidade em Confúcio", Revista Internacional d'Humanitats, Universitat Autònoma de Barcelona / Edf-Feusp, 1999. Ed. eletrônica neste mesmo site.

(4). Discuti o tema mais amplamente em minha dissertação de mestrado Antropologia filosófica e Fundamentos da Pedagogia nos Analectos de Confúcio - subsídios para um estudo comparativo intercultural, São Paulo, FEUSP, 1999. Cfr. também o já citado "Analectos - Livro IV: Ren, a Humanidade em Confúcio", Revista Internacional d'Humanitats.