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Método e Linguagem no
Pensamento de Josef Pieper

(notas de conferência proferida no congresso internacional:
 "Josef Pieper e o pensamiento contemporáneo", Buenos Aires, agosto de 2004)

 

Jean Lauand
Prof. Titular - Fac. da Educação da
Universidade de São Paulo
jeanlaua@usp.br

 

Primeiramente, quero parabenizar a ilustre Universidad Católica de Buenos Aires pela tão oportuna iniciativa de realizar este Congresso e agradeço a imerecida honra do convite para proferir esta conferência.

Tive o privilégio de manter constante contato epistolar com JP - pela sua imensa generosidade em responder às cartas de um jovem estudioso, desde o começo dos anos 80 até seu falecimento em 1997 -, com base na elaboração de minha tese de doutoramento [1] , dedicada a seu filosofar.

Nesta conferência vamos discutir algumas características do método em JP e sua conexão com o todo de seu filosofar, dedicando uma especial atenção ao peculiar papel exercido pela linguagem - elemento metodológico principal na articulação linguagem/pensamento/realidade - no filosofar

O problema do método: ciências e filosofar

Cada ciência estuda seu objeto sob um determinado ponto de vista: dirige-se a um determinado aspecto e todo o resto simplesmente não lhe interessa. Assim, uma mesma realidade, por exemplo, o homem, é estudada por diferentes ciências sob diferentes ângulos: um é o enfoque da Medicina; outro, o da Psicologia; outro, o da Sociologia etc. o objeto de estudo de uma ciência e, principalmente, seu peculiar ponto de vista [2] condicionam, como é lógico, sua metodologia: de que servem, digamos, a compreensão empática para o matemático empenhado em demonstrar seus teoremas ou, reciprocamente, os teoremas do matemático para um historiador? E, como é evidente, o mesmo pode-se dizer do instrumental de cada ciência, também neste caso o objeto é decisivo: é pelo seu objeto que a astronomia emprega o telescópio e não o microscópio; a física - ao contrário da matemática - requer um laboratório; etc.

É certo que a questão do método das ciências não é simples e suscita infinitas discussões. No entanto, quando se trata do filosofar - do genuíno filosofar, tal como o entenderam "os antigos" - a questão do método torna-se ainda mais problemática e isto não por um maior grau de complexidade, mas porque ela nos introduz em uma nova ordem: a misma que distingue o filosofar das ciências. Por isso, o filosofar não tem nem pode ter - e nem sequer pretende ter... - operacionalidade metodológica, uma operacionalidade que pode se dar - em maior ou menor grau - nas ciências.

Neste sentido, baste-nos recordar que JP - seguindo a tradição clássica de pensamento europeu - entende por filosofar a busca do ser, guiada pela pergunta:

Que é, em si e afinal, isto? [3] ,

tal como foi proposto por Platão [4] : o filósofo quer saber não se o rei que tem muito ouro é feliz ou não, mas o que é a felicidade.

Ou seja, o filosofar não se limita a um "ponto de vista" mas indaga, con Whitehead, "What is it all about?" [5] , indaga pelo todo, com que este objeto se relaciona e, portanto, não se pode esperar um método com pretensões de precisão ou "bem comportado".

Isto não depõe contra a filosofia, muito pelo contrário: o próprio JP dedica um artigo - Über das Verlangen nach Gewissheit [6] -, à demonstração do fato de que o pouco que se pode obter na Filosofia (e na Teologia) é muito mais importante que os claros conhecimentos das ciências. O artigo é dedicado a comentar a contundente sentença de Santo Tomás:

Minimum quod potest haberi de cognitione rerum altissimarum, desiderabilius est quam certissima cognitio quae habetur de minimis rebus, ut dicitur in XI "De animalibus" (I, 1, 5 ad. 1).

Pois só se pode ter precisão, clareza quantificável, se se trata de conhecimentos menores; já o pouco - e relativamente obscuro - que se pode obter em Filosofia é de sumo interesse. A propósito, é oportuno recordar que precisão -etimológica e realmente- significa corte ("precision", explica o Oxford English Dictionary, provém de praecisio: a cutting off abruptly).

Daí que a ciência é precisa na medida em que, a partir de seu ponto de vista, diz: "interessa-me este aspecto da realidade (e o resto não me interessa!)"; já o filósofo, quando pergunta pela realidade - perguntando, por exemplo, "o que é o homem?" -, não se limita a um determinado ponto de vista, mas abre-se omnidimensionalmente ao ser, àquilo que em si e em sus últimos fundamentos é tal realidade - o homem, a arte, o amor etc.

Além disso, nada impede que uma questão científica possa receber uma solução cabal, precisa e definitiva (por exemplo, só há dez anos, a matemática chegou, finalmente, à solução do "último teorema de Fermat", que permaneceu indemonstrado por 350 anos), enquanto as questões filosóficas permanecem sempre no "ainda não" da esperança: quem poderá dizer que sabe plenamente "em si e em suas últimas razões" o que é o homem, o amor etc. Camões, o grande poeta português, diz que o amor é:

um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como e dói não sei porquê.

Precisamente essa amplitude de perspectiva torna problemático o filosofar: para ele não há, dizíamos, uma metodologia que se possa operacionalizar em passos "objetivos" como os que se dão, por exemplo, na álgebra elementar, para resolver uma equação...

Método e pensamento em JP

Sem menoscabo do tão importante "conteúdo" de seu pensamento - objeto precisamente de brilhante exame neste Congresso - parece-me que vale a pena que nos detenhamos também nas riquíssimas contribuições específicas de JP no campo dos procedimentos metodológicos. E aliás, se seguimos o próprio JP, o método não deve ser considerado como uma realidade autônoma, mas que depende, decorre desse mesmo filosofar. A sentença de Fichte, citada por JP [7] : "A filosofia que se escolhe depende do homem que se é" pode ser parafraseada e aplicada a nosso tema: "O método que se escolhe depende da concepção de filosofar" [8] .

Esta é a razão pela qual - no caso de JP - o método escapa a toda tentativa de "operacionalização", de deixar-se expressar em "receitas" ou regras rígidas. Pois filosofar é, para JP:

um processo existencial que se desenvolve no centro do espírito, um ato espontâneo que arranca da vida interior [9]

Aliás, como caberia falar em métodos rígidos em uma obra que tão acertadamente foi qualificada - por ninguém menos do que T. S. Eliot - como de insight e sabedoria? [10]

Seja como for, há claramente um método em JP;. um método tão dialeticamente unido a sua antropologia, que nem sequer é possível pensar uma dessas realidades separada da outra: seu método é o que é pela sua pessoal concepção de filosofar; e ele exerce o filosofar por meio do método.

