Trajetória
da Fé - Dúvidas de Fé
(Ensaio do conhecido filósofo Romano Guardini.
Trad. e nota introd. de Sivar Hoeppner Ferreira)
Guardini e a Unidade espiritual
(Nota introd.: Sivar H. Ferreira)
A Idade Moderna, que trouxe tantas conquistas
do espírito humano, testemunhou também a dissolução da unidade espiritual vigente na
Idade Média. O homem moderno, mesmo o cristão, vive num mundo pleno de rupturas e
conflitos. Fé e razão, filosofia e teologia, ciência e filosofia, ciência e política,
entre outras, parecem digladiar-se de maneira irreconciliável. Romano Guardini
(1885-1968) em toda a sua obra tentou alcançar uma visão de conjunto que abarcasse toda
a existência na sua complexidade: unidade que só poderia se alcançar na fé.
Guardini foi não somente um dos maiores teólogos do século XX, mas
simultaneamente filósofo, pedagogo e literato. De origem italiana, sua formação foi
totalmente germânica. Sem ser alemão de nascimento, possuía, nessa língua, um estilo
vigoroso e atraente. Pouco tempo depois de ordenado sacerdote, dedicou-se também a
lecionar na Universidade de Bonn. Em 1923 é convidado a reger a recém-fundada cátedra
de Religionsphilosophie e Katholische Weltanschauung na Universidade de Berlim. Aí
permaneceu até a década de trinta quando o Terceiro Reich impediu suas atividades
docentes. Em 1945 reassume na Universidade de Tübingen, passando pouco depois à de
Munique.
Não pertencendo à linha tomista, nem por isso menos obediente à
tradição evangélica e patrística, procurou manter um contínuo contato com a cultura e
filosofia modernas. Soube dar à mensagem cristã uma expressão moderna, tornando-a atual
para um vasto público do século XX.
Não obstante a variedade de seus campos de estudo permanece sempre um
pensador unitário. Em tudo o que fez foi simultaneamente teólogo, filósofo, literato,
pedagogo e católico. Não foi porém um pensador sistemático. Nunca construiu um sistema
de tudo o que o homem pode conhecer através do pensamento e da Revelação. Seus
trabalhos não constituem uma unidade formal externa mas uma unidade interior, dada pelo
motivo fundamental de inspiração: a existência cristã.
No ensaio que traduzimos para os leitores de Videtur -
Glaubensgeschichte und Glaubenszweifel - Guardini, com a agudeza de um psicólogo analisa
as alterações pelas quais passa, o pensamento religioso de uma pessoa e os perigos que
enfrenta em seu desenvolvimento existencial.
Trajetória da Fé Dúvidas de Fé
Romano Guardini
A vida de um homem ou de uma mulher de fé é igual a de qualquer outra pessoa. Seu
corpo é constituído de matéria e movido pelas forças naturais. Vive na comunidade da
família e de seu povo. Situa-se nos acontecimentos que formam a história, colabora na
vida econômica, cultural e artística junto com os outros. Na sua consciência acham-se
sonhos, idéias, razões morais de atitudes. Padrões de vida correta e esperança de
realizações existenciais. Enfim, tudo como a vida comum... Na consciência de tal pessoa
encontram-se, porém, idéias de outra natureza. Por exemplo, a de um Pai que está nos
céus, que criou todas as coisas e as dirige com sua sabedoria e providência. Ou a da
salvação, que resulta em uma nova vida, de santidade, dirigida à eternidade. Essas
idéias não se deixam conduzir pelo conhecimento e pela vivência humana comuns, pelo
menos enquanto essas noções são tomadas no seu sentido próprio. A verdade é que elas
expressam, em profundidade, a mentalidade que elas representam, a conduta que elas
reclamam. Conduzem, em última análise, a uma determinada figura: a de Jesus Cristo. Ele
reivindica ser a revelação viva do Deus escondido, o redentor do que estava perdido, o
portador da nova vida. O homem ou a mulher de que falamos, de alguma maneira encontrou
Jesus Cristo: seja diretamente, aprofundando-se por si só nas fontes que narram a seu
respeito, seja através de outrem que lhe comunicou sua figura e sua doutrina. Está
convencido de que Ele é simplesmente o que traz a verdade e a salvação, o que esclarece
o enigma da existência, que dEle provém a força para levar a cabo os deveres morais e
nEle se encontra o único refúgio para o coração. A vida desse homem forma uma unidade
onde co-atuam dois mundos: a existência natural e sua realidade - e tudo o que se
proclama em Cristo, em verdade e em sabedoria, participando da sua força. A este todo é
que denominamos fé.
