Home | Novidades Revistas Nossos Livros  Links Amigos

A Prodigalidade e o Direito

 

Júlio Aguiar de Oliveira*

 

Introdução

Prodigalidade é um termo do vocabulário moral. No contexto específico da Ética a Nicômacos prodigalidade tem um sentido bem definido:

Em relação ao dinheiro que se dá e recebe, o meio termo é a liberalidade, e o excesso e a falta são respectivamente a prodigalidade e a avareza. Nestas ações as pessoas se excedem ou são deficientes de maneiras opostas; o pródigo se excede em gastos e é deficiente em relação aos ganhos, enquanto o avarento se excede em ganhar e é deficiente em relação aos gastos (...). (ARISTÓTELES, 2001, 1107b)

A modernidade, uma vez que se distancia da ética aristotélica, encontra-se diante da tarefa de conferir novos significados aos conceitos éticos herdados da tradição aristotélica. Neste artigo, dedicamo-nos a investigar a tentativa moderna de conferir significação jurídica ao termo prodigalidade, tomando como objeto de estudo a inserção da prodigalidade em nosso Direito Civil. Com conseqüência dessa investigação, não poderíamos deixar de apresentar, ao final, nossas críticas à posição que, em relação ao tema, tomou o nosso Novo Código Civil.

1. A prodigalidade no Código Civil de 1916

Entre as emendas propostas por João Baptista Villela ao Projeto de Código Civil, encontra-se a supressão do inciso V do artigo 1.791 (cf. VILLELA, 1985, p. 48). A justificativa é a seguinte:

A prodigalidade, como a avareza, podem conter-se nos limites da normalidade ou deles transbordar. No primeiro caso, é uma característica pessoal, que deve ser respeitada, tanto quanto outro qualquer atributo que integre o nosso modo de ser. No segundo caso, constitui manifestação de doença mental e, portanto, já estará alcançada pelos incisos I ou III. Individuar a prodigalidade como razão para a curatela é tão despropositado quanto fazê-lo com a avareza. (VILLELA, 1985, p. 48).

Repare-se, aqui, o quanto já nos encontramos distanciados do sentido aristotélico de prodigalidade. A prodigalidade já não é uma deficiência em relação à liberalidade. Ela, agora, ou é característica pessoal (que deve ser respeitada) ou manifestação de doença mental. João Baptista Villela acompanha, nesse ponto, entendimento defendido por Tronchet que, nos trabalhos preparatórios do Código Civil francês, bate-se contra a inclusão da prodigalidade como razão para a curatela. Dado que a prodigalidade faz circular a riqueza – argumenta Tronchet – ela é um bem para o Estado ou, na pior das hipóteses, um mal menor do que a avareza (cf. MAZEAUD et MAZEAUD, 1955, p. 1319). Além do que, na esteira do pensamento liberal, a interdição por prodigalidade se mostra contrária a liberdade do cidadão e ao princípio da livre circulação dos bens (cf. MAZEAUD et MAZEAUD, 1955, p. 1318).

Também Clóvis Bevilaqua, em seu projeto de Código Civil, exclui os pródigos do rol dos relativamente incapazes e, conseqüentemente, a prodigalidade, do rol de motivos da curatela. Após discorrer sobre a história do Direito no que importa a interdição por prodigalidade, acompanhando-a desde sua origem, no Direito Romano, como proteção da propriedade familiar, até as Ordenações do Reino, conclui:

Atendendo a essas ponderações, reconhecendo a necessidade de garantir o direito individual contra as maquinações da ganância, da preguiça e da imoralidade, o jurista deve declarar: ou a prodigalidade é um caso manifesto de alienação mental, e não há necessidade de destacá-la, para constituir uma classe distinta de incapacidade, pois entra na regra comum; ou tal não é positivamente, e não há justo motivo para feri-la com a interdição. Os alienados pródigos sejam interditos, porque são alienados; os pródigos de espírito lúcido e razão íntegra sejam respeitados na sua liberdade moral, pois, sob color de proteger-lhes os bens, faz-se-lhes gravíssima ofensa ao direito de propriedade e à dignidade humana. (BEVILAQUA, 1949, p. 202).

