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Entrevista - Julián Marías
(Realizada em Madrid, em 26-5-99, por Jean Lauand
e Elian Lucci. Edição e tradução: Gabriel Perissé)
JL: Em seu livro La Felicidad Humana, o senhor se refere ao tema de Ortega do "pensamento confundente". Para nós outros, que nos dedicamos ao pensamento oriental, esse tema é muito importante, e gostaríamos que nos falasse com mais detalhes sobre sua visão da fecundidade dessa noção de "pensamento confundente".
JM: Trata-se de uma dupla dimensão do pensamento. Há uma função, diríamos, normal do pensamento que é distinguir e determinar as diferentes formas de realidade. Por outro lado, se esta fosse a única função do pensamento, não haveria como lidar intelectualmente com realidades complexas, em suas conexões, nas quais interessa ver o que há de comum e, portanto, o tipo de relações que há entre realidades que, de resto, são muito diferentes. Isto é o que Ortega denominava "pensamento confundente". Eu gosto do exemplo da palavra "bicho", muito vaga, que se refere a milhões de animais, mas nos comportamos ante um "bicho" de uma maneira de certo modo homogênea: em muitas ocasiões as diferenças não contam: e não nos importa a espécie (haverá centenas de milhares de coleópteros, mas, para muitos efeitos, não interessa). O "pensamento confundente" é muito importante e é um complemento para o pensamento que distingue.
JL: Sim, por vezes a linguagem nos impõe uma "confundência" maravilhosa. Na língua árabe, por exemplo, uma mesma palavra serve para significar "amizade" e "confiança".
JM: Há uma coisa que me preocupa, e já o disse muitas vezes. Que, enquanto o vocabulário de uma área particular, de um campo profissional técnico, de um ambiente específico, na agricultura, por exemplo, ou na pecuária — enquanto esses vocabulários específicos possuem uma riqueza enorme, tudo o que um homem pode sentir por outra pessoa resume-se — em todas as línguas que conheço — a meia dúzia de palavras. Algumas positivas, como "amizade", "amor", "ternura", "simpatia", "carinho", e outras tantas negativas. Parece-me muito restrito. Eu tenho quatro filhos, já adultos, e eu os amo de quatro maneiras diferentes. Há uma variedade imensa do amor, e a língua não reflete essa variedade. É uma limitação esquisita. Talvez devida a uma certa desatenção pelos sentimentos, pelos conteúdos anímicos, em contraste com a refinada atenção dedicada às técnicas da agricultura, da medicina...
JL: Para o futebol, no Brasil, há um vocabulário riquíssimo para diferentes ângulos de um movimento: bicicleta, meia-bicicleta, puxeta, voleio etc.
JM: As mil maneiras de dar um chute numa bola! E isso porque há um interesse especial. Muitas pessoas gostam de futebol e precisam distinguir os diferentes matizes dessa atividade. E, em contraste, o que uma pessoa sente por outra — e é algo mais difícil, sem dúvida — não desperta tanto interesse. Eu fico muito perplexo com este fato.
JL: É inegável o êxito de suas conferências sobre filosofia, incomparavelmente claras e sugestivas. E que atraem públicos de centenas de pessoas. Num de seus livros o senhor escreveu que Ortega, certa vez, comentou com o senhor e, digamos, "ensinou-lhe" a técnica de uma conferência perfeita. Poderia falar-nos um pouco mais sobre essa técnica?
JM: Ortega estava em Lisboa e assistiu a uma conferência que eu dei lá — era sobre Unamuno — em 1944. E depois estivemos comentando longamente — ele, sempre brilhante era mestre em dar conferências, E eu refleti muito — vim a dar centenas de conferências em várias línguas — sobre essa conversa. Em resumo, eu tenho uma definição de conferência: é uma "improvisação bem preparada". Eu nunca leio uma conferência; sempre falo (os ouvintes agradecem muito...). Falar — sem o texto — torna-se mais atraente, e mais compreensível para os ouvintes. A estrutura da frase escrita é para ser lida, visualmente, não é algo para se ouvir. A estrutura da dicção é diferente. Mas eu preparo muito minhas conferências, pensando em primeiro lugar sobre o que vou falar; em segundo, sobre o que pretendo definir, mas, depois, a conferência nasce do ato mesmo de falar com o público, do modo como o público reage, em suma, trata-se de uma improvisação... Em muitas conferências que dei na Argentina — conferências em teatros — apagavam a luz e eu pedia: "Por favor, acendam a luz", porque quero ver os rostos das pessoas.
JL: O senhor publicou um artigo por ocasião do Concílio Vaticano II, cujo título era "Como se sente um cristão hoje?". Mais de trinta anos depois desse artigo, repropomos a pergunta: como se sente um cristão hoje?
JM: Penso que ele se sente melhor, muito melhor. Houve uma grande melhoria da Igreja e, na Espanha, em particular, desde um pouco antes do Concílio, a situação eclesiástica começou a melhorar. Hoje, a qualidade do clero espanhol é bem superior. A maioria dos bispos espanhóis — tenho amizade com muitos deles — é formada por homens inteligentes, abertos, compreensivos, foi um avanço extraordinário. Percebo que isto se verificou em outros países também.
Eu acabo de ter uma experiência curiosa, o cardeal Rouco, o arcebispo de Madrid, pediu-me que ministrasse uma conferência — sobre meu recente livro La perspectiva cristiana — para cerca de quinhentos sacerdotes - é impressionante! -, todos muito interessados. O nível da Igreja melhorou e há uma atitude aberta, conciliadora que — sem dúvida — não havia antes. Mas há alguns aspectos negativos também. Os sacerdotes do passado eram talvez mais intransigentes, mas sua fé era mais sólida. Hoje nota-se às vezes uma certa insegurança. Por falta de conhecimento do pensamento atual, estavam sem anticorpos perante algumas doutrinas que não são muito aceitáveis até intelectualmente. O marxismo, por exemplo, deixou-os um pouco inseguros, sem necessidade.