A fé lhe dá uma unidade de vida altamente organizada: a mais
alta possível - quando realmente é aquilo que pretende ser. Está repleta de idéias,
valores e de força, possui um alto sentido e dá a vida uma segurança que nada, além
dela, pode dar. Como toda a vida altamente organizada, é igualmente vulnerável, mas de
maneira toda especial. Se refletirmos bem, a mensagem de Cristo aos homens os coloca sob a
crítica de Deus, exigindo uma mudança de mentalidade, a renúncia de muito daquilo a que
sua natureza se inclina e a procura daquilo que, inicialmente, se acha distante. Então
torna-se claro que isto não se consuma na forma de um desenvolvimento natural, simples e
calmo, mas de sucessivas e renovadas decisões e vitórias sobre si mesmo. Fé é vida
autêntica, vida no seu sentido último; por isso atravessa sempre e repetidamente crises,
que atingem não somente detalhes, mas o seu todo, seu próprio sentido e viabilidade.
II
Examinemos algumas dessas crises de fé. A vida religiosa de cada pessoa está unida à de
outra. Quase sempre as coisas se passam de maneira que a fé de um inflame a de outro: a
mãe, o pai, um mestre, um amigo. No mundo interior de cada pessoa encontram-se figuras
com as quais ela possui uma especial comunhão de fé. Sua convicção ampara-se nelas,
recebe delas orientação e impulso e, de certa maneira, sua vida de fé se realiza com
elas. Isto por certo é bom, pois "o caminho do homem para Deus é o homem". Tal
vinculação pode, entretanto, afrouxar-se: no seu desenvolvimento o jovem desprende-se
dos pais, entrando até em conflito com eles. Aos poucos sente-se ultrapassar o mestre que
anteriormente admirava. Passa a divergir, no íntimo, dos amigos com os quais estava tão
estreitamente unido. A figura venerada e admirada do mestre começa a apresentar falhas,
perdendo assim a primitiva força e segurança. Todos esses afastamentos têm, com
certeza, reflexos na fé. Decepcionada e solitária, a pessoa vê dificuldades que antes
não via; a despreocupação e a segurança abalam-se. A crítica se agita e desperta o
questionamento: seria verdade o que acreditava até então?
Este questionamento pode admitir diversas formas, de acordo com a
mentalidade de cada pessoa, e da verdade à qual se dirige. Serve-lhe de base o fato de
ter-se alterado a própria estrutura das relações de fé. A pessoa desligou-se das
personalidades junto às quais ela acreditava e agora precisa ir por si mesma. Esta crise
- sem entrar em questões especiais que, naturalmente, requerem uma resposta específica -
tem um sentido bem preciso: indica que a pessoa deve chegar à autonomia em matéria
religiosa. Se ela não quer isso, se teme a responsabilidade, encolhe-se e a fé se abala.
Aparentemente se despedaça ao chocar-se com este ou aquele problema. A pessoa dirá que
motivos científicos, éticos ou que tais, fizeram-na abandonar a fé. Na realidade ela é
que não conseguiu manter-se por si mesma e suas novas opiniões mostram que ela se tornou
dependente de outro, quem quer que seja.
