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o Trabalho dos Copistas
Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br
Costuma-se datar o início da Idade Média em 476, ano em que perece o Império Romano no Ocidente. Em seu lugar surgem os reinos bárbaros, configurando aquela dualidade (Hegel) - dualidade bárbaro/romano, mas também pagão/cristão -, de fato essencial para a constituição da nova época.
Pensando mais na história cultural, Pieper propõe o ano 529, como marco inicial da Idade Média e de seu pensamento: a Escolástica. Com efeito, 529 é um ano emblemático: nele, por um lado, São Bento funda Monte Cassino; e, por outro, o Imperador fecha a Academia pagã de Atenas: a cultura, a apartir de então, estará marcada pela religião e restrita aos mosteiros. Os (poucos) estudos se voltarão principalmente para a compreensão da Bíblia e não haverá mais lugar para uma cultura simplesmente pagã.
Certamente, a Escolástica tem um seu fundador, pouco antes do ano 529, em Boécio (morto em 525). Só com seu trabalho de tradutor e comentarista - com que estabelece a ponte entre a cultura antiga e a Idade Média -, Boécio já teria garantido um lugar de relevo na História da Educação e justificado o título de fundador da Escolástica, "primeiro escolástico" (Grabmann). Pois, não por acaso, "Escolástica" se relaciona com "escola", "escolar" (e scholar), e o ensino da Idade Média muito deve a esse educador.
Mas, há ainda uma outra contribuição inovadora de Boécio que incide sobre outro elemento também essencial na constituição da escolástica como método: um estilo de pensamento teológico. Os opúsculos teológicos de Boécio - dos quais o principal é o De Trinitate - são as "primícias do método escolástico" e, por isso, é Boécio considerado "um precursor de S. Tomás" (Stewart e Rand). Já o título desse seu livro ("Como a Trindade é um único Deus e não três deuses") expressa o propósito radical de esclarecer racionalmente a verdade de fé [1] .
Boécio lanças as bases de quase tudo o que vai ocorrer na Educação medieval. Não pôde prever, porém - ele morre pouco antes da fundação de Monte Cassino -, um único fato essencial: que o mosteiro (e não a corte) seria "o lugar" da cultura e do estudo.
Para isto seria necessário esperar a ordem beneditina e, depois, o mosteiro de Vivarium, fundado por Cassiodoro.
Cassiodoro (c. 485-580) foi colega de Boécio na corte do reino ostrogodo (o rei Teodorico queria "romanizar" a cultura e nomeava romanos como ministros).
Como faz notar Pieper (Scholastik), a grande contribuição de Cassiodoro foi a de perceber que esse componente fundamental para a educação, a skholé - as condições (exteriores e interiores) de tranqüilidade e abertura da alma para o estudo -, só podia dar-se, na época, no mosteiro.
Em 555, aproveitando-se de condições especialmente favoráveis, Cassiodoro funda o mosteiro de Vivarium, que marca o início dos mosteiros como centros de estudo e do trabalho dos copistas. Em seu livro Instituições, o próprio Cassiodoro descreve seu mosteiro e incentiva - no texto cuja tradução apresentamos (cap. 30) - o trabalho dos copistas.
No Cap. 29, "Sobre a localização do Mosteiro de Vivarium e do Castellense", Cassiodoro fala do quão adequado é o lugar (perto de Squillace, Calábria) e do empenho e cuidados que teve ao construir Vivarium.
Na verdade, a posição do mosteiro de Vivarium é adequada para prestar ajuda a muitos peregrinos e necessitados, pois tendes hortos irrigados e tendes perto as correntes piscosas do rio Pellena [2] , que não é perigoso pela dimensão de suas águas nem desprezível por pequenez. Regulado com engenho, ele corre por onde julgueis necessário e é suficiente para vossos hortos e moinhos. Ele está aqui quando desejeis e, depois de atender a vossos desejos, afasta-se em seu curso. Assim, ele devota-se a este serviço: não vos atemoriza e não vos pode faltar quando o procurais.
O rio Pellena
Cassiodoro pensa no conforto dos monges, que vão se dedicar a trabalhos de importância cultural, e pensa até no bem dos peixes dos viveiros.