No caso do filosofar de JP, isto - a conexão do método com seu filosofar, com sua antropologia filosófica - é muito forte e o fato de que o próprio JP não tenha dedicado diretamente ao tema método mais do que umas poucas páginas (poucas, mas muito luminosas) significa talvez que o método está tão vivamente integrado à sua antropologia que - parafraseando o célebre pensamento de McLuhan - pode-se dizer da obra de JP: "o método é a mensagem".

 

O método: caminhos indiretos para o homem

Quando se contempla a vasta obra filosófica de JP e se constata que versa sobre temas tão variados como Metafísica, Filosofia da História, Ética etc., é natural que o pesquisador indague sobre a existência de possíveis constantes por detrás dessa multiforme variedade: Que há em comum (se é que há algo em comum...) em temas aparentemente tão distintos como por exemplo em seus estudos sobre o filosofar, a virtude, ou o principio metafísico da verdade das coisas? [11]

O tema, o grande tema que subjaz a todos os escritos pieperianos é o homem, a antropologia filosófica. Mas - e com isto tocamos um dos traços principais do pensamento/método de JP - a essa realidade fundamental, o homem, só há acesso por caminhos indiretos.

Repito: esta afirmação ("ao objeto fundamental do filosofar, o homem, só há acesso por caminhos indiretos ") está na própria raiz do pensamento/método de JP. e vale a pena que nos detenhamos em explicá-la um pouco, lançando luz sobre o método e sobre a dialética método/conteúdo de que falamos há pouco.

 

Memória, mãe das musas

Em um texto isolado: "Erinnerung: Mutter der Musen" [12] - um breve discurso em homenagem a uma artista plástica -, JP expressa algo de muito importante sobre o homem e indiretamente sobre o método de seu filosofar.

A Memória, Mnemosyne, é a mãe das Musas: não há memória para o homem -diz JP citando Safo - sem as Musas. O homem é um ser esquecediço e precisa das musas para recordá-lo - agora citando Píndaro - da grandeza da obra divina.

JP resume a sugestiva cena apresentada por Píndaro, em seu "Hino a Zeus". Zeus decide intervir no caos e, então, toda a confusão informe vai dando lugar à harmonia e à ordem: kosmos. E quando, finalmente, o mundo alcança seu estado de perfeição (estreando a terra, os rios, os animais, o homem...), Zeus oferece um banquete para apresentar aos deuses - atônitos ante tanta beleza - sua criação... Mas, para surpresa dos convidados, ante a pergunta (quase meramente retórica) sobre se falta algo ou se há algum defeito, ouve-se uma voz que indica a Zeus uma grave e insuspeitada falha: faltam criaturas que reconheçam e louvem a grandeza divina do mundo..., pois o homem é um ser que esquece. O homem, que recebeu da divindade a chama do espirito; o homem, está, afinal, mal feito, mal acabado: ele tende à insensibilidade, a não reparar... a esquecer! As musas (filhas de Mnemosyne), as artes, aparecem como uma primeira tentativa de conserto de Zeus: a divindade as oferece como dádiva ao homem como companheiras, para ajudá-lo a lembrar-se...

Naturalmente, a missão de resgatar ao esquecimento importantes realidades não compete somente às artes [13] . O filosofar (e para JP o filosofar está muito próximo da arte) deve recordar-nos das grandes verdades que sabemos, mas das quais, uma e outra vez, nos esquecemos. Sempre atento à linguagem, JP faz notar que a língua inglesa dispõe de duas palavras para recordar: remember e remind. As musas são as grandes reminders, fazem com que o artista recorde e, por sua vez, faça recordar a outros.

Precisamente esse caráter esquecedor do homem (ele sim se lembra do trivial, mas se esquece do essencial), está nos fundamentos do método de filosofar de JP, um método que atinge seu objeto, o homem, por caminhos indiretos.

 

A experiência: sabemos mais do que o que sabemos

À primeira vista pode parecer contraditório falar de caminhos indiretos em um filosofar como o de JP, que - e esta é outra característica essencial do método - sempre se dirige ao fenômeno e se apóia na experiência. De fato, por exemplo em seu estudo sobre o sagrado, diz JP:

Como sempre, começaremos por apontar do melhor modo possível a resposta (a uma indagação filosófica) dirigindo a atenção ao fenômeno, isto é, àquilo que se manifesta [14] .

Desde o mais minúsculo artigo ao mais volumoso livro, sempre a análise pieperiana se alimenta da manifestação, do fenômeno: o insight e a sabedoria se encontram justamente no esforço de trazer à consideração tudo aquilo que realmente é significativo em relação a esta ou aquela experiência. E é por apoiar-se na experiência, que o pensamento de JP tem a viveza e o colorido do concreto, do vivido, e é por isso que suas obras são de leitura tão agradável e se impõem com o peso da realidade.

Mas precisamente neste voltar-se para a experiência é que reside o caráter problemático do filosofar e -paradoxalmente à primeira vista- a necessidade de um caminho indireto para o filosofar.

Pois o conteúdo das experiências não está totalmente disponível a nosso saber consciente. Pode ocorrer por exemplo que as experiências, as grandes experiências que podemos ter sobre o homem e o mundo, brilhem com toda a viveza por um instante na consciência e depois, sob a pressão do quotidiano, comecem a desvanecer-se, a cair no esquecimento... Seja como for, não é que se aniquilem (se se aniquilassem não restaria sequer a possibilidade de filosofar...), mas se transformam, se tornam...: instituições, formas de agir do homem e linguagem.

Estes são os três "sítios" (para usar uma metáfora da arqueologia) onde o filósofo deve penetrar para recuperar o que tinha sido oferecido na experiência.

Há um parágrafo essencial de JP sobre essas três vias privilegiadas de acesso:

Que significa experiência? (...) Um conhecimento com base num contato direto com a realidade (...) Mas os resultados que obtemos não desaparecem quando cessa o ato de experiência; acumulam-se e conservam-se: nas grandes instituições, no agir dos homens e no fazer-se da linguagem [15]

Uma e outra vez JP insiste em que não possuímos de modo consciente todo o conteúdo de nossas grandes experiências, como por exemplo em Über das Ende der Zeit:

Há experiências cujo conteúdo pode ser expresso e conhecido claramente por quem as faz e outras cujo objeto não pode ser expresso e "realizado" em seguida, mas permanecem, por assim dizer, latentes. (...) Por exemplo, eu nunca teria podido predizer como se comportariam numa situação excepcional e extrema, pessoas a mim chegadas. Mas, no momento em que vivo esta situação não me surpreendo com sua reação; sem o saber já a esperava. Já antes tinha captado nessas pessoas qualquer coisa de sua mais profunda intimidade. [16] .