Infelizmente, não alcança sucesso a posição de Clóvis Bevilaqua. Submetido o projeto de Código Civil a Comissão Especial da Câmara, propõe-se emenda substitutiva ao título II pela qual se incluem os pródigos entre os relativamente incapazes. Acrescentam-se também os artigos 459, 460 e 461, que regulam, no âmbito da curatela, a interdição específica dos pródigos.

Clóvis ainda luta, agora no campo hermenêutico, pela exclusão da prodigalidade do conjunto das causas de interdição. A estratégia consiste em buscar torná-la dependente da alienação mental.

A lei considera a prodigalidade a externação característica de um particular desarranjo mental, de uma psicopatia restrita ao governo da fortuna bonitária. Por isso submete o pródigo, como se fora menor, à guarda de outrem, e fere-o com a interdição, aliás também limitada. (BEVILAQUA, 1976, p. 425).

A mesma tese também é defendida por Caio Mário da Silva Pereira:

O que mais modernamente predomina é que, se a prodigalidade vem associada a um processo de patogenia mental, criando efetivamente uma síndrome degenerativa ou distúrbios psíquicos, comporta interdição. Mas se o pródigo mostra apenas tendências aos gastos imoderados, não deverá de se lhe retirar o poder de ação no mundo civil, reduzindo-o a uma situação próxima à psicopatia. (PEREIRA, 1993, p. 258).

No entanto, Carvalho Santos aponta a inadequação da vinculação da prodigalidade à alienação mental. É incoerente, ressalta, uma interpretação do Código que faça depender a possibilidade da interdição por prodigalidade da confirmação de alienação mental. A prodigalidade, no contexto do Código Civil de 1916, é causa de incapacidade ainda quando não decorra ou venha acompanhada de vício mental. Não fosse assim, ficaria completamente sem sentido inclusão do específico inciso II do artigo 6o, desnecessário diante da abrangência do artigo 5o, inciso II. (cf. CARVALHO SANTOS, 1952, p. 275).

Buscar condicionar a interdição por prodigalidade a um qualquer defeito mental que a justifique afronta a integridade lógica do Código. O pródigo não pode ser equiparado ao louco. Uma tal equiparação, ainda que proposta com a mais nobre das intenções, não sobrevive à crítica de uma interpretação sistemática do Código. Carvalho Santos está consciente disso, mesmo porque sua exegese não reflete um sentimento íntimo de aprovação do instituto, de todo inexistente, como se pode ver:

Assim interpretando o Código, longe estamos de subscrever como razoável a sua doutrina, pois preferiríamos que o Código não julgasse a prodigalidade como causa de incapacidade por nos parecer mais consentâneo com a orientação hodierna do pleno gozo de todas as liberdades. (CARVALHO SANTOS, 1952, p. 275).

Em suma, apesar dos esforços legiferantes de Clóvis Bevilaqua e João Baptista Villela, dos esforços hermenêuticos de Clóvis Bevilaqua e Caio Mário e apesar da convicção pessoal de Carvalho Santos, a prodigalidade persiste como causa de incapacidade em nosso Código Civil de 1916.

2. A interdição por prodigalidade como proteção dos interesses da família no Código Civil de 1916

A interdição do pródigo, limitando sua capacidade negocial, é estabelecida, no Direito Romano, já nas XII Tábuas. (cf. KASER, 1999, p. 106). Seu fundamento encontra-se na proteção dos interesses da família, mais especificamente, dos interesses econômicos da família. A fórmula pretoriana do decreto de interdição conservada por Paulo, na qual se reflete essa fundamentação, é a seguinte: “Quando tibi bona paterna avitaque nequitia tua disperdis liberosque tuos ad egestatem perducis, ob eam rem tibi aere comercioque interdico”. [1] (KASER,1999, p 106).

