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Dragões - As Estratégias do Jogo
de R.P.G. na sala de aula
Maria Luísa Malato Borralho
Professora Associada da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto
mlmalato@gmail.comÂngela Maria Fonseca Viegas
Professora do Ensino Secundário
(PQND EB 2/3 e Secundária
de Arcozelo, Ponte de Lima)
joang@sapo.pt
“Os problemas não são obstáculos, mas formas de aprendizagem.”
“A criatividade não é um dom raro. Olha bem para ti.”
“Nunca te abandones.”
(Aforismos da série Dragon Ball/
Dragon Ball Z, Toei Animation, 1986 e 1989)
O esforço desinteressado tem um nome: chama-se jogo. “Pôr em jogo”, “Estar em jogo”, “Jouer, to play, jogar, representar, tocar, interpretar, exercitar”. É neste vasto sentido que ele se confunde com a linguagem e com a maior parte das actividades humanas, e muito especialmente com as funções da educação.
Não é por acaso que Wittgenstein escolhe o conceito de jogo para analisar as lacunas de toda e qualquer definição (Wittgenstein, ed. 1987: max. 227-236). É nesse sentido ainda que ele faz parte natural do universo infantil e juvenil, nos animais e nos seres humanos (Château, 1961: 8), e se transmite, mais tarde, às actividades profissionais, do mundo dos adultos. É nesse domínio que inscrevemos algumas estratégias do ensino no role playing game, o jogo de representação. Nas diversas áreas e disciplinas escolares, representar (imitar, mimetizar, dramatizar) transforma o conhecimento teórico em narrativas ficcionais, vividas como se fizessem parte da nossa vida, acabando assim por fazer parte dela. A fábula, a parábola, a alegoria são a corporização, a materialização de ideias abstractas: possuem o condão de nos tocar, de nos tornar literalmente sensíveis, apreendendo o sentimento através dos sentidos, e os sentidos através do sentimento. É esse o veículo do exemplo, do mito ou da ficção, como já Aristóteles tinha repetidamente sublinhado, quer do ponto de vista da Retórica, quer do ponto de vista da Poética literária. “Todo o jogo se move no domínio da ficção, isto é, ao mesmo tempo da invenção e da deslocação em relação à realidade ordinária” (Ferrean, Mariet, Porcher, 1979: 20).
Schiller afirmaria que toda a Arte é um jogo, resultado de uma pulsão lúdica, Spieltrieb, resultado de uma conciliação entre a pulsão dos sentidos (que reclama mudança e que o tempo tenha um conteúdo) e a pulsão formal (que exigiria a supressão do tempo e a ausência de mudança): “a pulsão lúdica, portanto, tenderia para suprimir o tempo no tempo, para conciliar o devir com o ser absoluto, a mudança com a identidade”. (Schiller, 14.ª Carta in AA. VV., 1989: I, 192).
Em 1991, um colóquio internacional de juristas procurou demonstrar que a metáfora do jogo era suficientemente esclarecedora para formar a matéria de um paradigma, nomeadamente para o Direito (Ost, Van de Kerchove, 1992: 9).
E ainda para as Ciências, até ou sobretudo as mais exactas, como a Matemática, sendo as leis matemáticas a base de inúmeros enigmas algébricos ou geométricos (dos livros de vulgarização de Martin Gardner ao best-seller de Ian Stewart, Deus joga aos dados?). Têm vindo a desenvolver-se, no ensino da matemática, várias estratégias educativas que passam pela percepção do jogo nos problemas/enigmas matemáticos: todas procuram ultrapassar a aversão que muitos alunos sentem pela disciplina - aversão essa muitas vezes orgulhosamente herdada e apresentada como hereditária ou própria do “génio” nacional dos portugueses, e que tem nesse orgulho um obstáculo acrescido.
A própria Ética ou a Moral podem ser assim compreendidas. O filósofo de língua portuguesa Vicente Ferreira da Silva, sublinhando o carácter triste e desajustado do homem contemporâneo (e não dizemos nós que andam assim os nossos alunos? e os nossos professores?), acreditava que a causa de tamanha tristeza e desajustamento residia nos valores da sociedade: o seu credo positivista (mais até do que racionalista) só lhe permitia valorizar o que julgava imediatamente útil e economicamente rentável; a sua política, nacional e internacional, era concebida como uma “conferência de credores e de devedores” (Silva, 1966: II, 170). O homo ludens seria para Vicente Ferreira da Silva a salvação para uma moral lúdica, desinteressada, em que o valor das acções não buscaria uma finalidade ulterior mas a realização em si mesmas e por si mesmas. O ser humano, limitado, escravizado pelo olhar do outro, teria, no jogo de vontades com o outro, uma forma de libertação desse olhar.
E ainda que se reduza a moral a uma retórica com efeito moral, já em 1540, num vasto plano pedagógico-didáctico, João de Barros editou as regras de um jogo, no Dialogo com dous filhos sobre preceptos moraes em modo de jogo, que teria inicialmente inventado para os seus filhos Catarina e António. Imitando a celebérrima tábua de Cebes, fundamentaria a obra na observação de que as palavras nuas eram bem menos eficazes que a pintura, por ser material e mais familiar da memória.
“- E sabes quanta força têm as coisas materiais (nesta parte) acerca de nós, que sendo Christo nosso Redentor a mesma sabedoria e eloquência, escolheu artificio material para nos declarar sua doutrina, pondo-a em comparações e semelhanças como umas consequências palpáveis e materiais, para nos levantar o entendimento à espiritualidade que em si continha” (Barros, 1981: 3-4, com adaptação ortográfica).
O jogo é, como a Literatura (nomeadamente nos romances, nas parábolas, nas fábulas), um espelho ficcional, vive de um fingimento (- Agora eu sou…, - Agora eu faço de…). Mas um fingimento assumido como realidade, através de um pacto tácito entre os jogadores, aliás muito semelhante ao pacto literário entre autor e leitor. O mundo do jogo é propedêutico da Literatura, fazendo depois parte dela, e estabelecendo com ela incontáveis laços:
1. O jogo é, invariavelmente, uma oportunidade para aprender. Desde logo, as relações lógico-temporais de antes e depois, causa e efeito, acção e reacção. Tal como a Literatura, o Jogo imita, e retira a sua força, como a mimesis aristotélica, do prazer de imitar. Também o jogo imita, dramatizando os diversos pontos de vista. Deste modo, ensina a ver o outro lado da questão ou a perspectiva dos outros intervenientes da questão, facilitando assim a prática do diálogo e a dialéctica da argumentação. Em síntese, permite passar do desconhecido para o conhecido ou reconhecido, do dado para o adquirido.
2. O jogo é uma manifestação de liberdade. Associada à aprendizagem existe sempre uma noção de coação e liberdade, insensivelmente ligadas: criam-se as regras para livremente as interpretar ou contornar. A Retórica, a rima ou os géneros nunca limitaram a criação literária, como reconheceram alguns românticos: muito pelo contrário, sempre tornaram mais evidente a provocação (cf. Baudelaire, ed. 1975-6: I, 1043). O Jogo tem regras, mas é o jogador que as interpreta, aproveita as suas lacunas, construindo as estratégias possíveis. É nesse desafio que está a liberdade do indivíduo.