Isto fica ainda mais claro em Über den Begriff der Sünde:

Em todos os fatos fundamentais da existência sabemos muito mais do que "sabemos". E cita, endossando, Friedrich von Hügel: "Não se trata tanto do que alguém julga que pensa mas do que realmente pensa..." o que talvez só venha a descobrir - para sua própria surpresa - por ocasião de um forte abalo existencial [17] .

É neste ponto - sabemos muito mais do que "sabemos" - que radica a própria possibilidade do filosofar, enquanto busca do resgate desse plus.

Uma busca pelo plus que se encerra em instituições - os senhores se lembrarão quanto de antropologia JP extrai da instituição "universidade" -, no agir humano - como se sabe, para JP a análise do próprio filosofar remete ao próprio centro da antropologia - e na linguagem.

Aludíamos há pouco à posição de Santo Tomás - tão cara a JP -, que afirma a semelhança entre o filósofo e o poeta. Os senhores permitir-me-ão, portanto, apresentar essa busca do plus por meio daquela que é a mais importante poeta brasileira da atualidade, Adélia Prado (sua obra poética tem muitos pontos em comum com o filosofar de Pieper [18] ), que soube expressar esse plus de visão nos tão sugestivos versos de seu poema "De profundis" [19] :

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.

 

Filosofar, rescate do plus nas instituciones

Vale a pena transcrever agora o parágrafo inicial de Offenheit für das Ganze, no qual, antes de refletir filosoficamente sobre a instituição universidade, o próprio JP resume a essência de suas idéias metodológicas. As grandes experiências estão escondidas nas grandes instituições (e podemos acrescentar: na linguagem e nos modos de agir dos homens):

As grandes instituições costumam ser a expressão de grandes experiências, de experiências que estão como que vazadas nessas instituições e, conseqüentemente, um tanto escondidas nelas. Esta é precisamente uma das razões pelas quais é tão difícil dizer cabalmente em que consiste o verdadeiro significado das instituições que condicionam e emolduram a vida humana. Com o simples atentar para o aspecto aparente, histórico-concreto do fenômeno, não se pode decifrar o que elas realmente são e devem ser; para fazê-lo, é necessário penetrar, através de um paciente e cauteloso esforço de interpretação, naquelas experiências, intuições e convicções que se incorporaram nas instituições e que as fundamentam e legitimam. Porém, quando se trata das grandes experiências que o homem tem consigo mesmo e com o mundo, das experiências que condicionam sua vida, não se pode dizer que elas possam ser apanhadas e formuladas facilmente, uma vez que não estão de modo algum ao alcance imediato da consciência reflexiva. Sabemos muito mais do que aquilo que somos capazes de exprimir de improviso, em palavras precisas, num determinado momento. E talvez aconteça que o que digamos de fato passe à margem de nossas verdadeiras convicções. [20] . [...] Precisamente as nossas certezas mais vitais - as que atingem nosso fundamento e o do mundo, de que temos tanta segurança que por elas orientamos nossas vidas - estão fadadas a se transformarem logo em existência viva; se tudo segue seu caminho normal, convertem-se em vida vivida, tornam-se realidades, concretizam-se. Passam, por exemplo, como dizíamos, a formar a organização estrutural das instituições, nas quais se configura e se perfaz o viver histórico do homem. Ainda que não se dêem a conhecer de modo imediato, essas experiências estão presentes e ativas, e quem queira expressá-las deve ultrapassar o que se manifesta na superfície e procurar atingi-las para, por assim dizer, retraduzi-las em forma de enunciado.

 

Caminhos de acesso à antropologia: a análise do próprio ato de filosofar

Resumindo: o filosofar parte da experiência, mas nossas grandes experiências não permanecem na consciência reflexiva com toda sua riqueza, mas nos escapam e se transformam inconscientemente em instituições, modos de agir e linguagem.

Portanto o método, o caminho, segue, de algum modo, aquilo que foi expresso por Heráclito numa conhecida sentença: odos ano kato mia kai oyte, o caminho para cima e o caminho para baixo é o mesmo e único. O espírito do homem, levado por uma necessidade dele, "desceu" para criar a universidade, para se pôr a filosofar, para enriquecer a linguagem... e depois, se queremos saber o que é o homem, o caminho, o método é subir: dessas realidades para o homem: odos ano kato mia kai oyte.

Consideremos esse ato humano particularmente importante que é o próprio filosofar. Não por casualidade - mas por exigências do próprio método e seguindo a grande tradição de Platão e Aristóteles - JP dedicou muito de sua obra à questão: "o que é filosofar?".

Essa questão - assim se lê já no primeiro parágrafo de Was heisst Philosophieren? - é decisiva...

...eminentemente filosófica, é com ela nos situamos no próprio centro da filosofia.

E prossegue:

Mais precisamente: nada posso dizer sobre a essência da filosofia e do filosofar sem, ao mesmo tempo, fazer uma afirmação sobre a essência do homem.

A antropologia filosófica de JP se constrói, em grande parte, a partir da análise do filosofar [21] .

E o filosofar - isto é, manter a tensão da indagação: "que é isto?", "que é isto em si e em suas últimas razões? (überhaupt und im letzten Grunde)" [22] - é tal que, por exemplo, uma de suas principais características é a "abertura para o todo"; formulação que remete a Platão e que é também o título do opúsculo, na introdução do qual JP discute seu método.

Não por casualidade, a estrutura do filosofar nos conduz à do homem: essa "abertura para o todo" expressa também "a própria natureza do espírito humano" [23] e ainda, diga-se de passagem, a essência da instituição universidade. Quer dizer, se o espírito humano desceu, produzindo a criação dessa instituição, que tem como forma precisamente a abertura que constitui esse espírito e, do mesmo modo, se o espírito humano se "objetiva", se manifesta engendrando a atividade do filosofar; metodologicamente é "subindo" a partir da universidade e do filosofar que chegaremos a saber algo sobre o espírito do homem - odos ano kato mia kai oyte.

