Missão Subterrânea
Rebeca Monteiro
Esta é a história de Luna, uma mulher, cuja missão era dar
culto, prestar homenagens ao grande satélite, o símbolo que encanta os poetas e os
amantes de todos os tempos. Luna pertencia a um povo, mais ou menos primitivo, que, de
acordo com a mitologia, viveu há milhares de anos atrás e que, para piorar ainda mais a
situação, morava no fundo de um poço.
Para começar, contaremos como lhes foi imputada esta sina. Pois
essa história é muito importante para compreendermos a própria história de Luna.
Dizem as lendas que, originalmente, aquele povo havia sido criado,
antes de todos os tempos, pelo Deus da luz, que era a um tempo terrível e maravilhoso. De
tão brilhante e inexaurível que era, chamavam-no simplesmente "O que é".
Após a criação do mundo, completada e admirada sua obra-prima,
criada do nada, "O que é" encarregou suas criaturas, homem e mulher, de uma
importante e cósmica missão: preencher os buracos negros de todo o universo com a
luminosidade divina, que lhes havia sido emprestada, para ser doada de herança, a todas
as gerações futuras da raça a que pertencia Luna.
eu-lhes ainda capacidade para enxergar tudo o que a luz iluminava.
"O que é " não era a luz ela mesma, mas era sua causa primeira, o que a fazia
existir e invadir e preencher qualquer espaço de vazio e escuridão.
É por isso que as criaturas, assim formadas, tinham uma aversão
intrínseca e instintiva contra tudo o que era vazio ou escuro. E viviam em harmonia sob
os olhares amorosos de "O que é" no paraíso criado somente para eles. Naqueles
dias felizes, preparavam-se para sua grande missão.
Mas a felicidade não durou muito. Eis que certo dia, de um
longínquo buraco negro, emergia uma criatura monstruosa. Bem sabia ela da missão que
"O que é" havia dado às criaturas, pois ele mesmo, o monstro, outrora estivera
a serviço de "O que é", porém, caíra em desgraça.
Agora, todo o seu esforço concentrava-se em evitar o avanço da
luz. E sua principal estratégia, por incrível que pareça, era bastante ambígua: atrair
a luz e as criaturas, para absorver e apagar toda a sua luminosidade. Foi assim que, certo
dia, disfarçado de manso cordeiro, aproximou-se das criaturas e, aproveitando-se do seu
pavor intrínseco contra o vazio, questionou-os:
- Que missão é esta que lhes foi imposta? Como pôde "O que
é" expô-los desta maneira ao perigo e ao sofrimento? Ele não disse que os amava? E
por que vocês o chamam de "O que é" ? Será que não é porque ele quer evitar
que vocês sejam também, e, assim, pudessem estar ameaçando a sua soberania?
Assim, instalou-se no coração das criaturas, a desconfiança e a
má-fé.
Até que um dia, as criaturas se rebelaram contra "O que
é". E, em vez de reconhecerem o equívoco da sua rebelião, resolveram enfrentar seu
criador, pretendendo ser capazes de, eles mesmos emanarem luz suficiente para dar
continuidade à sua existência....
Entretanto, assim que saíram de perto de "O que é" e
do paraíso, contraíram uma doença alérgica contra a luz e o contra tudo o que ela
iluminava naquele mundo.
E foi assim que eles foram parar no fundo do poço e continuavam
isolados até os dias de Luna. O único vislumbre que passaram a ter do mundo de cima era
o que se podia ver através do buraco do poço, no alto das suas cabeças: ora o sol, ora
as estrelas, ora nuvens ou pássaros.
Com o tempo, é claro que eles também foram se acostumando à
escuridão e sua busca natural pela luz passou a ser sublimada e abafada. Passaram a
contentar-se, reunindo as migalhas de luz que podiam absorver naquele mundo de sombras e
limitaram-se a viver das minhocas e raízes de plantas que colhiam diretamente do solo.
- A vida é assim mesmo - consolavam-se uns aos outros.
Nesse meio é que Luna foi criada. Era uma jovem bela e cheia de
sonhos. Não se conformava com a idéia de viver toda a sua vida no fundo do poço e vivia
a traçar planos de fuga para o mundo de cima.
Seus colegas e familiares a consideravam rebelde e perigosa por
isso. Diziam até que ela era meio maluca, porque não aceitava certas regras que todos
seguiam há séculos na comunidade.
Também a chamavam de louca, porque muitos já nem acreditavam
mais na existência do mundo de cima, ao contrário de Luna, que não podia se livrar de
algo que intuitivamente lhe dizia que devia haver esse mundo, da mesma forma que tinha que
existir "O que é".
Certo dia, de tanto ficar a contemplar o buraco do poço no alto
da caverna, Luna caiu num outro buraco, desta vez no chão.
Depois que se recuperou da queda, viu que havia uma passagem
secreta, bem à sua frente. Resolveu seguí-la. Era íngreme e toda cheia de lama. Mas
como não via jeito mais fácil para sair do buraco, seguiu em frente, até que viu uma
fraca luz ao longe.
O final, a passagem dava em uma caverna, que ficava no fundo de
outro poço. Mas Luna nem precisou olhar para cima para sabê-lo, pois a luz da lua era
refletida na superfície de um maravilhoso lago.
Luna logo viu que aquele seria o caminho para a libertação do
seu povo, pois, onde há um lago, deve haver uma nascente. Em sua euforia, Luna decidiu
procurar um caminho de volta para seu povo, para contar-lhes a respeito da novidade.
Qual não foi a sua decepção, porém, quando ela lhes contou do
lago e o que ele poderia significar para o povo, e a maioria deu de ombros ou até riu na
cara dela:
- Um lago, você dizia, cheio de água? Ser que a água não está
vazando da sua cabeça?
Tanto a atormentaram e encheram de perguntas embaraçosas, que
Luna começou a chorar e até a duvidar de si mesma. Por outro lado, Luna nunca foi de
desistir fácil:
- Eu sei o que eu vi! teimava consigo mesma.
Até que, um dia, quando percebeu que ninguém mais acreditaria
nela mesmo, e até que buscavam matá-la, resolveu fugir para o lago.
Ali chegando, ficou algum tempo contemplando o reflexo da lua. O
murmúrio das águas parecia dizer-lhe: - Mergulhe já e livre-se desse poço e dessa vida
horrível.
De súbito, reunindo toda a sua coragem, Luna mergulhou.
O choque foi grande e Luna demorou para acostumar-se à baixa
temperatura da água.
O primeiro mergulho também não foi muito demorado. Não tinha
fôlego suficiente. Mas ela sabia que, treinando bastante, seria logo capaz de um mergulho
mais longo.
E, de fato, depois de alguns meses de treino, Luna bateu o recorde
em profundidade. Quando atingiu o fundo do lago, repentinamente foi pega por uma
correnteza forte. Luna foi envolvida por um forte turbilhão, para baixo e para cima, até
que foi violentamente projetada para fora, indo cair numa maravilhosa cascata do mundo de
fora.
É claro que Luna levou algum tempo para acostumar-se àquele novo
e deslumbrante mundo e ficou doente. Mas sua alegria de ver a natureza e as coisas como
"O que é" as tinha criado, a curava de tudo. Logo ela também iria encontrar
uma comunidade de seres igualmente criados por "O que é".
Depois de mais algum tempo, ela viria a se apaixonar e casar com o
líder da comunidade, tendo com ele muitos filhos, que viriam a cumprir a missão
originalmente atribuída ao povo de Luna.
Mas essa já é outra história...