Algo semelhante ocorre nas suas relações com o mundo que a
circunda. Quando uma criança cresce em uma família onde a fé é grande ou mesmo num
país onde todos têm a mesma crença, possuirá evidentemente a mesma fé. Ignora
completamente se algo dessa fé provem da atmosfera da família ou do ambiente cultural da
pátria. Quando crescer, deixar a família, ou for para outras terras, tudo pode vacilar.
A pessoa tem a impressão de ver as coisas com novos olhos. As suas atitudes de até
então parecem-lhe infantis e ultrapassadas. Expressa isso em palavras dizendo que agora
cresceu, conhece a vida, precisa acompanhar os tempos e assim por diante. Na verdade o
assunto é bem diferente. Até então não era bem ela que tinha fé, mas a sua família
ou o ambiente da sua terra. Agora é desafiada a assumir, por si própria, as
responsabilidades do seu cristianismo e a decisão vem logo em seguida, se ela está
preparada para isso; se possui a seriedade necessária para prosseguir por si só e
realizar o esforço que acarreta - se para ela a fé é suficientemente importante para
dedicar-lhe o tempo necessário.
A mensagem da fé é, em si, de natureza puramente divina. Ela
fala de coisas que se acham acima de toda a ciência: quem é Deus, que sentido Ele tem
para nós, o que somos aos olhos de Deus, o que significam o pecado, a salvação, a
graça e a nova criação. Porém, logo que a pessoa começa a meditar nessas verdades
encontra a sua expressão nas noções naturais: no mundo, nos homens e na vida. Assim, a
verdade divina acha-se em união íntima com os pensamentos humanos. A fé, em si,
orienta-se para a mensagem divina, mas como não se podem estabelecer compartimentos
estanques, orienta-se também para a existência natural. Ambas formam uma unidade bem
consolidada. Quando, porém, as concepções divinas são fortemente abaladas, este abalo
reflete-se na fé. Alguns exemplos esclarecem melhor.
A fé no Deus vivo, criador e pai leva a entender, a fazer uma
idéia, de como Ele realmente é. Cada pessoa associa então a realidade divina a uma
figura. Para a criança Ele é sobretudo o próprio pai, elevado porém a uma dimensão
misteriosa; ou também uma pessoa cuja autoridade seja bastante venerada; ou mesmo
qualquer representação de majestade que se encontre nas experiências infantis. Esta
criança cresce e gradualmente a figura não mais se adapta a sua nova maneira de sentir e
pensar. Também influi o processo natural de se desprender dos pais, além de outros
elementos, como a vontade de contradizer as autoridades do mundo infantil etc. Neste
conjunto, até a fé em Deus pode vacilar. Muito freqüentemente o próprio interessado
nada percebe. Pensa ter dúvidas filosóficas ou outras quaisquer, perfeitamente
justificadas. Na realidade é a figura de apoio que se destruiu. A tarefa consiste
essencialmente em encontrar uma nova figura que sirva de suporte, ou talvez mesmo eliminar
a figura.
É o que acontece com a crença na criação do mundo. A criança
escuta algo sobre os sete dias do Gênesis e toma-o ao pé da letra. Depois cresce e
então as ciências naturais lhe dizem ser o mundo mais velho do que qualquer outra coisa,
que a sua evolução se processou num espaço de tempo monstruoso, além de outras coisas
desse tipo. Esta objeção dirige-se contra uma noção auxiliar da fé. O jovem, porém,
a sente como se dirigida exatamente contra a idéia da criação divina e a veracidade da
fé parece-lhe contestável. Ele precisa entender que a semana da criação deve ser
tomada como simbólica e o seu sentido se encontra na ordenação da existência humana e
na santificação do dia do Senhor. Quando isto não acontece, se alguém não lhe explica
como as coisas são e se ele não dedica a esse assunto a mesma atenção que dedica, por
exemplo, aos problemas da sua formação profissional, então tudo desmorona. Julga ter-se
desligado da fé da sua infância, pois ela contradiz a ciência. Na verdade ele é que
não realizou o que, de resto, realizou nos outros campos, ou seja, substituir a
representação infantil, já não mais apropriada, pela representação mais adequada.