 

Filosofar e ciências

Como dizíamos no início, quem pensa cientificamente, limita-se a considerar seu objeto sob um aspecto particular:

Enquanto saber especializado toda ciência está feita de formulações que dizem respeito a um aspecto determinado sob o qual ela considera o real; cada ciência existe, por assim dizer, em função dos limites que a separam das outras ciências [24] .

Neste caso, não entram em jogo "Deus e o mundo" [25] , que é precisamente -segundo Platão - aquilo que constitui a característica fundamental do verdadeiro filósofo: o permanente impulso "para alcançar o todo das coisas divinas e humanas em universal" [26] . Para lançar luz sobre esses dois modos de relacionar-se com seu objeto, tomemos como exemplo a distinção que JP indica entre o tratamento científico e o filosófico de um mesmo tema: a morte.

Na medida em que me interrogo, sob o ponto de vista fisiológico, o que acontece quando morre um homem, quer dizer, na medida em que, como cientista, eu formulo um aspecto parcial, não só não estou obrigado a falar de "Deus e o mundo", como isso nem sequer me é permitido: seria algo claramente não-científico [27] .

Em seu livro sobre a morte, no qual a pesquisa não é feita do ponto de vista científico, mas é filosófica (e a filosofia, insistamos, não tem um "ponto de vista", mas se abre para a visão da totalidade), JP indica que o filósofo deve manter uma:

firme vontade de tomar em consideração absolutamente todos os aspectos a nosso alcance, que possam de alguma forma dizer-nos algo sobre o fenômeno da morte ou, pelo menos, não deixar de lado nada do que for capaz de dar-nos alguma informação; sejam os dados procedentes da fisiologia clínica, da patologia, ou da experiência do médico, do sacerdote ou do capelão de prisões, ou o que se possa obter da legítima tradição sagrada [28] .

Daí se segue uma distinção de extrema importância que JP estabelece sobre os diferentes critérios de rigor e os diferentes modos de "ser crítico" que vigem para a ciência e para o filosofar:

Há, claramente, duas formas de se 'ser crítico' [29] .

E na conferência Über den Glauben, JP explica:

Há uma forma muito especial de "ser crítico", diferente da atitude crítica que, legitimamente, vige no âmbito da ciência. Para o cientista, quer dizer, para aquele que procura uma resposta exata para uma determinada questão particular, ser crítico significa: não admitir como válido nada que não tenha sido comprovado, 'não deixar passar nada' (nichts durchlassen). Mas para aquele que indaga pelas conexões totais, pelo último significado do mundo e da existência, isto é, para aquele que crê - e, aliás, também para quem filosofa - ser crítico é algo de fundamentalmente diferente: a saber, com a máxima vigilância ocupar-se de que do todo do real e do verdadeiro nada lhe escape. O cientista diz "nichts durchlassen"; quem filosofa e quem crê diz: "nichts auslassen", não deixar de considerar nada [30] .

E assim, ao longo por exemplo de Was heisst Philosophieren?, JP vai indicando as características do filosofar, que corresponderão a outras tantas informações essenciais sobre o homem, que aqui só podemos indicar de modo meramente esquemático.

Que, por exemplo, o filosofar tem por fim a contemplação, a theoria e por princípio a admiração, que o filosofar requer a skholé como atitude fundamental e necessariamente se dá em um âmbito de mistério. Estas não são somente características do filosofar, mas que, por mediação delas, chegamos a saber algo sobre o que é o homem.

Se nos detemos nessas características do filosofar (a admiração, o mistério etc.), veremos, con JP, que remetem a uma categoria especial: a "creaturidade":

A estrutura e a condição do mundo e do próprio homem estão profundamente marcados por seu ser-criação [31] .

E a partir dessas notas do filosofar, JP conclui também que o homem tem uma estrutura dúplice, que comporta um elemento positivo e outro negativo: é o que JP denomina Hoffnungsstruktur, estrutura de esperança [32] . e a esperança não é sim nem não, mas um "ainda não".

A forma íntima do filosofar é praticamente idêntica à forma interna da admiração. (...) A admiração comporta um aspecto negativo e outro positivo. O aspecto negativo consiste em que aquele que admira não sabe, não compreende; não conhece o que está "por trás" (...) Portanto, quem admira não sabe, ou não sabe perfeitamente. (...) Nessa estreita união entre "Sim e Não" manifesta-se que a admiração tem a mesma "estrutura de esperança". O arcabouço da esperança é próprio do ato de filosofar, como o é da própria existência humana. Somos essencialmente viatores, caminhantes, que ainda não são. [33]

E aí se conectam também outras características do filosofar que já mencionamos. Por exemplo, uma questão científica pode receber uma resposta clara, precisa e definitiva; uma questão filosófica sempre manifesta o "ainda não" do homem, que - para recordar uma imagem da filosofia cara a JP - tal como Eros é "filho de Poro e de Penia, ou seja, da riqueza e da indigência, (...) jamais é rico nem pobre, e se encontra sempre a meio caminho entre a sabedoria e a ignorância" [34] . A filosofia portanto não pode ser um sistema fechado, "a pretensão de possuir a 'fórmula do mundo' é antifilosófica e pseudofilosófica" [35] .

Daí que JP tenha dado tanta importância ao caráter negativo da filosofia. Quando publicamos a edição brasileira de Unaustrinkbares Licht, que tem por subtítulo "O elemento negativo na visão de mundo de Tomás de Aquino" [36] JP nos disse que se tratava de uma de suas obras mais fundamentais [37] , imprescindível para um estudo de seu filosofar.

Para explicar o que é a philosophia negativa, JP recorda (para surpresa de muitos...) que a sentença: "Rerum essentiae sunt nobis ignotae" [38] - as essências das coisas são desconhecidas para nós - encontra-se não na Crítica da Razão Pura de Kant mas nas Quaestiones disputatae do Aquinate [39] . É esta uma dimensão do pensamento de S. Tomás para a qual:

o tomismo de escola em absoluto não nos preparou e que faz explodir qualquer 'sistema' [40] .