3. O jogo é uma experiência optimista, até utópica. Através do jogo, a criança, e até o adulto, testa as suas forças e fraquezas num mundo criado à sua medida. Nele, o jogador pode escolher os papéis, inclusive aqueles que, no mundo real, lhe causam medo e insegurança por estarem acima das suas possibilidades reais. A estrutura épica é, como se compreende pelo papel da Odisseia na Paideia grega, extremamente didáctica. Quer na Odisseia, quer na história do Cid ou da Bela Adormecida, a lição parece repetir-se: o herói é o que não desiste do seu desejo, apesar das dificuldades que encontra, acabando quase sempre por ter o prémio da sua persistência. Também fazer de mestre, responsabiliza o discípulo. Recriando um mundo virtual, fictício, ele pode ser o herói, a entidade que detém o poder, e previsivelmente aquele a quem estão destinadas a vitória e a fama.
4. O jogo é uma aventura segura… Se excluirmos a roleta russa! Da mesma forma que Aristóteles definia a tragédia como uma catarse, libertação ou depuração, que advinha da simultânea vivência do terror e da piedade, também o prazer do jogo advém da simultânea vivência da liberdade, da transgressão e da segurança, da regra. O Jogo, como a Literatura, têm um lado lunar seguro, que faz com que os leitores de Dostoiewski não matem velhinhas, apesar de andarem a ler Crime e Castigo. O Jogo e a Literatura vivem ambos de tensões entre a ordem e o arbitrário, o secreto e o partilhável, o permitido e o proibido. Em ambos há a liberdade para experimentar limites, segurança para errar e perder (game over), podendo arriscar de novo e todas as vezes que forem necessárias. Bastará para isso, reiniciar.
I. Os r.p.g. como estratégia pedagógica fundamental
É neste contexto que os r.p.g., abreviatura de “role playing games”, têm vindo, nos últimos anos, a motivar algumas experiências pedagógicas interessantes, independentemente do nível de ensino e das matérias em causa. Os r.p.g. (“Jogos de Representação”ou “Jogos de Interpretação”, foram criados na década de 70, nos E.U.A. Neles, o jogador escolhe uma personagem, mais ou menos tipificada/ class, podendo atribuir-lhe um nome próprio e definir-lhe certas características físicas/ portraits e psicológicas/ attributes. Propõe-se com ela aceitar uma demanda (quest), resolvendo um determinado número e qualidade de missões (tasks), de que vai tomando conhecimento ao percorrer um espaço virtual. Todo este progresso e evolução é registado em grelhas próprias também designadas “planilhas”, através de um sistema específico de pontuação.
O jogo normalmente termina quando se atinge um objectivo global, de maior magnitude/dificuldade, para o qual a personagem foi adquirindo ou melhorando qualidades/skills, saberes, técnicas ou instrumentos/ feats ou features. A personagem pode ainda encontrar, sobretudo quando jogado em rede, parceiros adjuvantes. Trata-se pois de um jogo em que a personagem é redonda, evoluindo psicologicamente ou até moralmente, como na última versão de Knights of the Old Republic, da saga Star Wars.
Na verdade, se a terminologia se encontra difundida, desde o já remoto Dungeons and Dragons, pelos jogos de computador (de onde lhes vem a designação e terminologia em inglês), os r.p.g. correspondem a uma tipologia lúdica já há muito conhecida. Há vários jogos que (em maior ou menor grau) reproduzem histórias em aberto, em que o interveniente é encarregado de várias tarefas: brincar às escolinhas, às donas de casa, às profissões.
Ultimamente, tem-se apresentado o r.p.g. como uma novíssima estratégia da sala de aula: uma “redescoberta da arte ancestral de criar, ouvir e contar histórias”, “uma viagem ao reino da imaginação”, recriando num contexto virtual e hipotético situações e emoções que doutro modo não poderiam ser experimentadas tais como uma viagem ao interior do corpo humano, a um tempo ou a uma galáxia distantes… A escola, qualquer escola, pode usar esta estratégia, mesmo com uma enorme escassez de recursos (não é preciso palco, cenário, adereços, guarda. roupa ou mesmo guião…). O professor faz de Mestre e os alunos de jogadores.
No r.p.g., o Mestre é o criador da aventura: é ele quem cria ou escolhe o universo da acção (sistema de r.), o clima emocional, o estilo, as personagens, considerando as habilidades e recursos que deverão possuir. O Mestre é «omnisciente e omnipresente», ainda no sentido de Genette, devendo, no entanto, pautar-se por critérios de flexibilidade (saber ouvir e aceitar diferentes opiniões , incentivar a liberdade de expressão , deixar a acção fluir, dar espaço ao erro…), e de improvisação , dando pistas (clues) no decurso da aventura que ajudem a ultrapassar dificuldades ou a gerar suspense, de modo a manter a aula viva.
De entre os jogadores, uns (os player characters ou P.C.) vivenciam os conteúdos didácticos a aprender através de uma história /aventura na qual terão que resolver, individualmente ou em conjunto, tarefas, problemas, charadas, enigmas, puzzles, quests, discutindo e decidindo quais as melhores escolhas e soluções. Outros (os non player characters, ou N.P.C.) são da exclusiva responsabilidade do Mestre: podem ou não estar presentes na aventura, dependendo do seu grau de complexidade. Os N.P.C podem ser de extrema utilidade, funcionando ora como adjuvantes ora como oponentes em função das necessidades da aventura a ser vivida. Serão as personagens inventadas pelo mestre ou pessoas que ele convida para participar na aula, ou fora dela (os funcionários da biblioteca ou outros destinadores da comunidade).
Mas talvez esta estratégia não seja tão novíssima assim. Embora, obviamente, com outros nomes, também na escola tradicional, os r.p.g. têm os seus antecedentes. Na Academia de Platão, exercitava-se a ironia socrática através de jogos interrogativos. Nas escolas de Retórica, eram frequentes as chiria ou os jogos obligationes, debates em que cada orador defendia uma posição, uma maneira de ser ou estar, independentemente da sua. Nas escolas dos jesuítas, até ao século XVIII, eram frequentes as peças de teatro em latim, que permitiam exercitar as várias competências dos alunos, desde a teologia, a dramaturgia, a retórica ou a lógica até aos conhecimentos na língua latina. Pequenas peças de teatro (role-play) eram usadas, sobretudo em sistemas de educação anglo-saxónicos, “as a fun activity, and one which has psychological and tactical benefits – Friday afternoon’s reward for a good week work” (Skelton et alii, 1999: 263).
Nos últimos anos, a prática teatral têm entrado até na pedagogia universitária. A Medical School da Universidade de Birmingham inclui, em algumas das suas aulas, em quatro dos cinco anos do curso, simulações de consultas, para as quais chega a contratar actores profissionais (Skelton et alii, 1999). O futuro médico é então avaliado em função das competências demonstradas (dos conhecimentos científicos à sua diplomacia ou arte de inter-agir com situações ou doentes problemáticos). Várias faculdades de Direito, entre as quais a Faculdade de Direito da Universidade do Porto, reproduziram, nas suas instalações, salas de tribunal, para simular, em aulas práticas, os vários exercícios forenses.
