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A Banalização da Violência - Reflexões sobre
o Índice de Homicídios na Cidade de São Paulo

 

Angelo Patrício Stacchini
Promotor de Justiça em São Paulo

"Embriaguez"

"João Roque Reis embriagou-se hontem numa venda da rua Monsenhor Anacleto e de cacete em punho começou a aggredir os transeuntes, sendo por isso preso e levado á presença do 2º subdelegado do Braz." (jornal O Estado de S. Paulo, 19 de agosto de 1.896, 4ª - feira. Fonte: seção "Há um século", publicada no mesmo jornal, em 19 de agosto de 1996).

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"Os moradores da rua D. Luiza Macuco têm sido víctimas, nestas ultimas noites, dos amigos do alheio, os quaes, assaltando os quintaes tem roubado das capoeiras as melhores gallinhas que alli existiam." (jornal O Estado de S. Paulo, 21 de maio de 1.898, sabbado. Fonte: seção "Há um século", publicada no mesmo jornal, em 21 de maio de 1998).

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"Na 32ª Chacina do ano, cinco são mortos"

De acordo com os levantamentos da Secretaria da Segurança Pública, o número de pessoas assassinadas também vem aumentando. No último semestre do ano passado, 4.690 pessoas foram mortas. De janeiro a junho deste ano já foram registrados 5.298 homicídios em todo o Estado. (O Estado de S. Paulo, 19-8-1996 - Caderno "Cidades").

"Morte na periferia revela banalização da violência"

"Moradores encaram como rotina o encontro do corpo de desempregado em matagal."

"Quase meia-noite, e pouco mais de 50 pessoas aglomeram-se na beira de um matagal. Há mulheres, crianças e alguns jovens que se divertem com piadas. Todos se espremem, entre frases como ‘deixa eu ver’ ou ‘chega pra lá’. Instantes depois, o grupo começa a desfazer-se. Uma voz no meio da concentração define: ‘Acabou!’. O foco de atenção da noite, o corpo de Juraci Pereira de Oliveira, de 33 anos, havia acabado de deixar o local, levado por um carro, o ‘rabecão’ do Instituto Médico-Legal (IML). A partir daí, Oliveira iria transformar-se em fração de estatísticas de mortes ocorridas na região metropolitana. No fim de semana, foram 50 casos de homicídio. Apesar de elevado, o número não foge à média de contagens anteriores. Este ano, entre 30 de janeiro e 2 de fevereiro, o total de mortes violentas atingiu o recorde de 67" (O Estado de S. Paulo, 28-4-98, "Cidades").

     O contraste que nasce da leitura comparativa das notícias acima transcritas, publicadas pelo mesmo jornal com a distância de um século, não pode deixar de chocar.

     Em 1898 o ladrão de galinhas ("amigo do alheio", na graciosa expressão usada pelo repórter), terror dos "quintaes" e das "capoeiras", era notícia de jornal.

     Em 1896, o "bêbado" que, "de cacete em punho", atacara os incautos moradores do então bucólico bairro do Brás, também justificava noticiário, com direito a título, em o Estado de S. Paulo.

     Um século depois, em 1996, somente é notícia a ocorrência de uma "chacina", com vários mortos e requintes de atrocidade, geralmente cometida com o uso de devastadoras armas de fogo.

     Houvesse, num fim de semana da Capital de São Paulo, "apenas" um, dois ou até três homicídios, e muito provavelmente nem uma linha sequer seria publicada nos jornais da segunda-feira. A gravidade da morte de um ser humano, diante da escalada de violência que atinge a nossa sociedade, infelizmente não mais comociona, não choca mais. A morte violenta está banalizada. O valor da vida humana está relativizado(1).

     "Sinal dos tempos"? Do "progresso" de nossa sociedade? É certo que não.

     Vale a pena meditar um pouco sobre o tema, ainda que sem a pretensão de apresentar soluções, mas com o único intuito de despertar para a importância do assunto e para a gravidade da questão, aqueles que ainda não tiveram a oportunidade de pensar a respeito.

     E, realmente, a questão em foco interessa não somente aos profissionais nela diretamente envolvidos (policiais, advogados, promotores de justiça e magistrados), mas também a todas as pessoas. É muito importante que a sociedade seja "despertada" para o tema, pois o elevadíssimo crescimento da violência, e a sua conseqüente banalização, caso não sejam combatidos com eficácia, acabarão por acarretar um esfacelamento do tecido social. E uma sociedade que não procura pelo menos enfrentar face a face seus problemas, não progredirá, e não alcançará a estabilidade e a segurança necessárias para o desenvolvimento físico e espiritual de seus membros individualmente considerados.

     A questão do crescimento da violência urbana (e, por conseqüência, do alto índice de homicídios) é por demais complexa, e seu estudo, de natureza multidisciplinar (a exigir uma análise de aspectos sociológicos, econômicos, políticos, jurídicos e criminológicos), refoge da finalidade do presente trabalho e da capacidade de seu autor.