O caminho de Vivarium para Monte Castelo
Tendes abaixo o mar, que oferece variadas pescas e, se quiserdes, podeis lançar a pesca nos viveiros. Pois lá fizemos, com a ajuda do Senhor, receptáculos agradáveis nos quais os muitos peixes – embora encerrados - nadam à vontade. De tal modo são as grutas escavadas nos montes, que os peixes não se sentem aprisionados: livremente tomam alimento e se escondem em suas cavernas habituais.
Os viveiros vistos do Monte Castelo
Também dispomos de adequados locais de banho, que mandamos construir para os doentes, onde corre uma água de fonte limpíssima e é muito agradável para beber e para lavar-se.
Como visitantes e hóspedes podem perturbar o recolhimento de Vivarium, Cassiodoro instala em Monte Castelo uma opção mais austera para praticar a ascese.
Mas estas coisas, como sabeis, são deleites nas coisas presentes e não a esperança futura dos fiéis: esta é para sempre, enquanto essas outras coisas são passageiras.
Instalados em Vivarium , dediquemo-nos, antes, aos desejos que nos fazem reinar com Cristo.
3. Pois se, como é digno de crer, a vida do cenóbio vos instrui competentemente no mosteiro de Vivarium, com o auxílio da graça de Deus, e se com a alma purificada se aspira a algo mais sublime, tendes as suavidades secretas do monte Castelo, onde, tal como anacoretas, podeis viver felizmente com a ajuda do Senhor. Pois são lugares afastados e desérticos na medida em que estão encerrados por antigas muralhas. Por isso, será adequado para vós – uma vez exercitados e provadíssimos – escolher esse habitáculo, se antes a ascenção foi preparada no coração. Pois, sabeis pelas leituras que podeis desejar (ou tolerar) um desses dois modos de vida. É muito importante que - observada a probidade de vossa conduta – quem não é capaz de ensinar a outros com palavras, instrua-os com a santidade dos costumes.
No capítulo 30 das Instituições, cuja tradução apresentamos a seguir, Cassiodoro expõe o que oferece e o que espera dos copistas. Cassiodoro sabe da extrema importância que esse trabalho tem para a preservação da cultura e para a Igreja. E também para a formação do monge.
Cassiodoro (c. 485-580)
Instituições - Cap. 30.
Sobre os copistas e a recordação da ortografiatrad.: Jean Lauand
1. Quanto a mim, eu vos manifesto minha predileção: entre as tarefas que podeis realizar com esforço corporal, a dedicação dos copistas, se escrevem sem erros, é - e talvez não injustamente - o que mais me agrada. Pois, relendo as Escrituras divinas, instruem de modo salutar sua mente e copiando espalham por toda parte os preceitos do Senhor.
Que belo propósito, que louvável aplicação é o pregar aos homens com a mão, abrir línguas com os dedos, dar em silêncio salvação aos mortais e - com a cana e a tinta - lutar contra as ilícitas insinuações do diabo.
Pois Satanás recebe tantas feridas quantas são as palavras do Senhor que o copista transcreve. Ele, permanecendo em seu lugar, percorre diversas províncias com a dissiminação de suas obras. Seu trabalho é lido em lugares santos. Os povos ouvem e podem renunciar à sua vontade perversa e servir o Senhor com mente pura. Com seu trabalho, ele age, mesmo estando ausente.
Não sou capaz de dizer que não podem receber uma mudança de vida por causa de tanto bem que fazem, se se sabe que fazem esse trabalho não por ambição, mas por um reto empenho.
O homem multiplica as palavras celestes e – dito de modo metafórico (se é que posso me expressar assim) – escreve com três dedos o que fala do poder da santa Trindade.
Ó que espetáculo glorioso para aqueles que o consideram bem! A cana corre escrevendo palavras celestes para que possa ser destruída a astúcia do diabo que se valeu da cana para golpear a cabeça do Senhor em Sua paixão.
É o caso também de louvar àqueles que de algum modo imitam o Senhor que, falando em modo figurado, com os Seus onipotentes dedos, escreveu a Sua obra. Muitas coisas podem se dizer desta tão ilustre arte, mas basta chamá-los de livreiros [librarios], que se consagram à libra [balança] da justiça do Senhor.