É justamente com base nessa ligação entre a interdição por prodigalidade e os interesses da família que se sustentam as críticas a Clóvis Bevilaqua quando, em seu projeto de Código Civil, decide por excluir a prodigalidade como causa de interdição. O parecer da Faculdade de Direito de Minas Gerais é, nesse ponto, paradigmático:

É certo que a tendência do direito moderno é para abolir a interdição por prodigalidade, não é menos certo que, enraizada nas nossas tradições, tal instituição prestou ótimos serviços à família brasileira e deve ser mantida, sem inconveniente. (MELLO, 1935: 15).

Entretanto, como Clóvis Bevilaqua já bem o percebera, mais próprio seria dizer, no lugar de interesses da família, interesses de possíveis herdeiros. Eduardo Espínola, comentando o artigo 460 do Código Civil de 1916, o diz abertamente:

A nossa lei, como a portuguesa, só considera o aspecto econômico da prodigalidade e o interesse das pessoas que, na expectativa de uma sucessão legítima, possam considerar-se prejudicadas com os desperdícios do pródigo (...). (ESPÍNOLA, 1957, p. 634).

Um tal desvirtuamento do instituto impõe, no plano interpretativo, o trabalho de repensá-lo em maior profundidade. O objetivo é a recuperação da interdição por prodigalidade como instrumento de proteção exclusivamente da família. Trata-se de repensar a prodigalidade situando-a no contexto que lhe propicia a Constituição de 1988.

3. A prodigalidade e a Constituição de 1988

Possível abordagem hermenêutica, apta a realizar o objetivo estabelecido e, conseqüentemente, a evitar a conversão da interdição por prodigalidade em instrumento de garantia de herança, desenvolve-se a partir da negativa de se utilizar, no contexto do Código, uma definição não problematizada de prodigalidade. Isto se deve ao fato de que o artigo 460 do Código Civil de 1916 condiciona a interdição do pródigo à existência de cônjuge, ascendentes ou descendentes legítimos que a promovam, portanto, condiciona a prodigalidade à inserção do pródigo em uma família. Esse entendimento é ainda reforçado pela leitura do artigo 461, que faz cessar a interdição caso ocorra o desaparecimento dos parentes relacionados no artigo 460. Disso decorre que prodigalidade, em sentido jurídico, - e não meramente em sentido comum -, é fenômeno exclusivamente familiar. Manifestação de prodigalidade em sentido comum, ou seja, a conduta perdulária de indivíduo não vinculado a uma família, não é causa de processo de interdição por prodigalidade. O pródigo, em sentido jurídico, não existe senão como membro integrante de uma família, responsável ou co-responsável pela sua manutenção. Família, por outro lado, não se define pela comunidade de hipotéticos herdeiros de hipotética herança comum. Família, no contexto da Constituição da República de 1988, é a comunidade formada pelos cônjuges ou por qualquer dos pais e seus descendentes. À família, nosso ordenamento normativo atribui deveres (artigos 227, 229 e 230 da Constituição da República de 1988) e é justamente no cumprimento desses deveres que se encontram seus interesses. Assim, o pródigo, em sentido jurídico, é pessoa que, em perfeito estado mental, responsável ou co-responsável pelo sustento de uma família, desbarata seus bens, colocando em risco o desempenho, pela família, das obrigações a ela atribuídas por lei.

Definido o pródigo nesses termos, a interdição por prodigalidade perde seu caráter de violência à dignidade e à liberdade do individual no trato da propriedade, já que se dá em virtude da salvaguarda do cumprimento de obrigações que a lei impõe ao indivíduo por conta de sua vinculação a uma família.