A esta categoria de considerações pertencem as chamadas
dificuldades científicas. A investigação levantou contra a Revelação uma série de
objeções que muito fazem refletir e podem abalar a fé ao extremo. Uma objeção
científica coloca a verdade em jogo. Se sou colhido por ela - literalmente colhido e não
simplesmente tocado - não mais posso deixá-la passar: proíbe-me a consciência. Por
outro lado, a mesma consciência fala a favor da fé e aí surgem penosos conflitos. No
século passado, por exemplo, mostraram-se objeções tão claras, durante um certo tempo,
que pareciam abalar a doutrina cristã da criação. Hoje, aquelas presumidas provas
perderam muito da sua força e, quem aprende as lições da História, vê nisso uma
advertência, uma conseqüência de afirmações de cientistas, avaliadas muito acima do
que na realidade valiam. Porém, para quem estava inserido na época, a questão era muito
séria. Algo semelhante se dá com o problema das concepções históricas sobre a
formação da Sagrada Escritura. A mesma época que estava convencida de que o homem
provinha do animal através da evolução, acreditou ter provado que o aparecimento do
Novo Testamento era bem tardio, pois, para isso, pareciam confluir todas as possíveis
hipóteses históricas. Também aqui vemos hoje mais claro, porém em outros tempos a
questão provocou bastante inquietação.
Estes e outros problemas deixaram de ser ameaçadores ao
alterar-se a posição da ciência. O que também se alterou foi o pensamento religioso.
As dificuldades surgiram não só pelo fato de que a ciência estava enganada e levantava
falsas teorias mas também porque o pensamento cristão via como pertencentes à fé
coisas que de fato não o eram; porque não se deixava campo suficiente para a pesquisa e,
pelas opiniões provindas de tempos antigos, de que determinadas coisas eram partes
integrantes da fé. Não é somente errado mas também perigoso responsabilizar tão
somente o "cientista ateu" por tais conflitos. A fé não esclarecida e
preguiçosa também é culpada, pois a fé não significa somente abnegação e humildade
mas muito mais...
Uma objeção séria coloca qualquer proposição estabelecida
pelo entendimento tão fortemente em dúvida que o respectivo conteúdo já não pode mais
ser considerado certo até que as objeções sejam respondidas. Com a fé se passa algo
diferente. Ela é um relacionamento do homem, em seu todo, com o Deus vivo: relacionamento
do entendimento e da vontade, da mente e do coração, do sentido da vida e da esperança.
Se esse todo for abalado em um determinado lugar o restante deve suportar com mais força.
Assim também é no plano humano. Quando estou unido a alguém por amizade e contra ele se
levanta uma objeção séria, a situação é dolorosa. Seria injusto por isso deixar a
amizade se romper. É muito mais o caso de se procurar uma maneira para que a confiança
básica possa suportar a dificuldade. A fé parte do âmago do ser humano em direção a
Deus. E está convencida de que uma verdade científica não pode opor-se à verdade
revelada. Precisa então deixar de lado a dificuldade. Muitas dificuldades não são
propriamente resolvidas mas "carregadas" pois são expressão da transitoriedade
e da nossa natureza humana.
A vida de fé está também estritamente unida à vida moral. Fé
não é nenhuma consideração teórica ao lado da qual conceitos e ações podem
percorrer, indiferentes, seus próprios caminhos. Ela se orienta diretamente à
transformação interior conforme a vontade de Deus. Se isto não acontece, ou acontece de
maneira insuficiente, surge um antagonismo entre o crer e o agir que leva gradualmente à
desintegração do crer.