2. Mas para que os copistas não misturem tanto bem com palavras viciadas por modificação de letras ou um revisor não erudito não saiba corrigir os erros, é necessário ler os ortógrafos antigos, isto é, Vélio Longo, Cúrcio Valeriano, Papiriano, Adamâncio Mártir sobre o V e o B e, deste mesmo autor, sobre as primeiras, médias e últimas sílabas e sobre a tríplice colocação da letra B no nome. Leia-se também Eutiques sobre a aspiração e Foca sobre a diferença dos gêneros. Destes autores, eu recolhi, quantos pude, com cuidadosa solicitude.
E para que ninguém ficasse perturbado pela obscuridade desses códices – pois em sua maior parte confundem pela mistura das antigas declinações – cuidei, com especial empenho, que tivésseis uma seleção de suas regras no livro que compus, Sobre a Ortografia: uma vez suprimida a dúvida, o ânimo pode se lançar mais livre pelo caminho da correção.
Sabemos também que Diomedes e Teoctisto escreveram sobre essa arte; se se encontrarem esses livros, recolhei seus resumos. Talvez possais achar outros por meio dos quais se amplie vossa instrução. Mas estes que foram mencionados se forem relidos com assíduo empenho removerão em vós toda treva da ignorância e será conhecidíssimo o que se ignorava.
3. Acrescentamos a esses autores, artistas doutos na cobertura de livros para que a beleza das letras sagradas se vestisse por cima com ornato: imitando talvez de algum modo aquele exemplo da párabola do Senhor, que cobriu com vestes nupciais àqueles que julgava que deviam ser convidados ao banquete celestial em Sua glória.
Se não me engano, expressamos adequadamente as diversas formas de elaboração gravadas em um códice, para que o estudioso possa escolher a forma de cobertura que prefira.
4. Preparamos também, para as vigílias noturnas, lanternas artificiais, que mantêm luminosas chamas, que alimentam por si mesmas o fogo. Conservam abundantemente a grandíssima claridade de sua ubérrima luz uma vez terminada a ação humana e nelas não falta a gordura do óleo ainda que se queime continuamente com chamas ardentes.
5. Também não permitimos de modo algum que ignorásseis a medida das horas, que, como se sabe, foi descoberta para grande utilidade do gênero humano.
Por isso, assegurei-me de que vos colocassem um relógio que marca as horas pela luz de sol, e outro de água que indique continuamente a medida das horas do dia e da noite, pois, como se sabe, freqüentemente há muitos dias em que falta a luz do sol. De modo admirável a água faz na terra o que não pode conseguir o atenuado vigor flamígero do sol. De tal modo a técnica dos homens faz com que ande em harmonia o que a natureza separou; e na confiabilidade de ambas as coisas há tanta verdade que podes considerar que são estabelecidas por anjos.
Estas coisas foram dispostas assim para que os soldados de Cristo, admoestados por sinais certíssimos, sejam chamados a exercer a obra divina como que convocados por clamor de trombetas.
[1] Certamente isto não é algo de novo. Agostinho e outros tinham escrito textos com o mesmo intuito. Aliás, Agostinho havia afirmado a necessidade de cooperação entre fé e razão, com a célebre sentença do Sermão 43: intellige ut credas, crede ut intelligas, "entende a fim de que creias", "crê a fim de que entendas". Para Boécio, o lema era: fidem, si poteris, rationemque cojunge, "conjuga a fé e a razão"!, conselho com que encerra uma carta ao Papa João I. À primeira vista, nada de novo. A novidade, porém, está em que esse propósito tenha sido assumido explicitamente, programaticamente: aquilo que antes podia ser unicamente uma atitude fática tornava-se agora um princípio. Nova é também a radicalidade do projeto. No seu De Trinitate, encontram-se várias concepções platônicas e neo-platônicas; as dez categorias, os gêneros, as espécies e diversos outros conceitos de Aristóteles; todo tipo de análises filosóficas e de linguagem. Mas não há nem sequer uma única citação ou referência à Bíblia, e isto num tratado teológico sobre a Santíssima Trindade!