     Seria também inútil a busca de "culpados", de "bodes expiatórios" a quem se pudesse atribuir a responsabilidade por tal situação. Os meios de comunicação e a opinião pública, muitas vezes de maneira superficial e reducionista, atribuem esse crescimento da violência simplesmente a fatores de ordem sociológica (a desumanidade das metrópoles; o choque de valores decorrente da migração urbana; etc.), econômica (o desemprego e a pobreza), ou jurídica (a ineficácia das leis; a ineficiência da polícia; a lentidão do Poder Judiciário e do Ministério Público, por exemplo). Todavia, nenhum destes fatores, isoladamente considerado, pode justificar uma elevação tão grande do índice de homicídios na região metropolitana de São Paulo.

     A questão é, repita-se, extremamente complexa, e, conseqüentemente, a diminuição da violência depende não só do aprimoramento do Poder Público e de suas Instituições, mas principalmente de uma tomada de posição de toda a sociedade, que deve proferir um decidido "não" contra a violência, no campo das idéias e na vida concreta.

     Sem pessimismos estéreis, que nada constróem, mas com um saudável realismo, é necessário que se reconheça: a atual situação, no que concerne à violência contra a pessoa na cidade de São Paulo, é muito grave.

     Vivemos, sem exagero, uma permanente "guerra civil", na qual morrem milhares de pessoas(2). E, o que é mais preocupante, tal escalada de violência acaba por "anestesiar" a sensibilidade social para com a vida humana; pode-se dizer que, infelizmente, hoje em dia um homicídio é considerado como algo "normal". E não é normal; a supressão violenta da vida de um ser humano nunca pode ser considerada algo "normal"!

     O fato de — cada vez mais — ser impossível pensar "a violência" em termos abstratos — ela está aí e, em suas diversas formas, vai atingindo concretamente a cada um (em incidências que envolvem parentes, amigos e conhecidos...) — convoca a uma urgente reflexão sobre a dignidade da pessoa e sobre o valor da vida humana. Uma reflexão que atinja as raízes tanto da violência como dos próprios fundamentos da dignidade humana(3).

     Verifica-se a existência da aguda situação de violência principalmente nas regiões da periferia da cidade. Em nossa atuação profissional, como Promotor de Justiça no Tribunal do Júri de Santo Amaro (que julga crimes contra a vida praticados na periferia da zona sul da cidade de São Paulo — a região mais violenta da metrópole, com o índice de homicídios mais elevado), constatamos casos trágicos: crianças pequenas que, indiferentes à existência de um cadáver num campo de futebol da periferia, jogam bola como se nada tivesse acontecido; cadáver que permanece jogado no meio da rua, com a cabeça dilacerada por projéteis de espingarda "calibre 12", enquanto um cachorro vira-latas espalha seus miolos, passeando com eles na boca, por mais de 100 metros! São situações degradantes, que não podem deixar de chocar. Se não causam mais impacto, algo de errado há!

     Que essas observações, que são mais de registro (e quase um "desabafo") do que de análise doutrinária ou científica da questão, possam contribuir para que todos nós despertemos para essa gravíssima situação, para essa banalização da violência que tanto desumaniza a cidade de São Paulo.


1. Uma primeira conseqüência da relativização é essa espécie de anestesia de consciência que leva a uma desvalorização da vida humana em geral; à aceitação como algo quase normal - como um problema "técnico" -, da supressão da vida sob as formas de aborto ou eutanásia, por exemplo.

2. Conforme estatísticas da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, apenas no mês de março de 1998 ocorreram 1.259 homicídios dolosos na região metropolitana de São Paulo (fonte: jornal O ESTADO DE S. PAULO, 23-4-98, caderno "Cidades"). No segundo semestre de 1995 ocorreram 4.690 homicídios dolosos; de janeiro a junho de 1996 foram registrados 5.298 homicídios dolosos em todo o Estado (mesma fonte, 19-8-96).

3 . Sugestivamente, o filósofo alemão contemporâneo Josef Pieper aponta, em sua antropologia filosófica, para um elemento essencial dessa reflexão: "A Justiça é pois, como vemos, algo que está em segundo lugar; ela pressupõe algo diferente de si mesma: a saber, que, primeiro, haja alguém a quem algo é devido e que aquele que é convidado a exercer a Justiça aceite esse dever. (...) No que deve residir, então, a causa de que a todo aquele que porta uma face humana, simplesmente pelo seu ser-homem, algo lhe seja devido inalienavelmente? Por exemplo, que a sua honra como pessoa seja respeitada. O conceito de pessoa, de fato, é aqui decisivo, enquanto se compreende "pessoa" como um ente que existe para seu próprio aperfeiçoamento e realização. Mesmo assim, em caso de conflito, ao se chegar aos extremos, não basta retroceder ao mero ser-pessoa (como supunham alguns filósofos idealistas). É necessário nesses casos, poder colocar em jogo uma instância absoluta, mais além de qualquer instância humana". ("A justiça" in Lauand Ética e Antropologia, São Paulo, Mandruvá, 1997, pp. 27-28)