As vantagens parecem ser muitas. Desde a ausência de risco do erro, até à segurança que com a continuação do exercício advém.
Os simulacros evidenciam ainda, tornam pública, a progressão dos alunos, sobretudo quando sujeitos a provas semelhantes em fases distintas do seu estudo, ou quando lhes é permitido repetir a missão em novas circunstâncias.
A competição, numa situação que, em princípio, se encontra classificada numa fronteira ambígua entre a aula e o recreio, terá também alguns pontos positivos, sobretudo ao nível da socialização: o que fez o trabalho de casa torna-se mais que o “marrão”; o que não fez o trabalho de casa, ou não deseja participar no jogo, sentir-se-á mais tentado a sociabilizar-se através da competência e não forçosamente através da exibição. Este aspecto competitivo pode e deve ser complementado com missões colectivas. De uma forma individual ou colectiva, a inter-acção entre os alunos-actores reforça a importância do trabalho científico em equipa, em que cada um deve ser responsável sobre a sua parte, bem definida, para que a equipa ganhe força com a sua presença.
Como bem demonstra o teatro neo-latino ou os jogos de r.p.g., as situações de simulacro exigem, como as situações reais, competências múltiplas, multidisciplinares e interdisciplinares. Dão-se saudavelmente mal com os espartilhos de especialistas míopes que tendem a opor Literatura e Linguística, Literatura e Ciências, História e Teoria, Teoria e Prática. e ajudam a compreender a ligação entre ficção, realidade, estudo e vida profissional. Ou, como sói dizer-se, entre a Escola e a Vida.
Na maior parte dos casos em que apresentámos o jogo a uma turma, a expectativa e receptividade iniciais ajudaram a criar um clima favorável ao jogo. Por conhecerem a terminologia dos jogos virtuais, por algumas missões poderem ser feitas com o uso do processador de texto ou pesquisa na Internet, a associação entre actividade de trabalho e actividade lúdica funcionou como o estranhamento literário. Antes de tudo o mais, prendeu a atenção. Posteriormente realçou, até por ficarem patentes as lacunas, como a pesquisa na Internet pode ser muito mais labiríntica e ineficaz que a executada num livro impresso. Não basta só saber onde está a informação. Cada vez é mais importante saber como encontrá-la e como distinguir a opinião fidedigna da opinião infundada.
De pouco serve fechar os olhos aos meios de informação existente e seria tolice, descurar o que de bom os actuais meios tecnológicos de comunicação nos oferecem. O que têm de redutor deve ser compensado pela criatividade com que se reutilizam. Neste aspecto, os jogos r.p.g. são uma tipologia e devem ser considerados somente enquanto tal, permitindo sair do mundo virtual para o mundo real, contrariando a formatação de brinquedos que impedem a criatividade e transformando personagens do ecrã em jogadores-actores. Diante da televisão, perante bonecos que já falam o que é preciso falar e disparam o que é preciso disparar, a criança reduz-se nos nossos dias, ainda mais do que em 1957, a um proprietário, a um utilizador (cf. Barthes, 1957, ed. 1978: 52-3), quando não a um coleccionador de Barbies e Action Men. Sujeita à moda dos brinquedos, dos jogos e ao seu consumo, é formatado pelo adulto a uma falsa criatividade: “Tenha X, e seja original como todos os demais”. Contrariando esta tendência, os jogos r.p.g. são uma tipologia com múltiplos desenvolvimentos possíveis, devendo alguns deles, na quantidade que for compatível com a matéria, estar abertos a sugestões e competências específicas de cada personagem. Por exemplo, pode-se pedir a um aluno que toque um instrumento que tente interpretar um poema, musicando-o, dando-lhe um ritmo. Ou adaptar o jogo do Monopólio a uma cidade específica, obrigando a levantamentos sociológicos e ao conhecimento de rituais de cidadania (Ferrean, Mariet, Porcher, 1979: 120 ss.).
Também outras matérias e meios de comunicação menos ortodoxos serão bem-vindos à sala de aula. O livro não deve temer A Internet demorará ainda a acabar com o livro, tal como o livro não eliminou radicalmente o manuscrito. Mas devemos aprender a reconhecer as vantagens e desvantagens de cada suporte. O professor pode e deve utilizar todos os meios tecnológicos que tem à sua disposição: até porque todo o inimigo se deve olhar nos olhos.
Terá a seu favor uma força insuperável: a da ficção. Por ela ia a escrava Xerazade adiando a sua morte, prendendo Harum-al-Rashid com as palavras. Poucas turmas ou audiências resistem a uma boa história: é a força do mito que a todos nos contamina e a todos subjuga.
Os r.p.g. utilizam a tipologia atemporal dos mitos heróicos. Se a compararmos com as 31 funções do conto delineadas por Vladimir Propp (Propp, ed. 1983: 65-110), repararemos que são muitas as constantes, de que salientamos:
Função 1. Um dos elementos da família afasta-se de casa.
Função 2. Ao herói impõe-se uma interdição.
Função 4. O agressor tenta obter informações.
Função 9. A notícia da malfeitoria ou da falta é divulgada, dirige-se ao herói um pedido ou uma ordem; este é enviado em expedição ou deixa-se que parta de sua livre vontade.
Função 12. O herói passa por uma prova, um questionário, um ataque, etc., que o preparam para o recebimento de um objecto ou de um auxiliar mágico.
Função 15. O herói é transportado, conduzido ou levado perto do local onde se encontra o objectivo da sua demanda.
Função 16. O herói e o seu agressor defrontam-se em combate.
Função 17. O herói recebe uma marca.
Função 20. O herói volta.
Função 23. O herói chega incógnito a sua casa ou a outro país.
Função 25. Propõe-se ao herói uma tarefa difícil.
Função 26. A tarefa é cumprida.
Função 29. O herói recebe uma nova aparência.
Função 31. O herói casa e sobe ao trono.
Continuando a proposta de Propp, Greimas acentuaria a existência de três vectores – o desejo, o saber e o poder - que orientariam uma estrutura dicotómica: a demanda do objecto pelo sujeito, a ordem do destinador e o benificiado/destinatário, a ajuda ou a oposição que é dada ao herói na sua demanda.
O desejo, o saber e o poder, eis os vectores de toda a aprendizagem. Todo o r.p.g. narra metaforicamente a história da aprendizagem. Para aprender, o aluno é, em certa medida, um cavaleiro, ou pelo menos, é-lhe proposto que se sinta como tal: e como tal terá de desejar, de obedecer a ordens, de as saber distinguir e interpretar, podendo contar com obstáculos, da mesma forma que contará com ajudas. E tudo correrá bem. Da demanda atingida sairá sempre um novo ser, autónomo e poderoso.
