Crisis
Profa. Dra. Gabriele Greggersen
Universidade ABC - São Paulo
Era uma vez um povo que vivia nas
montanhas.
Não vivia como aquelas comunidades mais
conhecidas como "povos das montanhas", em vilas encravadas nas encostas ou
concentradas em pequenos planaltos e chapadas, rodeadas de das mais fundas escarpas, que,
por vezes chegavam a formar um verdadeiro Grand Canion.
Viviam literalmente "nas
montanhas", ou seja, incrustados nelas. Isto é, nasciam, alimentavam-se, dormiam,
sonhavam, casavam-se, amavam ali mesmo, nas montanhas.
Tais condições ambientais eram, sem
dúvida, um tanto inconvenientes às necessidades e habilidades (ou limites) dos
habitantes daquelas tribos. Sua estrutura humana certamente não havia sido projetada para
fazê-los enfrentar, com a naturalidade de um bode montanhês, todos esses e precisamente
aqueles desafios da dura realidade das montanhas. Foi preciso que se adaptassem ao seu
ambiente, dando-se conta de suas necessidades específicas e da premência do
desenvolvimento de uma, assim chamada, "tecnologia montanhesa".
Assim, ao longo dos anos, foram
extraídos, transformados e manipulados vários tipos de materiais para produção de
cordas e cabos, anéis e ganchos de várias espessuras, resistências e qualidades, que
poderiam ser combinados de forma a permitir diversas estratégias de escalação
individual ou grupal.
Evidentemente, quanto mais pessoas
envolvidas na trama ou rede de cordas, menos tecnologia e energia era exigida e maiores as
chances de atingirem de determinado objetivo, ou mesmo de pura e simples sobrevivência
nas montanhas.
Pois, quanto mais complexa era a trama,
quanto mais cordas, roldanas e apetrechos mil a compunham, mais se economizavam esforços
e mais tempo e energia sobrava para dedicar-se a outras ocupações que não fossem, a
mera locomoção ou nua e crua sobrevivência.
No entanto, apesar das perspectivas
promissoras do progresso trazidas por este tipo de projeto e iniciativa de
desenvolvimento, havia um porém nisso tudo, que poderia vir a tornar-se uma grande
desvantagem: quanto mais "complicada" a trama e a estratégia para galgar as
montanhas, maiores se tornavam as chances de abertura de "brechas", que pudessem
fazer componentes isolados do grupo caírem nas inevitáveis "ciladas" da
natureza, sofrendo as conseqüentes quedas, que por sua vez, dependendo de seu
posicionamento na hierarquia da trama, poderiam pô-la toda em risco.
É como se dizia entre os montanheses:
"Uma corda puxa outra,
mas quando um só cai, caem todos..."
Já outro provérbio, quase tão sábio
quanto este, dizia:
"Uma só corda, é muito bom;
duas, formando uma, melhor ainda,
mas três por uma é o máximo,
se a corda toda for boa".
Além dos ditos populares, o montanheses
também adoravam passar o seu tempo livre contando histórias.
Vou lhes contar uma delas, que dizia o
seguinte:
"Era uma vez um montanhês muito
emancipado e adiantado para o seu tempo, chamado Ernesto. Ele era muito trabalhador,
competente e sério sempre preferia fazer as coisas sozinho.
Não gostava de ficar na dependência de
ninguém, pois, geralmente era mais rápido apelar para o método 'faça você mesmo'.
Certo dia, outro montanhês, de nome
Mirana, começou a mostrar-se muito amigo dele, depois que, numa caçada, Ernesto havia
salvado o irmão gêmeo dele, Miranda, de um profundo buraco.
Com o tempo, o normalmente tão frio e
distante Ernesto acabou se deixando aquecer pelos agrados e atenções de Mirana e os dois
desenvolveram uma profunda amizade.
Davam-se muito bem, pois, o que um não
sabia fazer, normalmente o outro sabia e também o ensinava. Assim aprendiam muito um com
o outro. Sua única e grande diferença, e talvez era isso que os atraía um ao outro, era
a forma como levavam a vida na intimidade.
Diz-se que Ernesto cultuava um Ser
misterioso e invisível e com ele conversava todos os dias. Comenta-se ainda que era a
esse Deus que Ernesto atribuía toda a força de trabalho e habilidade em ladear os tantos
e inevitáveis abismos, tão comuns na vida daquele povo sofrido.
Não é que Mirana não simpatizasse com
esse Deus. Pelo contrário. Ele até acompanhava Ernesto para os encontros que se davam
periodicamente entre os fiéis desse Deus. Acontece que Mirana não conseguia conversar
com Ele, pelo menos não, na presença de Ernesto. Também não falava dEle a ninguém,
como era de costume entre os fiéis. Parecia até que cultuavam deuses diferentes.
Certo dia, Ernesto e Mirana saíram para
a habitual caçada, mas algo muito terrível aconteceu. Bastou um só instante de
descuido, e Mirana escorregou, arrastando Ernesto consigo para um profundo abismo.
Em seu desespero, Ernesto reagiu rápido.
Quase que por instinto, lançou imediatamente sua corda em direção ao local onde
acreditava estar Mirana. Mas, prudente como era, é lógico que não fez só isso:
lançou, ao mesmo tempo também outra corda para o alto, junto com uma prece das mais
veementes que jamais havia rezado.
E então ocorreu o menos esperado:
enquanto a corda jogada para alto por Ernesto se esticava, para sua surpresa, a outra,
jogada para baixo em direção ao amigo, que deveria ter-se esticado, para enorme
decepção de Ernesto, pendia frouxa em direção ao vazio.
Ernesto mal podia acreditar nas duas
incríveis realidades: uma tão admirável: algo o sustentava no vazio, e estava vivo! - e
outra, tão terrível: nada de Mirana!
Mais tarde, quando Ernesto finalmente
conseguiu regressar da caçada à sua aldeia, o povo das montanhas resolveu até fazer
buscas por todo o fundo do abismo, mas nunca mais encontraram o corpo de Mirana.
No momento em que previa isto, Ernesto
perguntou-se até se havia valido a pena lançar a corda ao alto, ou se não teria sido
mais digno da parte dele morrer ao lado do amigo... Mas algo lhe dizia que ainda não era
chegada a hora da morte, pelo menos não, para ele.
Alguns anos depois, Ernesto viria a
tornar-se um quase irmão-substituto para Miranda, o mencionado irmão gêmeo de Mirana,
que Ernesto havia tirado do buraco, desenvolvendo uma amizade com ele, que duraria por
todo o sempre, pois Miranda, ao contrário de Mirana e apesar de seu ceticismo inicial,
aprenderia a conhecer e respeitar o Deus de Ernesto, como conseqüência natural do amor
sincero que tinha por esse seu novo amigo."
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