Daí que JP não tenha admitido para si o rótulo de tomista:

Não pode haver um 'tomismo' porque a grandiosa afirmação que representa a obra de S. Tomás é grande demais para isso (...) S. Tomás nega-se a escolher algo; empreende o imponente projeto de 'escolher' tudo (...) A grandeza e a atualidade de Tomás consistem precisamente em que não se lhe pode aplicar um 'ismo', isto é, não pode haver propriamente um 'tomismo' ('propriamente', isto é: não pode haver enquanto se entenda por 'tomismo' uma especial direção doutrinária caracterizada por asserções e determinações polêmicas, um sistema escolar transmissível de princípios doutrinais [41]

 

 

Parte II - Método e Linguagem no Pensamento de Josef Pieper

 

A opção pela linguagem comum

Dizíamos que para JP, o filosofar parte da experiência, das grandes experiências que o homem tem consigo mesmo e com o mundo. E que - e aí radica a peculiar dificuldade para quem filosofa - essas experiências especialmente densas não têm brilho duradouro na consciência: logo se desvanecem, nos escapam... não que se aniquilem: condensam-se, escondem-se, depositam-se... na linguagem [42] , na linguagem comum, essa que nós mesmos falamos e ouvimos todos os dias.

Precisamente sobre o valor da linguagem comum para JP é o Prólogo de Hans Urs von Balthasar ao Lesebuch de JP: se se trata de filosofar e portanto da busca do ser em sua totalidade e de seu significado, impõe-se a consideração da linguagem comum, a que se faz a partir da sabedoria daqueles que inconscientemente "filosofam". "A palavra da linguagem comum humana encerra mais realidade que o termo artificial". E ajunta a surpreendente mas acertada afirmação: "Não só Lao-Tse, Platão e S. Agostinho, mas também Aristóteles e S. Tomás - por improvável que isso possa parecer - ignoram toda terminologia especializada" [43] .

JP desconfia da terminologia especializada e sua opção pela simplicitas radica em convicções filosóficas. No posfácio [44] que escreveu para a edição alemã do livro sobre a dor de C. S. Lewis, Pieper tece considerações, referindo-se a esse autor, que podem perfeitamente aplicar-se à sua própria obra: ainda que nem todos a considerem uma leitura "leve" - assim começa o texto - ninguém pode pôr em dúvida a simplicidade, virtude cada vez mais rara nos escritos filosóficos. E a simplicidade é - prossegue Pieper - o "selo de credibilidade" do filósofo e onde não a encontrarmos devemos desconfiar. Distingue a seguir "linguagem" (Sprache) de "terminologia" (Terminologie). Esta é artificial, fabricada, limitada a especialistas; aquela, a linguagem comum, quotidiana, possui a originariedade e a força da palavra natural.

A linguagem é assim todo um "laboratório" para o filósofo [45] . Por isso a extraordinária importância das línguas para o filósofo: em seu já citado prefácio a JP, T. S. Eliot afirma que o filósofo ideal deveria estar familiarizado com todas as línguas; para poder exercer seu ofício: "resgatar" a sabedoria que se ocultou na linguagem. Daí que vemos JP sempre atento a essa "sabedoria oculta" não só em sua língua alemã, mas também no grego e no latim (por exemplo no Cap. I de Glück und Kontemplation), no inglês (p. ex. em Überlieferung, p. 28), no francês (p. ex. em Hoffnung und Geschichte, p. 30), no russo (p. ex. em Lieben, Hoffen, Glauben, p. 42), no indiano (p. ex. em Überlieferung, p. 40) etc.

Essas convicções vinculam fortemente a metodologia do filosofar de JP à análise da linguagem. Sempre com a reserva da não-operacionalidade do método, podemos enunciar algumas constantes metodológicas referentes à linguagem, em JP.

 

A atenção à etimologia

JP está convencido de que as palavras freqüentemente têm um potencial expressivo muito maior do que à primeira vista se adverte no quotidiano, quando delas fazemos uso de modo tão familiar e quase automático. A parte mais evidente nas análises de JP sobre a linguagem são as inúmeras considerações etimológicas, às quais JP sempre está atento e que são muito ricas e sugestivas. Naturalmente, JP não faz da etimologia um absoluto e de modo muito acertado, reconhece seus limites, os mesmos limites do conhecimento humano:

Não há nada no mundo que possamos entender completamente. "As essências das coisas nos são desconhecidas". Esta sentença não se encontra numa Crítica da Razão Pura de Kant, mas nas Quaestiones Disputatae de S. Tomás de Aquino. Precisamente esta é a razão, prossegue ele, pela qual também os nomes que damos às coisas não lhes podem penetrar a essência. Se chamamos lapides às pedras porque elas podem "ferir o pé" (laedere pedem), com isto, como é óbvio, não expressamos o que uma pedra propriamente é. É sabido que essas etimologias dos pensadores medievais são quase sempre irremediavelmente falsas. Mas a sentença continua sendo verdadeira: nossos nomes não penetram no núcleo do que queremos denominar! No entanto, há, ao que parece, gradações [46] .

Nessas gradações há palavras que têm um "gancho" muito acidental com a realidade designada; outras, são já mais profundas; em todo caso, vale o que diz Tomás:

Et quia essentialia principia sunt nobis ignota, frecuenter ponimus in definitionibus aliquid accidentale, ad significandum aliquid essentiale" - In I Sent. d 25, q1, a1, r8

Este "gancho acidental" é a razão pela qual freqüentemente é diferente o enfoque, o aspecto pelo qual uma palavra de uma língua descreve uma determinada realidade: o mesmo objeto que protege da chuva (paraguas, parapluie, guarda-chuva) serve também para proteger-nos do sol (umbrella, sombrinha). Por isso, diz Tomás que diferentes línguas expressam a mesma realidade de modo diverso:

Diversae linguae habent diversum modum loquendi (I, 39, 3 ad 2).

E assim também cada etimologia - nas distintas línguas - pode trazer um aspecto distinto da realidade da coisa. Naturalmente, também aqui marca sua presença aquele caráter esquecediço do homem: os milhões de falantes do português quando agradecem dizendo "obrigado, muito obrigado", nem reparam no que estão dizendo: que a gratidão obriga a retribuir; do mesmo modo o falante do inglês quando diz thanks não se dá conta de que "to thank" se reduz etimologicamente a "to think", quem está agradecido pensa, considera o caráter gratuito (gracias!) no favor que o benfeitor lhe prestou. Com este exemplo tocamos - por meio de diversas línguas - os diversos graus de la gratidão Com efeito, Santo Tomás explica que a "gratidão" é uma realidade humana complexa (e isto já sugere que sua expressão verbal seja, em cada idioma, fragmentária: cada ênfase recai somente em um aspecto):

A gratidão comporta diversos graus. O primeiro encontra seu fundamento no 'reconhecimento' (ut recognoscat) do benefício recebido. O segundo consiste em louvar e dar graças (ut gratias agat); e por último, o terceiro, radica na obrigação (ob-ligatus) de 'retribuir' o bem recebido de acordo com a possibilidade do beneficiado e segundo as circunstâncias mais oportunas de tempo e lugar (II-II, 107, 2,c).