A fé implica também na mais profunda obediência. Obediência à
majestade de Deus que se revela. Quando porém o homem não segue os mandamentos deste
mesmo Deus, esta desobediência reflete-se na fé. Até certo ponto a fé do desobediente
pode, por assim dizer, "digerir" a desobediência, sobretudo se ele se confessa
culpado ante Deus e se arrepende. Assim visto, o arrependimento, ou contrição, é a
firme concretização da fé ante o perigo que a desobediência representa. Porém quando
o desobediente endurece, quando a pessoa simplesmente não deixa as coisas que ela sabe
que se contrapõem à vontade de Deus, ou simplesmente não faz as coisas que deveria
fazer, então a situação se precipita para uma decisão. Durante um certo tempo as duas
atitudes permanecem contrapostas; finalmente a pessoa não mais agüenta a situação e
abandona a fé.
Antes, porém, a tensão provocada pelo antagonismo em que se
acham vontade e pensamento expressa-se em dúvidas sobre as verdades de fé. Essas
incertezas acham-se enraizadas diretamente na moral. Elas procuram justificar a vontade. A
pessoa afirma então que o cristianismo é algo impossível de ser vivido ou mesmo um
inimigo da vida; mas, na verdade, o que ele não quer é ordenar a sua sensualidade. Outro
declara que o cristianismo contradiz a ciência: a realidade, porém, é que ele deixou
que sua vida de oração se arruinasse.
Neste assunto muita coisa ainda se poderia dizer. O que porém se
torna claro é que as crises de fé não são nada fáceis. Muito raramente elas exprimem
simples incertezas do entendimento, de procedimento em relação à doutrina cristã, ou
relativas a determinadas passagens das escrituras. Quando elas exprimem apenas isso, logo
são afastadas. Via de regra, todas as características da situação indicam tratar-se de
algo mais. Quando tratamos com muitas pessoas sobre dúvidas de fé nota-se logo que o
peso das suas objeções não corresponde às conseqüências que à elas se prendem.
Estas objeções têm uma supervalorização particular. Estão cheias de uma excitação,
de uma amargura ou de uma teimosia que apontam para algo mais profundo do que os motivos
apresentados ainda mais porque esses motivos derivam da linguagem comum do
espírito. As dúvidas de fé significam sempre mudanças interiores que a própria pessoa
deve empenhar-se por identificar da mesma maneira como a pessoa que dela cuida deve
empenhar-se em ajudá-la.
Aquele que se vê assim acossado não deve deixar sua fé
vacilando, diz a Igreja. Este conselho pode ser recebido com dificuldade em alguns casos,
mas é certo. Ele deriva da convicção de que a fé não é somente sustentada pelo
homem, mas em primeiro lugar por Deus, cujo poder vem em seu auxílio para que possa ver
claramente e assim perseverar e manter-se unido a Ele. Expressa também o conhecimento de
que o homem crê não apenas com o entendimento ou seja com a parte do ser que
capta a dúvida mas com a sua totalidade que vive. Com isso tem a possibilidade de
deslocar o centro de gravidade da sua fé para um ponto mais profundo ou para outro lugar
onde possa assim suportar a dificuldade até que ela se resolva. No entanto, se a dúvida
penetrou tão profundamente que o conhecimento da verdade já não admite nenhum Sim, a
situação é outra.
Aqui também pode-se apenas aconselhar a pessoa a não romper tão
rapidamente relações que atingem o mais profundo da existência. Há uma virtude que é
da máxima importância em todas as coisas da vida: a paciência. E também aqui.
Acima de tudo é necessário chamar a atenção sobre algo que
vale para todo o ser humano: o relacionamento do coração com Deus é contraditório.
Nele se encontra tanto o desejo de Deus, a atração por sua realidade divina, como
também a antipatia, a desconfiança, a irritação, a revolta. Isto é o que dá à
dúvida de fé sua personalidade extrema e própria, cujo impulso mais profundo é a
hostilidade para com Deus. É oportuno saber disso.