É a interiorização que o aluno faz do esquema actancial que nos interessa como psicologia do estudo. O aluno deve entender que estudar não é somente receber mas ainda conquistar, não é tanto aceitar, como interpretar. Deve por isso aceitar o esforço, o trabalho, as dificuldades da pesquisa ou da demanda. E procurar sempre adjuvantes.
“O crescimento de cada criança é a história da Bela Adormecida em que o jogo desempenha o papel do Príncipe. Existe um corpo virtual, mas a sua existência em acto depende do seu uso, e o seu uso está presente no jogo” (Lee apud Château, 1961: 9).
Há, não o negamos, um vector mais importante que os restantes: o do desejo. É ele o mais difícil de criar numa escola que a todos submete com as mesmas exigências, procurando que todos tenham uma aprendizagem ao mesmo ritmo. É talvez aqui que a escola mais fracassa também, já que o saber e o poder se podem facilmente confundir com os rituais do saber e do poder. O aluno pode até acabar por fingir saber, não sabendo. Ou fingir poder, não podendo. Mas muito dificilmente se pode ritualizar o desejo, profundamente transgressor, sentimento avesso aos lugares-comuns e estereótipos. Ao professor sempre se deve colocar, com ou sem r.p.g., uma questão primeira: como criar/alimentar o desejo?
É que o desejo não pode ser obrigatório. Não é obrigando a saber que nos criam o desejo de saber. Por isso nos parece importante o jogo na aprendizagem. O jogo, com tudo o que tem de voluntário e gratuito.
Para o ensino resultar, é preciso também que seja voluntário e gratuito, muito para além da questão das propinas. Que o professor não transmita ao aluno o tédio de ser professor, pois nunca ninguém acreditará no prazer de aprender da boca de quem não tem prazer de ensinar. E que nunca ele sinta a tentação de obrigar alguém a brincar.
É certo que o espaço da aula é mais vasto que o do jogo, e nem toda a matéria pode e deve ser ensinada a brincar. O jogo é um dos instrumentos possíveis, mas é difícil, improvável e talvez até ineficaz, se for o único, pelo menos no actual sistema educativo, propedêutico de tantas e tão dispersas e desiguais competências. O mestre do jogo deve previamente definir as suas regras, delimitar o seu tempo e contexto, controlar a sua aplicação, doseando o arbitrário. Deve definir objectivos e pré-requisitos dos jogadores (Ferrean, Mariet, Porcher, 1979: 61). Mas deve também resistir à tentação normativa, à penalização definitiva. Em princípio, ninguém deve ser prejudicado por decidir jogar, como também ninguém deve ser penalizado por não jogar ou por ter jogado. O jogo é gratuito, como o amor.
Porque é de amor que sempre se trata. Ainda quando o cavaleiro deseja salvar a sua amada. Mas não é obrigando a ler que lhes criamos o amor da leitura.
“Acho a frase ‘leitura obrigatória’ um contra-senso. A leitura não deve ser obrigatória. Devemos falar de prazer obrigatório? Porquê? O prazer não é obrigatório, o prazer é algo buscado. (…) A leitura deve ser uma das formas de felicidade, de modo que eu aconselharia a esses possíveis leitores do meu testamento – que não penso escrever – eu lhes aconselharia que lessem muito, que não se deixassem assustar pela reputação dos autores, que continuassem buscando uma felicidade pessoal, um gozo pessoal. É o único modo de ler.” (Borges, ed. 2002: 390)
Mais útil será talvez lermos nós, lendo-lhes para que queiram ler como nós.
Talvez sintam mais falta da proibição de ler:
- Isto não é para a tua idade, minha menina.
– Tu já dormes, Henriquinho? Não descanso enquanto não vejo tudo apagado em casa.
Vozes de antigos Pais Tiranos e Tias Doroteias, que tanto medo tinham que as luzes dos livros nos incendiassem a cama, a cabeça e a vida.
E não tinham eles razão?
II. A prática do jogo de r.p.g. na sala de aula
Qualquer área do conhecimento serve para uma boa aventura pedagógica. Ao criar a aventura, o Mestre deverá começar por seleccionar o conteúdo didáctico que pretende que os seus alunos vivam através do jogo, fazendo uma listagem de vários temas em estreita relação uns com os outros. O conteúdo será tanto mais rico quanto mais aplicações se puderem relacionar entre si, e quanto mais alternativas para construção de situações possibilitar. Há, no entanto, que evitar aventuras muito complexas devido a um excesso de temas, especialmente nas primeiras vezes que se joga. O Mestre deve igualmente escolher o conteúdo didáctico colocando-se no papel do aluno, fazendo, se necessário, um retorno ao tempo da infância, adolescência ou juventude, de modo a ir previsivelmente ao encontro das motivações e interesses dos alunos. Se, ao escolher uma aventura, o professor se sentir perdido no meio de uma multiplicidade de conteúdos, um caminho possível é o da resposta às perguntas (Marcatto, 1996: 67):
Para que serve teoricamente esta área do saber?
Em que área ou áreas da actividade técnica é utilizado?
Em que é que o conhecimento desse conteúdo pode beneficiar o aluno?
A aventura escolhida deve ser adequada à turma, ao nível etário e, sempre que possível, mostrar a sua aplicabilidade no dia a dia. O aluno trabalhará melhor se vir utilidade naquilo que aprende: “principio da economia”.
A aventura pedagógica, como qualquer outra aventura, deve passar-se num determinado tempo e espaço. Procurando torná-la o mais verosímil possível, o Mestre deve previamente pesquisar sobre épocas, hábitos, locais, clima, vegetação… Por outro lado, pode também envolver os alunos nesta fase como motivação.
Em função das respostas dos alunos, o Mestre deverá incumbi-los de tarefas em que se documentem, num determinado período de tempo, do máximo de informação possível sobre a época ou local onde querem “viver”. É importante salientar que esta aventura pode também ser realizada em qualquer tipo de cenário real, ficção ou fantasia. Como em quase todos os jogos, o r.p.g. tem uma raiz competitiva, individual e/ou colectiva. Caberá ao mestre dosear a sua importância e limar os seus excessos, privilegiando a dinâmica de espírito de grupo na superação das dificuldades encontradas. Imagine-se um programa televisivo em sala de aula (modelo Taco a taco ou Um contra Todos). Várias equipas poderão competir, de modo a apurar-se qual a melhor no domínio da língua portuguesa ou qualquer outra disciplina. Neste caso em concreto, os alunos competem e cooperam simultaneamente, de modo a ultrapassarem os obstáculos.
A história da aventura deve ter, na medida do possível, uma acção rápida, até como intriga de acontecimentos encadeados, que tanto podem estar motivados pelo de mistério de um castelo assombrado, cheio de seres fantásticos, ou uma nave com extraterrestres, como pela curiosidade científica perante uma experiência do quotidiano: o importante é considerar o que pode despertar a curiosidade e o envolvimento gradual do aluno. Interessa mais a forma como se vive do que o que se vive.