4. A prodigalidade no Novo Código Civil

Com o Novo Código Civil, porém, a exegese acima apresentada encontra-se sob grave ameaça. A maior dificuldade decorre do alargamento do rol de pessoas autorizadas a propor a interdição por prodigalidade. Segundo Venosa:

No Código novo, não existe disciplina específica para a curatela do pródigo, que é disciplinada pela regra geral. Dessa forma, a interdição em geral, inclusive aquela por prodigalidade, pode ser requerida nos termos do art. 1.768 (I – pelos pais ou tutores; II – pelo cônjuge ou por qualquer parente; III – pelo Ministério Público). (VENOSA, 2003, p. 182)

Ora, se a interdição por prodigalidade puder ser requerida por qualquer parente ou pelo Ministério Público, já não há como sustentar a especificidade do conceito jurídico de prodigalidade pela sua intrínseca vinculação à família. Tem-se, portanto, mais uma vez, o caminho aberto para o desvirtuamento do instituto, na medida em que seu fundamento, que se encontrava na proteção da família, migra para a proteção do indivíduo. Nesse passo, o pródigo deve ser protegido, por meio de interdição, de si mesmo, podendo ser a prodigalidade definida exclusivamente em virtude de análise contábil. Assim, para Venosa, pródigo é “o indivíduo que gasta desmedidamente, dissipando seus bens, sua fortuna” (VENOSA, 2003, p. 172). Se a mera dissipação de bens é suficiente para a definição do pródigo em sentido jurídico, mostra-se evidente o descompasso entre as normas desse instituto e aquelas outras, constitucionais, que garantem o direito fundamental à inviolabilidade da vida privada (Constituição da República, art.5o, inciso X), à propriedade privada (Constituição da República, art. 5o, inciso XXII) e o respeito, como princípio fundamental da República, da dignidade da pessoa humana (Constituição da República, art. 1o, inciso III).

5. Conclusão

Seja como for, é inegável que teria sido melhor se o legislador tivesse seguido os conselhos de Tronchet, Clóvis Bevilaqua e João Baptista Villela e suprimido do Código a prodigalidade como causa de interdição. Pois, afinal, se a prodigalidade é um vício, como já reparara Aristóteles, trata-se de um vício que se cura facilmente, se não pela idade, quase certamente pela pobreza. (cf. ARISTÓTELES, 2001: 1121a).

Bibliografia

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. tradução Mário da Gama Kury, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

BEVILAQUA, Clovis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil – v. 1. 8 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1949.

__________. Direito da família. 7 ed., Rio de Janeiro: Rio, 1976

CARVALHO SANTOS, J. M. de. Código civil brasileiro interpretado – v.1. 5 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1953.

JOSSERAND, Louis. Derecho civil – tomo I, vol. I. Traducción de Santiago Cunchillos y Manterola. Buenos Aires: Bosch y Cia, 1952.

KASER, Max. Direito Privado Romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämerle. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.

MAZEAUD et MAZEAUD. Leçons de droit civil – tome premier. Paris: Éditions Montchrestien, 1955.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil . v. 1. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.

__________. Instituições de direito civil. V. 5. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

RIBAS, Antonio Joaquim. Curso de direito civil brasileiro. Vol. II. Brasília: Senado Federal, 2003. (História do direito brasileiro).

VENOSA, Sílvio Salvo de. Direito civil: parte geral. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2003. (Coleção direito civil)

VILLELA, João Baptista. O direito de família no Senado: emendas ao projeto de Código Civil. Belo Horizonte: UFMG, 1985.



* Júlio Aguiar de Oliveira é Mestre e Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor de Filosofia do Direito nos cursos de Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Membro da Associação Brasileira de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito (ABRAFI).

[1] “Já que com a tua malícia dilapidas os bens paternos e avoengos e levas os teus filhos à miséria, por isso te proíbo aes (dinheiro, contrair dívidas) e commercium (troca de bens, sobretudo por mancipatio)”. (KASER, 1999, p. 475).