Freqüentemente o aspecto que a etimologia de cada língua traz pode ser muito importante, pode trazer informação de interesse para o filósofo. Como quando, por exemplo, em seu livro sobre o amor JP indica que as palavras latinas amor e amare têm que ver etimologicamente com a semelhança ("with the radical notion of likeness") e estão próximas ao inglês same [47] . Ou quando em seu livro sobre a esperança extrai as ricas conseqüências do fato de que em sus língua alemã "desespero" (Verzweiflung) derive de "dois" (zwei):

Das "zwei" in dem Wort (Verzweiflung) hat seinen Sinn [48]

 

A conexão entre linguagem viva e possibilidade de ver a realidade

Não somente as intuições depositadas nas palavras interessam ao filósofo; em certos casos, também a ausência de palavras na linguagem também traz informação importante.

A não existência de palavras vivas e vigorosas para expressar realidades fundamentais faz com que essas realidades tornem-se invisíveis para nós. O pensamento e a vida dependem da linguagem muito mais do que à primeira vista supomos. A força viva da palavra não só transmite, mas até produz e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos. Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer.

E reciprocamente, se uma realidade se torna invisível, a palavra que a expressa perde sua viveza e seu vigor, produzindo um círculo vicioso. JP dedica muito de sua atenção - sobretudo quando trata das virtudes - a essa relação, a essa interação dialética entre existência de uma atitude de vital interesse por algo e a existência de uma linguagem viva e vigorosa para expressá-la. Sem a palavra - a palavra adequada - a própria possibilidade de ver a realidade se torna problemática.

Por exemplo, em Das Viergespann, JP dice:

A verdade da concepção cristã de homem e a verdade em geral não somente perdem sua força de conquista, mas também seu poder de anúncio, se não é regenerada vivamente em seu sentido autêntico. E esta vivificação contínua realiza-se pela força incisiva da palavra viva. Daí a grande responsabilidade - que sempre acompanha o poder - para com a verdade daqueles que comunicam: podem anunciar a verdade ou desvirtuá-la [49] .

Neste caso JP está falando da temperantia, da falta de uma palavra viva em nossos idiomas para designar a realidade da temperantia. Mas os senhores recordarão que acontece o mesmo - e JP expressamente o indica - com muitas palavras fundamentais: virtude, amor, prudência etc. No caso da prudentia chegou-se inclusive a uma autêntica perversão de significado: da reta apreensão da realidade para um egoísta cuidado de si mesmo [50] .

Que falta fazem palavras que expressem por exemplo conceitos como acedia ou curiositas! Do esvaziamento da acídia, que não significa nada hoje em dia, e pior: de sua substituição pela preguiça na lista dos pecados capitais, JP diz de modo muito forte:

Não há provavelmente um conceito da ética que se tenha «aburguesado» tão notoriamente na consciência do cristão médio como o conceito de «acedia». (...) A noção que se tornou popular do pecado capital da preguiça gira em torno do dito: «a ociosidade é a mãe de todos os vícios». A preguiça, segundo esta opinião, é o contrário da diligência e da laboriosidade; é quase sinônimo de lassidão e desaplicação. Deste modo a «acedia» se converte quase em um conceito da vida industriosa da burguesia. E o fato de que esteja entre os pecados capitais parece que é, por assim dizer, uma confirmação e sanção religiosa da ordem capitalista de trabalho. Ora, esta idéia é não só uma banalização e esvaziamento do conceito primário teológico-moral da acídia, mas até mesmo sua verdadeira inversão. Ora, esta idéia não é só uma mera trivialização e esvaziamento do conceito primário teológico-moral do pecado da «acedia», mas sua verdadeira subversão [51] .

E da ausência para uma palavra que expresse vivamente o conceito clássico de curiositas, diz JP:

O que é mais surpreendente - e é algo simplesmente incrível - parece-me ser o fato de que uma determinada força fundamental do homem - da qual os antigos, muito justamente, trataram de modo exaustivo - seja simplesmente silenciada e omitida no pensamento cristão atual sobre a temperança [52] .

Mas detenhamo-nos em um outro par de casos desse voltar-se para a linguagem no filosofar de JP: a atenção à especificidade da distinção e, por outro lado, à "confusão".

 

Linguagem e distinção

A distinção. O filósofo deve dar muita atenção à especificidade semântica distintiva de cada palavra com relação a seus "sinônimos". Por exemplo, é certo que casa, lar, residência etc. apontam todas para uma mesma e única realidade objetiva [53] , mas cada um desses sinônimos enfatiza um aspecto, insubstituível em determinados contextos: não se pode dizer, por exemplo, "residência, doce residência!"...

Nesse sentido, JP indica uma importante "regra metodológica" [54] : uma palavra está sendo empregada em seu sentido próprio somente quando não pode ser substituída por outra (por nenhum de seus sinônimos) sem que haja alteração de sentido.

Pense-se - é o caso analisado por JP no citado artigo - na palavra "compreender". Na linguagem comum dizemos que "compreendemos uma língua estrangeira", que "compreendi as instruções de funcionamento desse aparelho eletrônico" etc.

No entanto, somente reparamos no conteúdo semântico (e humano, existencial) próprio do "compreender" - apreensão não somente do conteúdo objetivo de uma mensagem (o que se pode expressar por um sinônimo como "entender"), mas também de um alguém pessoal, vivo e concreto, que a emitiu - quando verificamos que há certos contextos de linguagem - como quando dizemos: "Não quero dinheiro, mas compreensão" - nos quais o vocábulo "compreender" não se deixa substituir, sem alteração de significado, por nenhum "sinônimo".

A clareza e a distinção do pensamento dependem, sem dúvida, de seus correspondentes na linguagem. E vemos JP extrair as mais decisivas conseqüências filosóficas sobre a esperança a partir do fato de que a língua francesa dispõe de dois vocábulos distintos para esperança: espoir e espérance: o primeiro, tendendo ao plural, às "mil esperanças" na vida; o segundo, que se emprega quase exclusivamente em singular, dirige-se à única e decisiva esperança, a de "acabar bem" simpliciter [55] . É interessante aqui fazer notar também - ainda no caso do francês - que o verbo espérer - e isto só pode surpreender quem ignore que a verdadeira e radical esperança traz consigo a certeza - requer, por "exceção", em sua forma afirmativa, o modo indicativo: não se diz: "J'espère que tout finisse bien", sino "J'espère que tout finira bien"

 

Linguagem e "confusão"

Mas, ao contrário do que à primeira vista poderia parecer, não só a distinção é importante. Algumas das mais brilhantes contribuições de JP para o pensamento filosófico estão em indicar a "confusão" na linguagem, que nos leva à "confusão" no pensamento e que, afinal, correspondem ao fato de que a própria realidade é também "confundente".