O momento em que o Mestre apresenta a história à turma é de uma importância crucial. Desde o tom de voz, gestos ou pose, ao seu próprio envolvimento enquanto personagem, tudo conta para o sucesso da aventura. O Mestre é alguém distinto do professor e também ele tem o seu papel a desempenhar. O seu envolvimento e performance vai influenciar de forma decisiva, o dos alunos, quer no sentido positivo, quer no sentido negativo. Se o professor achar que não vai conseguir desempenhar bem o seu papel e abstrair-se daquilo que é enquanto pessoa ou professor, se se sentir inseguro ou for uma pessoa pouco flexível, o melhor é nem tentar este tipo de estratégia. Uma das grandes vantagens do r.p.g. é exactamente o distanciamento psicológico do professor e dos alunos em relação a si próprios. Se alguém falhar, esse alguém foi a personagem, não a pessoa em si. O erro não é penalizador, antes é parte integrante de todo o processo de aprendizagem. Todos se divertem e todos aprendem. Não há risco.
Os alunos (P.C.) são o centro da acção e os principais veículos condutores da trama, reconstruindo-a em função dos seus interesses, conhecimentos, experiências e motivações. De modo a melhor desempenharem os seus papéis, podem recorrer a todo e qualquer tipo de fontes. Participam na aventura através das várias missões das suas personagens. As personagens podem ser eles próprios ou ser inventadas.
A utilidade ou utilização do r.p.g. pode ser mais ou menos explícita, conforme o docente desejar sublinhar ou dissimular a sua feição lúdica e gratuita. Também não tem nível etário preferencial. Como o Tintin, agrada entre os 8 e os 80. O r.p.g. pode ser aplicado em qualquer domínio disciplinar ou faixa etária. Desde o primeiro ciclo, passando pelos 2.º e 3.º ciclos e secundário em diferentes disciplinas, até ao ensino superior.
Demasiado diferente? Talvez nem por isso. E se assim for, que se considere também que a mudança é por vezes a única forma de mantermos o que julgamos imutável. Vivemos num mundo em mudança, que não se muda já como soía, mas que ainda assim toma sempre novas características, e novas qualidades. No ensino básico e secundário, as reformas curriculares e programáticas têm-se sucedido umas às outras, incentivadas a nível interno ou promovidas por pressões externas. É função / obrigação prioritária dos educadores (enquanto seus agentes privilegiados) aceitar os desafios com que se deparam e tentar estabelecer, na medida do possível, uma ponte entre a escola e a vida (escola real e escola paralela). A inserção das novas tecnologias da informação e da comunicação nos diferentes níveis de ensino tem vindo exactamente a fazer-se à luz deste princípio, visando uma maior ligação à sociedade, uma sociedade mediática, atraída pelo espectáculo, na qual os jogos, desde os desportos físicos aos jogos de computador, têm, cada vez mais, um papel importantíssimo na vida de milhares de crianças, jovens e adultos.
Em Inglaterra, nomeadamente no Departamento Educacional Britânico, há mesmo quem defenda que os jogos de computador, especialmente os de aventura, devem ser inseridos na sala de aula como prática educacional de carácter lúdico-didáctico, uma vez que ao criarem contextos virtuais, as crianças e os adolescentes são obrigados a construir raciocínios lógicos e de valor que vão contribuir para o desenvolvimento de competências fundamentais em variados domínios.
Entre nós, ao nível do ensino básico (1º. 2º e 3º ciclos) e secundário, quase todas as escolas ou agrupamentos possuem salas de informática, centros de recursos ou sala de alunos equipadas com programas educacionais e jogos didácticos. Há por parte do Ministério da Educação uma forte política de incentivo ao recurso das T.I.C. nas diferentes disciplinas. É também cada vez mais frequente a inserção de diferentes tipos de jogos ou actividades de carácter lúdico, nos manuais escolares de diferentes disciplinas, tendo em vista a sua aplicabilidade em sala de aula.
No primeiro ciclo, o r.p.g. pode ser um precioso auxiliar na aprendizagem da leitura e escrita, no processo de alfabetização do individuo (entendendo-se como tal o momento em que, através de um processo mental, se começa a interiorizar e compreender a complexidade da leitura e da escrita e a sua aplicação ao universo circundante). No Brasil, talvez por influência dos E.U.A., são já numerosas as aplicações neste nível de ensino. Eliete Grabner, da EMEF Péricles Eugénio da Silva Ramos –Ipiranga-S. Paulo e Rosangela Basilli Mendes Valente da Escola Municipal Dom Pedro, também de S.Paulo, apresentaram o R. P.G. como estratégia de sucesso, valorizando os resultados na “fase alfabética, com domínio da ortografia”, formando alunos mais interessados em ler e pesquisar, elevando o nível de participação na aula e aumentando a sua auto-estima. Um problema como o da higiene pessoal, especialmente visível em algumas comunidades mais carenciadas parece ter inclusive melhorado, talvez porque se relaciona também com o conhecimento científico e a própria auto-estima (apud Pereira, RPG torna a Aula uma Aventura, no Primeiro Simpósio Brasileiro de R.P.G. e Educação).
Considerando as várias vertentes do ensino secundário, não podemos esquecer as possibilidades de aplicação do r.p.g. nas áreas de prosseguimento de estudos ou tecnológica, mas também no ensino profissional, no sistema de Aprendizagem em Alternância, quer em cursos promovidos exclusivamente pelo Ministério da Educação, ou pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional, em parceria com o Ministério da Educação. No âmbito do projecto europeu Petra II - que envolveu cinco países (Portugal, Alemanha, Dinamarca, Grécia e Irlanda) entre 1 de Maio de 92 e 31 de Abril de 1995 - , o r.p.g. foi considerado, em termos estratégicos para o ensino profissional ou para o ensino preferencialmente orientado para a vida activa, como “um espaço/tempo pedagógico” que desbloqueia, inclusive, questões do foro pessoal e permite “trabalhar várias temáticas surgidas de situações problemáticas com as quais os alunos por vezes se deparam nos locais em que estagiam”. O mesmo texto defende ainda que esta estratégia permite a “automonitorização no caso do uso de filmagens cujo visionamento servirá de suporte à reflexão pessoal e grupal” (O Professor Aprendiz, 1995: 82-3). Neste projecto, o r.p.g. situa-se entre as várias estratégias preferencialmente direccionadas para o desenvolvimento de competências pessoais fazendo-se a distinção entre
a) role playing (uso de experiências actuais simuladas e de projectos orientados para a resolução de problemas)
b) role-taking (desempenho de papéis reais, tendo em conta o interesse e significado pessoal desses papéis para os participantes e o seu nível de desenvolvimento mental)
c) simulação de situações da vida real e
d) aprendizagem pela aventura.
A todas o r.p.g. abrange, a todos estes níveis poderia ser utilizado. E, no entanto, também a divulgação destas estratégias, quer a nível de formação de formadores (auto-escopia), quer junto de centros de formação e escolas profissionais, não teve, pelo menos que se tenha conhecimento e até à presente data, muita aceitação e continuidade por parte dos formadores ou monitores. O que existe, existe muitas vezes no papel: e aí não funciona. Acresce-se a isto, o facto de, muitas vezes, os professores, as direcções das escolas profissionais, centros de formação e até empresas não estarem teoricamente receptivas à sua incrementação, sobretudo por temerem a indisciplina de métodos menos tradicionais, custos adicionais ou simplesmente não conseguirem dar o programa.