EL: Em São Paulo, no Brasil, temos enfrentado um fenômeno que nos acostumamos a pensar como coisas típicas dos EUA: a violência nas escolas. Só neste ano já houve em São Paulo 15 assassinatos ocorridos dentro de escolas públicas. Como o senhor encara esse problema que interfere na vida escolar e na vida das famílias das crianças que freqüentam uma escola?
JM: Não devemos exagerar, pois há milhares de pessoas e escolas que não enfrentam esse problema. O que acontece, porém, é que os meios de comunicação atuam sobre nós. Agora, por exemplo, se vejo em várias emissoras de televisão que um ônibus caiu de um precipício no Paquistão, vemos os mortos, tudo isso produz uma sensação de catástrofe universal que não é verdadeira. Agora, por outro lado, como os meios de comunicação divulgam insistentemente as catástrofes isoladas, cria-se uma certa indiferença. Passamos a encarar com certa naturalidade coisas terríveis, pois as vemos todos os dias várias vezes. E há também, evidentemente, uma campanha bem organizada de negar os valores humanos. Sim, há, evidentemente... E parece às vezes que está tudo bem. Costumo dizer que existem algumas identificações inaceitáveis. Diz-se que o freqüente é normal, que o normal é lícito, e o que é lícito é moral. Não! O que é freqüente pode ser anormal. Uma coisa que é normal pode não ser lícita legalmente. Uma coisa lícita legalmente pode ser imoral. Às vezes uma pessoa alega que uma coisa, por ser freqüente, é normal. Não. Uma coisa que é freqüente é simplesmente freqüente. Ocorre aqui uma perda de sentido moral e do que pode se aceitar ou não. Há uma ignorância grande entre as pessoas, que se vêem sem critérios. Uma ignorância da história, por exemplo. Especialmente os jovens. E por isso acabam aceitando tudo o que lhes dizem. Nas escolas espanholas por vezes se ensina uma história que nunca existiu. E os alunos acreditam que as coisas aconteceram assim. Não sei como está o Brasil neste aspecto...
EL: Às vezes a noção de pátria fica um pouco enfraquecida, por falta de uma compreensão mais profunda, histórica e cultural, de nosso país.
JM: Mas provavelmente a situação é melhor porque é um país que possui uma unidade. Penso que, imenso como é e com tantas origens étnicas, há uma língua só. É a língua portuguesa e ponto final. E aí deve-se destacar o papel da televisão, como um fator de unificação e de aperfeiçoamento da língua. Esse imenso país tinha todos os motivos para não ser unido, e é. Certa vez, eu estava no Brasil, o embaixador da Espanha convidou-me para jantar, e lembro que me perguntaram se eu poderia chegar um pouco mais tarde. Disse-lhes que para mim não haveria problemas. E eles me explicaram o motivo do pedido. É que queriam assistir a um capítulo da telenovela! Faz muitos anos, e achei muito interessante que tenham pedido a um convidado que chegasse mais tarde para que sua presença não entrasse em conflito com a televisão. É preciso ver os fatores positivos e negativos de uma mesma realidade. Estive no Nordeste - todo o Nordeste me encanta - , e conheci, por exemplo, o mercado de Olinda. E disse uma vez que no mercado de Olinda, que é um mercado pobre, há mais alegria que em toda a Suíça! É verdade! Há uma alegria espantosa no Nordeste. E a fusão de raças, em Salvador, por exemplo. Há na multidão desde o branco mais puro ao negro mais puro. Todos em harmonia. Todos os matizes juntos. E isso tem muito valor.
EL: Como vê o futuro do homem ante o fenômeno da globalização?
JM: Essa palavra me parece um pouco enganosa porque dá a impressão de que o mundo é uno, o que não é verdade. O mundo é múltiple. E há até muitas formas de humanidade que não entendemos bem. Penso, por exemplo, no caso — tão inquietante — da África: uma situação terrível e em quase todos os países africanos há uma situação verdadeiramente aterradora. Houve um século "vividero", que foi o século da colonização — de meados do século XIX até 1960 —; podia-se viver. E implantaram uma série de coisas (evidentemente, houve também abusos e uma certa exploração): estradas, ferrovias, telefones, hospitais, escolas — e que não se matassem entre si (uma constante histórica nas tribos da África; junto com outra: a de caçar escravos para vender aos negreiros). Essas atrocidades que estão espalhadas por quase toda a África: em Ruanda e Burundi e, depois, em Serra Leoa e é na Nigéria e na Eritréia e Somália etc. E atrocidades também na Ásia... São formas de vida que não acabamos de compreender.
Já o Ocidente é um mundo coerente: em qualquer país ocidental, sentimo-nos em casa (com grandes diferenças, mas em casa...) e há um repertório coerente de idéias e crenças e estilos de vida. Temos de levar em conta esses outros mundos (que não são unos e, por isso, globalização é um conceito muito equívoco), temos que procurar entendê-los e que estejam do melhor modo possível; mas trata-se de outros mundos que não o nosso: o Ocidente, que é uno. Por outro lado, o europeísmo exagerado parece-me um erro, porque a Europa não é suficiente. Costumo dizer que Europa e América são dois lóbulos de uma realidade — esta sim, verdadeira — que é o Ocidente. Curiosamente, fala-se pouco do Ocidente: nem a América, nem a Europa se bastam a si mesmas, não só do ponto de vista da dependência econômica, mas também intelectual.