No filosofar de JP encontramos importantes passagens, marcadas por esse modo de pensamento confundente. Que, por exemplo, não há radicalmente duas felicidades (humana e divina), mas apenas uma: a felicidade definitiva, a bem-aventurança final, que é já prefigurada e dada em participação nas felicidades desta vida presente. Nesse sentido, JP cita a sentença de Tomás:

Assim como o bem criado é certa semelhança e participação do Bem Incriado, assim também a consecução de qualquer bem criado é também certa semelhança e participação da felicidade definitiva [56] .

Tal tese verifica-se na linguagem e Pieper, agudamente, aponta em seu tratado sobre a felicidade que, quando as diversas línguas eliminam a distinção entre uma felicidade sublime e as felicidades banais, estão, no fundo, fazendo uma acertada confusão que espelha a realidade! [57] .

Um outro exemplo, ainda mais sugestivo para o nosso caso: quem quer que se pergunte, filosoficamente, "O que, em si e afinal, é o amor?" deve atentar não só para as infinitas distinções de que as línguas grega, latina e neo-latinas dispõem, mas, sobretudo, para as riquíssimas possibilidades confundentes da língua alemã que, não dispõe senão de um único e confundente substantivo: Liebe.

Assim usamos Liebe para expressar a preferência por uma determinada qualidade de vinho, como também para designar o solícito amor por uma pessoa que está passando por dificuldades; ou ainda para a atração mútua entre homem e mulher; ou a dedicação do coração a Deus. Para tudo isto, dispomos de um único substantivo: Liebe. (...) Esta manifesta, ou simplesmente aparente, pobreza do vocabulário alemão oferece-nos uma oportunidade especial: a de enfrentar o desafio, imposto pela própria linguagem, de não perder de vista aquilo que há de comum, de coincidente entre todas as formas de amor [58] .

Por esse caminho, pôde Pieper chegar à caracterização do amor como aprovação e à sua genial formulação: Amar é dizer:

Que bom que você exista! Que maravilha que estejas no mundo!

 

Uma palavra final

Essa dependência da linguagem comum (que acompanha o pensamento e a realidade) faz do filosofar de Pieper um pensamento forte e saboroso, plenamente adequado a aquela intenção de abertura para a totalidade e, principalmente, pleno de sabedoria.

E se - como sempre faz JP - recordamos os antigos mestres do pensamento cristão, verificaremos que em sapere, sapientia se confundem os conteúdos semânticos de saber e saborear... e que talvez seja este o segredo do vigor e da perene atualidade do pensamento de Pieper: a sabedoria do erudito que coincide com a sabedoria do homem da rua...

Muito obrigado.

Obras de JP citadas:

(se não há outra indicação, trata-se de obra publicada pela editora Kösel, München)

Erkenntnis und Freiheit. Essays. München, DTV, 1964, 152 pp.

Was heisst Philosophieren? Vier Vorlesungen. 8ª. ed., 1980, 132 pp.

Menschliches Richtigsein. Die Kardinaltugenden neu bedacht. Freiburg, IBK, 1980, 16 pp.

Wahreit der Dinge. Eine Untersuchung zur Anthropologie des Hochmittelalters. 1951, 148 pp.

Nur der Liebende singt, Stuttgart, Schweibenverlag, 1988, 51 pp.

Über die Schwierigkeit heute zu glauben. Aufsätze und Reden. 1974, 332 pp.

Verteidigungsrede für die Philosophie. 1966, 152 pp.

Über das Ende der Zeit. Eine geschichtsphilosophie Meditation. 3ª. ed. revista, 1980, 160 pp.

Über den Begriff der Sünde. 1977, 136 pp.

Offenheit für das Ganze - Die Chance der Universität. Essen, Fredebeul & Koenen, 1963, 36 pp.

Was heisst Akademisch? Zwei Versuche über die Chance der Universität heute. 1964, 134 pp.

Tod und Unsterblichkeit. 1979, 208 pp.

Buchstabier-Übungen. Aufsätze, Reden, Notizen. 1980, 184 pp.

Lieben, hoffen, glauben. 1986, 382 pp. (reedição de Über die Liebe; Über die Hoffnung e Über den Glauben, con nuevo Vorwort)

Glauben, Hoffen, Lieben. Freiburg im Breisgau, IBK, 1981, 36 pp.

Unaustrinkbares Licht. 2ª. ed., 1963, 105 pp.

Thomas von Aquin: Leben und Werk. München, DTV. 1981

Noch nicht aller Tage Abend. Autobiographische Aufzeichnungen 1945-1964. 1979, 308 pp.

Lesebuch. 1981, 270 pp.

Glück und Kontemplation. 1957, 136 pp.

Hoffnung und Geschichte. 1967, 139 pp.

Überlieferung. Begriff und Anspruch. 1970, 120 pp.

Das Viergespann. 1964, 288 pp.

Lieben, hoffen, glauben. 1986, 382 pp

Menschliches Richtigsein. Die Kardinaltugenden neu bedacht. Freiburg, IBK, 1980, 16 pp.

Hoffnung und Geschichte. 1967, 139 pp.



[1] O que é uma universidade? Introdução à Filosofia da Educação de Josef Pieper, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo & Editora Perspectiva, 1987.

[2] Além, é claro, das diferentes teorias, concepções, paradigmas dentro de uma misma ciência...

[3] "Was ist dieses überhaupt und im letzten Grunde?" PIEPER Was heisst Philosophieren, München, Kösel, 1980, 8a. ed., p. 63.

[4] Teeteto 175.

[5] A conhecida sentença de Whitehead ("Remarks" Philosophical Review 46, 1937, p. 178) que Pieper cita con freqüência.

[6] "Über das Verlangen nach Gewissheit", in Erkenntnis und Freiheit, pp. 63-68.

[7] Was heisst Philosophieren?, p. 109.