1. A prática de r.p.g. em sala de aula no Ensino Básico e Secundário
No ensino regular, numa tentativa de implementação, foram feitos estudos experimentais de r.p.g. (no sentido lato da palavra, desenvolvimento de competências pessoais, aprendizagem pela aventura e simulações da vida real ). Acompanhámos pessoalmente a sua aplicabilidade nas disciplinas:
a) de Matemática, nas Escolas EB 2/3 de Valadares e Avintes (anos lectivos 2001-2002 e 2002-03) e na Escola Secundária da Senhora da Hora (ano lectivo 20004-2005);
b) de Ciências da Natureza, nas Escolas EB 2 Cerco do Porto e Augusto Gil, no Porto (anos lectivos 2003-2004 e 2004-2005);
c) de Inglês, nas Escolas EB 2/3 Manoel de Oliveira - Porto ( 2002-2003 e 2003-2004) e EB 2/3 e Secundária de Arcozelo - Ponte de Lima (2004-2005);
d) de Português nas Escolas EB 2/3 e Secundária, referidas em c).
Relativamente ao segundo, terceiro ciclos e ensino secundário, são infindáveis as hipóteses. Apresentam-se em seguida algumas aventuras, passíveis de ser implementadas em sala de aula, com matérias que fazem parte dos actuais conteúdos programáticos.
Matemática
A aventura passa-se nas Caraíbas, no tempo dos piratas e corsários. Os alunos são divididos em vários grupos de piratas (corsários negros, piratas do Barba Ruiva, tropas do governador), dispondo cada um de um barco. O mar das Caraíbas está representado num eixo cartesiano X e Y, por exemplo, 10 x 10. Reproduzindo o pictograma da batalha naval, cada jogador terá um barco pirata que ocupa 3 pontos do eixo cartesiano. Dará os tiros em coordenadas X e Y para tentar afundar os outros. O Mestre poderá introduzir um barco seu (barco do tesouro mercante) para permitir que uma equipa já quase derrotada possa se recuperar um barco e ganhar o jogo.
Ciências
Um avião cai no deserto. Há alguns sobreviventes (jogadores). Perdidos, cansados, perdidos e desesperados, avistam um oásis. Num impulso, correm em direcção ao lago para matar a sede. Alguém alerta: “- Será que a água está contaminada?” Os alunos defrontar-se-ão assim com alguns problemas: como testar a água de modo a garantir a sua potabilidade? Como usá-la na manutenção da saúde? De que forma deve ser feito o seu racionamento por um período longo e indeterminado? Como recursos, os alunos terão alguns materiais de um microcosmo, tais como os destroços do avião, uma caixa de fósforos, uma panela, uma bacia e alguma madeira. Aborda-se deste modo a água num desenvolvimento sustentável.
Língua Estrangeira
Um professor propõe-se ir a Nova Iorque, a Paris ou a Berlim, com a sua turma, de modo a proporcionar-lhes um contacto mais directo com a realidade linguística do país. Os aventureiros ficam entusiasmados com a ideia. No entanto, só quinze podem ir, por razões de vária ordem (económicas, familiares, número de lugares vagos, etc.). No dia marcado, embarcam no avião, entusiasmadíssimos com a viagem. Devido a uma enorme turbulência, o piloto recebe instruções da torre de controlo para aterrar o mais rapidamente possível. O próximo aeroporto é numa pequena cidade do interior. Na aterragem, o Mestre fica ferido. Perante esta situação de emergência, divide os turistas em grupos de cinco, pedindo-lhes que busquem auxílio e informação sobre o local: a que distância estão do destino, quais os meios de transporte para lá chegar, de que tipo de assistência médica podem usufruir, que tipos de alojamento existem, qual as especificidades gastronómicas e de que forma poderão estabelecer contacto com a embaixada de Portugal. Os restantes alunos da turma serão os habitantes daquela povoação cuja única língua é, obviamente, a língua estrangeira estudada. Os alunos terão que fazer a simulação destas situações em sala de aula, nomeadamente dirigindo-se aos “habitantes”, utilizando um vocabulário adequado ao diálogo com o seu interlocutor ou interlocutores, formulando as perguntas que levem ao cumprimento da missão. Cada missão bem sucedida será quantificada em pontos, registados numa planilha feita para a aventura.
Língua e literatura portuguesa
O professor (Mestre) dirigir-se-ia à turma:
- Hoje, trago-vos uma excelente notícia! A vossa turma foi escolhida pela R.T.P. para fazer um episódio da série “As aventuras do menino Tonecas”. Toda a turma estará em estúdio (actuando no papel de turma), mas vai ser necessário escolher os papéis principais: o do Tonecas e o do Professor. O professor (Mestre) entrega depois a cada um dos alunos, o texto de José de Oliveira Cosme que a seguir se transcreve:
Professor:- Ora vamos lá a ver: «Joaquim escuta a lição». A lição o que é?
Tonecas:- A lição? A lição hoje é de Gramática.
Professor:- Ó menino!. Eu sei que é de Gramática…O que eu pergunto, é na oração: «Joaquim escuta a lição», a lição o que é? Vamos! Escuta.
Tonecas:- Ah! Já sei!. « Quem escuta de si ouve…»
Professor:- Não, menino! Não é nada disso... Valha-me Deus! Quem escuta, escuta alguma coisa…. Logo , a lição é o complemento directo, percebeu?
Tonecas:- Ah! Agora percebi.
Professor:- Ora até que enfim! Agora, preste muita atenção: todos os verbos transitivos pedem complemento directo, isto é, exprimem acção que exige objecto, como, por exemplo, estimar alguém, comprar alguma coisa, etc. Compreendeu?
Tonecas:- Perfeitamente , senhor professor.
Professor:- Verbos intransitivos são aqueles que exprimem acção que não pede objecto, como por exemplo morrer, suspirar, chover.
Tonecas:- Ó senhor professor! Eu peço desculpa, mas chover não é intransitivo…
Professor: Ora essa, Menino! Então porquê?
Tonecas:- Porque chover pede objecto.
Professor:- Essa agora!. Então que objecto é que pede?
Tonecas:- Um guarda-chuva ou uma capa de borracha….
Alternadamente, os alunos vão assumindo os papéis de aluno, Tonecas, e professor. A partir do momento em que o aluno (jogador) se assume como professor fica sujeito a várias perguntas colocadas pelos alunos (os colegas nos quais está agora incluído o professor) que incidem sobre alguns conteúdos leccionados até à data e que diferem em grau de dificuldade (fácil ou difícil), cabendo ao aluno-jogador a escolha do grau em que quer ser interpelado, ou interpelar. A progressão será tanto mais rápida quanto maior for o grau de dificuldade. O aluno-jogador, enquanto “professor”, fica igualmente sujeito às perguntas formuladas pelo aluno(a) que estiver nesse momento a fazer de menino Tonecas, cuja missão é a de o tentar confundir e baralhar.