Assim, em toda a elucidação de dúvida entra a oração. A
oração excelente consiste em colocar-se intimamente na presença de Deus, abandonar a
revolta, desligar-se da irritação secreta, dispor-se à verdade, abrir-se ao santo
segredo de Deus e repetir sempre: « Eu quero a verdade. Estou pronto a aceitá-la, mesmo
aquela que me vai dar trabalho, se ela for realmente verdade. Dá-me luz para que eu veja
onde ela está e como eu estou em relação a ela.»
III
Finalmente falemos de um tipo especial de crise de fé: a que
resulta do desenvolvimento interior da personalidade.
A fé é união do homem com o Deus que se revelou. Este é, em
essência, sempre igual. E, como Ele próprio é também Vida, muda o seu caráter com o
tipo de homem de que se trata. A maneira de crer do cristianismo primitivo era diferente
da da Idade Média; esta por sua vez difere dos tempos modernos. O homem do campo não
acredita da mesma maneira que o da cidade; a fé de um militar não é a de um artista ou
de um erudito. A maneira de ser de um homem, como também de uma mulher, se exprime na
fé. Isto é igualmente válido para os diferentes tipos psicológicos bem como para povos
e raças diversos. Também a fé da criança difere profundamente da do jovem e,
novamente, a deste da do adulto; também outra é a fé do idoso.
O desenvolvimento humano não se dá uniformemente, senão em
etapas. A situação espiritual que se encontra numa criança não passa gradualmente à
de um jovem e a deste, por sua vez, à de um adulto, mas criança, jovem e adulto
apresentam uma configuração definida. Estas configurações não vão se transformando
umas nas outras mas desprendem-se uma da outra. Com maior precisão talvez seja assim: a
primeira desenvolve-se, expressa-se nos pensamentos, nos modos, relaciona-se com as
pessoas e com as coisas. Por baixo desta, prepara-se uma nova forma, aguardando sob a
primeira e, então, irrompe mais ou menos rapidamente e determina toda a existência.
Trata-se, em todos os casos, de uma reforma, às vezes mesmo de uma mudança radical, mais
ou menos violenta, de toda a maneira de viver. Por outro lado a vida que se transforma é
sempre a mesma. Ainda lá está tudo o que foi aprendido, experimentado, adquirido e traz
o caráter do período da vida já passado. Então surgem tensões, confusões,
ambigüidades, contradições: as crises de desenvolvimento. Como o homem de que falamos
não é nenhum ser abstrato que crê, mas real e vivo, estas mudanças atuam também na
fé e transformam-se em crises. São crises de fé que possuem características
específicas em cada etapa da vida.
Procuremos agora esboçar essas crises. Antes de mais nada é
preciso notar que podemos dar aqui apenas um quadro genérico, o qual isoladamente nunca
se verifica em seu estado puro. Cada pessoa é um ser singular e nunca se encaixa
completamente em um esquema. Assim tanto o curso geral do desenvolvimento como também
suas fases e mudanças súbitas acontecem pelas maneiras mais variadas. Nessas condições
o que vamos dizer só pode ser tomado como aproximadamente certo.
A peculiaridade da existência infantil é, pode-se dizer, o fato
de ser somente crescimento. Um crescimento totalmente vulnerável, incapaz de defender-se
e impor-se. Assim a vida constrói um invólucro protetor em torno dela. Esse invólucro
consiste primariamente no cuidado dos pais; depois no daqueles que têm alguma
responsabilidade na sua educação e, principalmente na atitude assumida involuntariamente
pelos adultos em relação à criança. A expressão ambiental e objetiva deste cuidado
encontra-se na segurança e no isolamento oferecidos pela casa. Assim permanecem estranhos
à criança a luta, o perigo, as coisa sérias no sentido que lhes dá o adulto. Esse
invólucro protetor é, antes de tudo, formado pela maneira como ela própria pensa e
sente. A criança percebe a realidade de maneira diferente do adulto. Realidade, fantasia,
coisas sérias e brincadeiras se entrelaçam e formam um mundo fechado em si mesmo
diferente do mundo adulto. A mesma característica possui a fé da criança. A realidade
divina e a realidade terrena, as figuras da fé e das pessoas próximas, as escrituras
sagradas, lendas e contos de fada tudo converge numa só unidade reciprocamente
atuante. A crítica e o ataque lhe são estranhos. A luta entre a vida e o pensamento, no
seu sentido próprio, ainda não começou.