[8] Naturalmente, como o próprio JP faz notar, não se trata no caso do filosofar - nem no de seu método- de "escolher" ("certamente não é algo assim como se se 'escolhesse' uma filosofia; em todo caso, o que Fichte quer dizer é claro e também acertado").

[9] Verteidigungsrede für die Philosophie, p. 28

[10] Eliot, T. S., Insight and Wisdom in Philosophy, p. 16.

[11] Como, por exemplo, nos livros Was heisst Philosophieren?, Menschliches Richtigsein. Die Kardinaltugenden neu bedacht e Wahrheit der Dinge.

[12] In Nur der Liebende singt, Stuttgart, Schweibenverlag, 1988.

[13] Nur der Liebende singt, Stuttgart, Schweibenverlag, 1988, p. 37.

[14] Über die Schwierigkeit heute zu glauben, p. 25.

[15] Verteidigungsrede für die Philosophie, pp. 116-117.

[16] Pp. 47 e 49.

[17] Pp. 14 e 15.

[18] Cfr. p. ex. http://www.hottopos.com.br/videtur9/renlaoan.htm, No. 3: "Poesia e Filosofia - Entrevista com Adélia Prado".

[19] . Prado, Adélia Poesia Reunida, São Paulo, Siciliano, 1991, p. 199.

[20] . Daí a duvidosa validade das pesquisas de opinião, quando se trata de questões da existência interior: "Precisamente aí é que reside a dificuldade inerente às pesquisas de opinião, quando o seu objeto diz respeito não à existência exterior, mas à interior. As respostas expressam aquilo que os entrevistados acham que pensam, enquanto sua verdadeira opinião lhes escapa e se esconde a tais apressadas pesquisas. "O senhor crê na imortalidade?" (este foi o tema de uma recente pesquisa internacional). Não é um resultado muito significativo o fato de que na Alemanha Ocidental, 47% dos entrevistados tenham respondido afirmativamente. O que realmente um homem pensa da imortalidade possivelmente só se tornará claro (talvez até para sua própria surpresa) num momento de abalo existencial; uma rápida entrevista tem pouca probabilidade de penetrar na dimensão em que se situam tais convicções".

[21] A este tema dediquei o livro O que é uma universidade? Introdução à Filosofia da Educação de Josef Pieper, São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo & Editora Perspectiva, 1987.

[22] Was heisst Philosophieren?, p. 62.

[23] Offenheit für das Ganze, p. 20.

[24] Offenheit für das Ganze, p. 20.

[25] Verteidigungsrede für die Philosophie, p. 76.

[26] PLATÃO, A República, 486a. "Ciência das cosas divinas e humanas" é, talvez, a mais clássica das definições de filosofia, mil vezes citada pelos antigos.

[27] Was heisst Akademisch?, p. 96.

[28] Tod und Unsterblichkeit, p. 17.

[29] "Zwei Weisen, 'kritisch' zu sein", in Buchstabier-Übungen, pp. 37 e ss.

[30] Glauben, Hoffen, Lieben. pp. 10-11. Certamente, JP distingue claramente entre fé e filosofar, pois este é tarefa "metodicamente disciplinada" do pensamento (Cf. Offenheit für das Ganze, p. 14).

[31] "Kreatürlichkeit. Über die Elemente eines Grundbegriffs", in Buchstabier-Übungen, p. 40.

[32] Por exemplo em Was heisst Philosophieren?, p. 12.

[33] Idem, pp. 72-73.

[34] PLATÃO, Banquete, 203.

[35] Was heisst Philosophieren?, p. 85.

[36] Unaustrinkbares Licht, subtítulo.

[37] Carta a LJL, 4.4.83.

[38] Cit. em Unaustrinkbares Licht, p. 38. Tal sentença (De Veritate, 10, 1) é surpreendente não quando se considera o próprio Tomás (nele freqüentemente se le "Principia essentialia rerum sunt nobis ignota" (In De Anima I, 1, 15), "formae substantiales per se ipsas sunt ignotae" (Quaest. disp. de spiritualibus creaturis II ad 3.), etc. - loc. cit.) mas os "epígonos racionalistas de Tomás" (La actualidad do Tomismo, p. 21).

[39] . "Wie heisst man wirklich?" in Über die Schwierigkeit... p. 322.

[40] Thomas von Aquin: Leben und Werk, p. 150.

[41] Thomas von Aquin: Leben und Werk, p. 27. Cf. também os episódios narrados em Noch nicht aller Tage Abend, pp. 121-122 e 90-91.

[42] Certamente, não só na linguagem. Como já dissemos, JP indica também, como depositários dessas informações essenciais que se escondem nas "grandes experiências": as instituições e modos de agir humanos.

[43] Prólogo a Lesebuch, pp. 5-6.

[44] "Über die Schlichtheit in der Philosophie", publicado em Erkenntnis und Freiheit, pp. 97 a 102.

[45] Um laboratório: naturalmente, não se trata de sempre aceitar e acolher tudo o que procede da linguagem comum, pois ela apresenta, por vezes, disfunções, como o próprio JP adverte.

[46] . "Wie heisst man wirklich?" in Über die Schwierigkeit... p. 322.

[47] Lieben, Hoffen, Glauben, p. 39.

[48] . Lieben, Hoffen, Glauben, p. 225.

[49] Pp. 201-202.

[50] Das Viergespann, p. 17

[51] Über die Hoffnung. Virtudes Fundamentales, Madrid, Rialp, 1976, p. 393.

[52] Menschliches Richtigsein... Estar certo enquanto homem - as virtudes cardeais

http://www.hottopos.com.br/videtur11/estcert.htm

[53] O edifício situado na rua tal, número tal.

[54] Aqui sigo as reflexões de Pieper em Verstehen, Freiburg im Breisgau, IBK, pp. 1 e ss.

[55] Hoffnung und Geschichte, München, Kösel, 1967, p.30.

[56] De Malo, 5, 1 ad 5. Todo este parágrafo se refere à análise que Pieper faz no Cap. I de Glück und Kontemplation, München, Kösel, 1957.

[57] "Gerade hierin aber, das der eine Name, Glück, so sehr Verschiedenes bennent (...) gerade in dieser immer wieder einmal verwirrenden Gleichnamigkeit bleibt ein fundamentaler Sachverhalt unvergessen und gewahrbar. Ich wage zu behaupten, dass er die Bauform der ganzen Schöpfung spiegle". Glück und Kontemplation, p.30.

[58] PIEPER, J. Glauben, Hoffen, Lieben, Freiburg, IBK, 1981, p. 24.