Home | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos Luzes da Ribalta -
Conto de Sergio de Agostino
Para o palco, para o palco uma voz ansiosa gritava, batendo nas portas dos camarins, chamando os artistas para a ribalta.
Espere um pouco mais atalhou nervosa, Mme. Nicolete, que dava os últimos retoques à maquiagem, enquanto sua ajudante tentava ajeitar-lhe aos ombros encurvados o xale, cujas pontas franjadas lhe caíam aos pés.
Droga! gritou a atriz, puxando alguns fios que se enredaram na fivela do sapato. Vamos, Lola, depressa! Estou atrasada.
De fato, alguns assobios já se faziam ouvir da platéia, onde um público nada afeito às normas de disciplina aguardava, impaciente, o segundo ato. Por pouco não a vaiaram, quando, num momento de alta dramaticidade, Mme. Nicolete improvisou, tentando disfarçar o trecho esquecido. Apesar de veterana dos palcos, sua avançada idade, 75 anos, já começava a preocupar. Sua memória, com freqüência, deixava-a muitas vezes em situação embaraçosa; e isso, de certa forma, estimulava os mais afoitos a dirigir-lhe alguns gracejos, reveladores do mau-caráter de quem o fazia.
Atriz de grandes recursos cênicos, fora, em início de carreira, aclamada pela crítica como promessa maior do teatro nacional. Com efeito, os mais difíceis papéis dos mais consagrados dramaturgos e comediógrafos tiveram, em sua interpretação, o ponto alto do talento genuíno de quem nascera para as grandes atuações. Aplaudida pela crítica mais ortodoxa, começava a conhecer, após 60 anos de atividade artística, o lado oposto da fama. Aos entusiastas aplausos de ontem, quando a chamavam a divina, sucediam-se agora a indiferença e a fria acolhida de um público que não perdoava um possível deslize, mesmo em se tratando de uma atriz como Mme. Nicolete, que levara ao delírio crítica e público, quando, no auge da fama, interpretara Fedra, de Racine e Dona Sol, de Victor Hugo, dois de seus papéis mais logrados. De Jacinto Benavente, encenara Senhora Ama, vivendo a personagem da tolerante Dominique, que suporta em silêncio a contínua infidelidade de seu marido Feliciano.
Ah! suspirou a atriz, com profunda nostalgia, sentindo que as lembranças lhe vinham à mente atraídas por poderoso ímã, a saudade. Com que magnetismo, tornava próxima as mais distantes recordações! Vingava-se do presente, tão prosaico, opondo-lhe a sublimidade de um passado tão rico em realizações, tão pleno de glória! Hoje, fatigada, decepcionada pelos contrastes da vida, recorria a suas memórias interiores como forma de tornar suportável os reveses da fortuna. A sorte é imprevisível; a fama, incerta. Quanta verdade havia nessa frase dura como sentença que condena o réu à morte. Perturbada, Mme. Nicolete procurava fugir do presente, refugiando-se no passado, cidadela inexpugnável a protegê-la das indiscrições do tempo, esse fogo que nos consome.
Sabia que estava próxima do fim, e as palavras de Tito, de Corneille, cada instante da vida é um passo rumo à morte, encheram-lhe o coração de pesar e os olhos de lágrimas. Aos dias felizes chegava a noite povoada de preocupações. O que fora oásis, transformara-se em aridez desértica. Sozinha, só o passado verdadeiramente lhe pertencia, e nele se apoiava como um velho no seu bastão.
No camarim, diante do espelho, enquanto retocava a maquiagem, examinava, atentamente, os estragos que o tempo fizera em sua fisionomia. Com ambas as mãos esticou a pele do rosto, tentando preservar dos anos o irreparável ultraje. Mas, em vão!... Era a própria caricatura de si mesma: rosto juncado de rugas, ralos cabelos ruivos a cingir-lhe a nuca, era a imitação burlesca, o arremedo de uma beleza que o tempo inexorável transformara em paródia.
Como um fantasma de Goya, perdida num emaranhado de recordações, sua alma em convulsão dialogava com o vazio.
Estava nesse estado de alheamento do espírito, quando forte assuada irrompeu da platéia, daquele teatro de província. Era necessário retornar. Ajeitou o xale aos ombros e, enxugando as lágrimas, voltou à cena...