Com isto não se quer dizer que a criança viva numa atmosfera de
paz e felicidade. Ela está sujeita ao sofrimento, necessidades espirituais e desespero.
Sobretudo o medo a aflige muito. Tudo porém está encerrado num mundo pequeno e
invisível onde se interpenetram exterior e interior, realidade e sonho. A sua fé possui
também esse caráter.
A crise surge com o despontar do impulso. Este vive também na
criança porém atado. Ela sonha. Agora ele se põe em evidência abertamente. Tão logo
isso se dá ela não mais se abre ao ambiente protetor. Ela se subtrai a ele. O infinito
faz-se sentir; o desejo que não possui limites; as esperanças que são indefinidas; os
sonhos que não se materializam. Por outro lado a criança é subtraída aos pais e aos
mestres. Ao mesmo tempo crescem o capricho e a vaidade. E como a força é ainda muito
pequena, a estrutura interior ainda insegura, a vaidade torna-se mais forte. O impulso
força a explosão do mundo infantil e a conquista da amplidão da vida; a necessidade de
valorização impele-o a insurgir-se contra as autoridades até então incontestadas,
buscando liberdade, honra e poder. Isto também é válido para a fé. O jovem, ansioso
por uma vida sem limites, tem a impressão de estar sendo coagido pela fé que nele está
estampada através das formas de vivência da criança. Buscando prestígio e
auto-afirmação, ação e honra, o jovem sente-se reprimido pelas autoridades religiosas.
Ainda mais quando atua a oposição natural contra as gerações passadas unida à
resistência às concepções religiosas vigorantes. Surge então um espécie
característica de obstáculos religiosos. Revestem-se freqüentemente de uma forma
intelectual do tipo filosófico, social ou qualquer outra. O que as impulsiona na
realidade é a vontade do jovem, que amadurece, de conseguir espaço para construir sua
nova existência, de forma diferente da infantil na qual estavam estampadas as suas
concepções de fé de até agora.
Com certa freqüência isto é sentido, ou pressentido, por um
educador, um sacerdote ou por um velho amigo. Ele precisa ajudar o jovem de maneira a
fazê-lo considerar, na existência que se abre, um lugar para as concepções da fé; e
não apenas obedecer as suas disposições, na sua vida que se lança, mas garantir a sua
firmeza e realização. (Os pais, na maior parte dos casos, nada podem fazer pois a
criança achando-se, em relação a eles, numa profunda e mesmo inquietante oposição,
só em último caso os procura.)
Quando a transformação é bem sucedida surge uma nova forma de
fé: a do jovem. Ela é dominada por duas atitudes: a sensação de infinito da vida que
se lança e a confiança da personalidade que se despertou a si mesma. É uma
religiosidade idealista, bela, generosa, luminosa, mesmo por isso ameaçada também por
decepções de todo tipo. Ela possui uma tarefa importante na vida. A maior parte do que,
mais tarde se materializa, com ousadia e nobreza, começa aqui. Todavia ameaçam também
decisões precipitadas, comprometimentos que ultrapassam as próprias forças, ligações
para as quais a índole ainda não é suficientemente poderosa.
Lentamente flexiona-se então o arco da vida. O caráter de
infinito, a confiança ilimitada se desvanecem e algo de novo acontece: irrompe a
realidade da existência. O jovem vê essa realidade assim como ela é, não
completamente. Para ele, a idéia é mais importante que a coisa; o sentimento pessoal,
mais importante que as condições sociais e históricas circundantes. Isto agora se
altera. O mundo mostra-se na sua dureza. Parece-lhe então que a fé, já determinada
pelas formas de vida da juventude, possui algo irreal em si.