A língua portuguesa poderá (com todas as vantagens) ser analisada também através dos textos e períodos literários. Poder-se-ão construir missões de competência a partir do enredo de uma obra literária, a biografia de um autor ou um episódio histórico. Tomemos como exemplo a literatura da época clássica. Poderia partir-se de um episódio dos Ditos portugueses dignos de memória, livro anónimo sobre a corte de D. João III. O rei recebeu um cortesão que lhe vinha recomendado pelo Conde de Vimioso como muito galante e erudito. Perguntou-lhe o Rei se sabia de cor as trovas de Jorge Manrique que começavam “Requerde el alma dormida”. Confessa o cortesão que não, ao que D. João III terá dito: - Pois não sabeis nada, e eu vos aceito porque mo pede o conde” (Ditos Portugueses, s.d.: 45).
Apresenta-se a situação: um cortesão é acolhido na corte. Tem de mostrar ao rei que é galante e sabe de Literatura, e até fazer acrósticos e anagramas, poemas com uma metáfora ou com dez figuras de estilo. Uns manuscritos com profecias revelam como será diferente a Literatura no futuro. Fala-se das trovas de Manrique, António Ferreira, Gil Vicente e Sá de Miranda. Forma-se uma pequena academia de corte. Os académicos, divididos em dois grupos, perguntam-se se a nobreza dos que têm o dom da poesia é mais verdadeira que a de sangue. Lêem-se passagens de Horácio: como entender as propostas da Antiguidade no século XVI? Discute-se e argumenta-se sobre as várias funções da Literatura e a sua importância na sociedade clássica e na actual.
Desta experiência em sala de aula, se pôde concluir que o r.p.g. funcionou como uma mais valia para os alunos em geral, tornando-os actores do processo de aprendizagem. Os docentes envolvidos, estando obrigados ao confronto entre os resultados iniciais e finais e entre as turmas com r.p.g. e sem r.p.g., realçaram os seguintes aspectos:
1. maior autonomia de pesquisa e aprendizagem por parte do aluno: o aluno cria mais facilmente o hábito de executar tarefas só com o apoio basilar e pontual do professor/mestre. Apesar deste estar presente ou disponível, á ao aluno que cabe o esforço principal e depois o orgulho na sua vitória.
2. respeito pelo ritmo individual de aprendizagem, permitindo uma pedagogia diferenciada em sala de aula que, longe de afastar o professor do cumprimento dos programas, facilita a sua exequibilidade. Nas várias experiências, todos os programas oficiais foram cumpridos, tendo o aluno a consciência de que a matéria era dada, ainda quando envolvia pesquisa fora do tempo lectivo.
3. maior disciplina, na sala e aula e fora dela. Ao contrário do que seria esperado, a aplicação do r.p.g. gerou uma maior união entre os alunos e entre os alunos e o professor. O controlo de comportamentos anti-sociais ficava abrangido pelos comportamentos desfavoráveis ao jogo, sendo estes controlados pelos próprios alunos. A indisciplina, gerada pela indiferença ou pela provocação, deixava assim mais vezes de fazer sentido para os jogadores.
Por parte dos alunos, numa abordagem inicial, constatou-se sempre, uma certa estranheza, apreensão mesmo, devido ao desconhecimento da estratégia. No entanto, rapidamente ultrapassaram o receio, transformando-o numa participação activa, num envolvimento de grupo que os fez sentir e ser uma peça única neste puzzle educativo (aventura pedagógica) que depois de experimentado, os impeliu a excederem-se a si próprios, e os conduziu, em grande parte, a excelentes (ou pelo menos, melhores) resultados. “Diz-me e eu esquecerei, ensina-me e eu lembrar-me-ei, envolve-me e eu aprenderei”, dizia um provérbio chinês, com sabedoria e sabor.
2. O r.p.g. no ensino universitário
Se é mais ou menos pacífica a utilização da pedagogia lúdica nos vários ciclos pré-universitários, é obviamente, no nível universitário, que ela é mais contestada. Pressupõe-se que, no nível em que se encontram os alunos universitários - já com uma idade mínima de 17-18 anos, e possuidores, teoricamente, de competências básicas e médias - pouco sentido terá disfarçar o esforço e a disciplina do saber. À medida que o aluno cresce deve crescer também em autoridade e autonomia, e isso implica criar nele a ideia de que se torna um mestre, com mais responsabilidades, e isto independentemente dos seus direitos. Poderíamos afirmar que o aluno universitário entra, e sai, da Universidade, cada vez mais imaturo, intelectualmente, ainda que quase só nesse domínio. Quase sem provas orais e trabalhos de pesquisa, teme falar e escrever. Resta a perigosa infantilização do ensino universitário. O que seria, no nosso caso, um paradoxo, já que valorizamos a função pedagógica do trabalho e a infantilização pedagógica. É de toda a conveniência, e em todos os níveis de ensino e não só no universitário, temer sempre a infantilização, mesmo das crianças. Que dizemos? Sobretudo das crianças.
A aplicação dos esquemas de r.p.g., nas disciplinas de Introdução aos Estudos Literários I e II, dos cursos de Línguas e Literaturas Modernas, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (anos lectivos de 2003-2004, 2004-2005), adoptou uma posição mais contida quanto à ficção de base, não tendo sido construída outra para além do viajante/explorador que, ao longo do seu percurso por uma biblioteca, ia tendo certos enigmas para resolver. Não se baixaram os níveis de exigência. Muito pelo contrário, já que associada ao regime de avaliação contínua, procurava precisamente comprometer o aluno com várias provas de aprendizagem, e também com um estudo continuado da matéria, não o dispensando da apresentação a exame final.
Para as aventuras “Viagem à Terra do Sempre” ou “Livros cerrados não fazem letrados”, cada aluno se investia de um nome secreto: o de uma personagem literária. As várias missões, cerca de uma por semana (para vinte e duas, vinte e três semanas dos semestres), estavam escalonadas em três níveis, correspondentes a três níveis de dificuldade (fácil/5 pontos, média/10 pontos; elevada/20 pontos). Era da responsabilidade de cada aluno escolher o nível que mais se adaptasse ao seu gosto ou competências, devendo optar, por isso, entre muitas de grau fácil ou um número menor de missões de risco. Por exemplo, a ida a uma sessão de leituras de Ricardo II no Teatro Nacional de S. João valia 5 pontos, enquanto a apresentação de um resumo da peça 10 pontos, havendo necessidade de ponderar a utilidade da sessão de leituras para a obtenção dos vinte pontos. A pontuação máxima seria sempre de 200 pontos (Game over, por pontuação), equivalente a 20 valores, sempre fazendo média com a nota do exame final, durante a qual podiam ser avaliados por toda a matéria leccionada no semestre (…Game over, por se ter esgotado o tempo!).
Fazendo jus ao princípio de qualquer jogo, a qualquer momento se podia desistir dele, podendo o aluno submeter-se unicamente à avaliação por exame final. Se houvesse problemas na composição escrita (erros de ortografia, hélas!, sintaxe ou argumentação), a pontuação podia ser diminuída para o nível imediatamente inferior, invalidada, podendo por vezes ser reformulada pelo aluno/herói. O mesmo sucedia se, depois de um primeiro aviso, as missões fossem elaboradas com o plágio de textos alheios da bibliografia, ou da Internet, sem a utilização das regras da citação (aspas e identificação das fontes). Esse foi, aliás, um dos pontos mais difíceis do controle da qualidade das missões. Com efeito, os alunos alegam muitas vezes que, por hábito e regra, estão habituados a fazer cópias de documentos virtuais, não tendo sensibilidade jurídica para a infracção aos direitos de autor. Também não concebem o absurdo pedagógico-científico da manta de retalhos de textos alheios. Na prática, sentiam-se muitas vezes premiados porque copiavam, ou prejudicados na nota quando não o faziam, desculpando-se ainda, em alguns casos, com o desconhecimento da ilegalidade do facto. O professor/mestre procurou contornar esta dificuldade, pedindo missões que exigissem um trabalho pessoal e autonomia crítica, estando especialmente atento a brasileirismos e desorganização dos argumentos expostos.
Em nada se alterou o programa a leccionar. Trata-se somente de entrar por outras portas, ou sugerir outros caminhos, para chegar ao mesmo espaço do saber. O efeito de real na narrativa, seguindo reflexões de Aristóteles e Roland Barthes, começou com uma missão que muito os entusiasmou: a arte de mentir e a elaboração de um possível Decálogo do Mentiroso. Passar das estratégias da mentira na vida real (que conheciam) para as estratégias da ficção na Literatura (em que nunca tinham reflectido) tornou-se, afinal, uma forma de os sensibilizar para a importância da formação da audiência/leitores ou da escolha do género literário. Da mesma forma, dividir a turma em dois partidos, um contra os géneros literários, outro a favor, foi determinante para se ler com mais atenção os argumentos de Benedetto Croce ou de Emil Staiger, ou o capítulo sobre a questão na Teoria da literatura, de Aguiar e Silva. Também o facto de não poderem escolher no debate as suas opiniões é um pretexto de sensibilização do aluno para o modo dramático da narrativa. Da mesma forma que Shakespeare não se confunde com Otelo, Iago ou Desdémona, também Fernando Pessoa pode ser Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos. Se Flaubert pode dizer que nele há qualquer coisa de Emma Bovary, ou até Charles Bovary, também o aluno deverá saber que os seus argumentos não invalidam a existência de outros. Em todas as situações, interessa ponderar pontos de vista, hierarquizar argumentos. A dramatização torna-se, no r.p.g., aprender a ver com o olhar do outro, relativizando o nosso olhar para dele ter mais consciência.
III. “Antes de passar uma porta, tenta abri-la”
E pur, e pur, ....non si muove.
Qual a razão pela qual a pedagogia pelo jogo se aplica tão pouco nas nossas escolas?
Se fosse feito um estudo, verificar-se-ia que poucos são os docentes que utilizam as estratégias lúdicas propostas nos livros: muitas vezes, consideram-nas inviáveis em sala de aula, outras vezes, recomendam-nas com carácter facultativo aos alunos. Quase sempre são afastadas do espaço e tempo lectivo: não são imediatamente úteis, atrasam o cumprimento do programa e são mais caras que as leituras do livro. Parece-nos que Vicente Ferreira da Silva tinha razão quando nos alertava para o perigo de sociedades eficazes e rentáveis feitas de gente triste e desajustada…
É o próprio sistema educativo que entrava aquilo que à partida era esperado que incentivasse. No ensino público ou privado, a geral resistência à mudança é fortíssima, uma vez que implica um esforço suplementar na aquisição e aplicação de novas técnicas do processo do ensino-aprendizagem. Cristalizadas no tempo, as instituições não arriscam, preferindo os métodos que conhecem aos que não conhecem, crendo ver nos primeiros uma maior margem de reconhecimento, aceitação e segurança, ainda que só medianamente eficazes. Professores e alunos, ainda que em grau de aprendizagem e responsabilidade diferentes, devem ser eternos aprendizes do saber, da sabedoria e do sabor das coisas do mundo:
“Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas surge em seguida uma outra em que se ensina o que se não sabe, a isso chama-se procurar. Chega agora, talvez, a idade de uma outra experiência: a de deixar germinar a mudança imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessámos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda que ousarei aqui arrebatar, sem complexos, à própria encruzilhada da sua etimologia: Sapientia. Nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria e o máximo de sabor possível.” (Barthes, 1988: 41-2)
Nenhum poder: é esse talvez o maior medo. O jogo é uma brincadeira, propicia o entusiasmo, os arrebatamentos, as inconveniências: baseia-se até numa certa provocação ao usual, à norma normal, agora normatizada. O jogo torna-se antítese da sala de aula porque põe em causa a autoridade do professor, confundindo assim os espaços da escola, a aula e o recreio, incentivando a indisciplina crescente com que, cada vez mais, os professores se deparam.
Como motivar quando não se está motivado? Porque não são só os alunos que não estão motivados e se deve abertamente alertar para a crescente desmotivação da classe docente: professores que não querem ser professores, professores mal pagos, escolhidos por concursos que não atendem a competências mas a negociações ocultas, a notas de licenciatura que com elas promovem escolas sem qualquer outro tipo de recomendação; docentes no desemprego, professores por vocação que não conseguem ser professores por existirem vagas guardadas; ou desenraizados, a leccionar, ao fim de muitos anos de serviço, em escolas afastadas mais de cem quilómetros do seu agregado familiar. Como transmitir o prazer e a paixão de aprender quando se tem morta dentro de si a chama do desejo?
Voltemos à moral lúdica de Vicente Ferreira da Silva. Se fazemos o que devemos por finalidades posteriores à nossa acção (se fazemos o bem para depois entrar no céu), de que pureza é feita a nossa chama? Há que procurar a resposta dentro de cada um de nós, abstrairmo-nos de uma realidade que muitas vezes é dura e complexa: entrar no jogo. De modo a tentar renascer e reviver emoções outrora vividas e remetidas ao esquecimento e viver outras sob a forma de disfarce, de sonho ou imaginação num universo hipotético i real.
Os sistemas r.p.g. permitem isso mesmo: que professores e alunos, movidos por um projecto comum, se envolvam numa aventura pedagógica, num ambiente de entusiasmo na sala de aula que a todos pode satisfazer, promovendo a auto-estima e o equilíbrio emocional que advém da interiorização e aplicabilidade de uma série de conhecimentos até aí desconhecidos. O professor, se tiver abertura para tal, encontrará no aluno, independentemente da sua idade ou condição social, um espantoso manancial de potencialidades.
Nada do que dizemos é fundamentalmente novo. Mas o que nos encoraja é precisamente a permanência da estratégia do jogo no processo de aprendizagem, tão velha quanto o próprio jogo. Mudam os nomes, é certo, mas menos mudam as coisas, os homens, o binómio de Newton, a Vénus de Milo.
Uuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, e o vento lá fora.
O que há é pouca gente que dê por isso…
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