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Tempos de Sancho - A Constituição
Europeia e os Ventos da História

 

 

Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Universidade do Porto
Director do Instituto Jurídico Interdisciplinar, FDU
P

 

Sou europeísta desde sempre. Aos 18 anos, fundei uma associação de jovens europeístas, e participei em muitas iniciativas pela Europa fora, quando tal coisa ainda era uma novidade – e para muitos motivo de desconfiança. Talvez por isso mesmo, pelo meu velho sonho europeu, fui um dos primeiros críticos do processo de elaboração do Projecto de Tratado instituidor de uma Constituição Europeia, e também do essencial do seu conteúdo [1] . Não sobretudo por ser ele muito federalista (na pureza do termo), mas em certo sentido até por o ser de menos – por permitir excessivamente que os grandes se imponham aos pequenos, na persistência não de um vero espírito europeu, mas de uma lógica de nacionalismo camuflado. Burocracia, falta de igualdade entre os Estados, falta de autonomia jurídica, deficit de subsidiariedade – foram as minhas principais críticas.

Em Fevereiro de 2003 publiquei em livro - O Século de Antígona, Coimbra, Almedina - as minhas primeiras reflexões sobre o tema. Em Abril, participei num colóquio universitário em que expus as minhas posições quanto à Convenção. E depois de ter repousado um tempo quase horaciano na gaveta de um grande jornal, a 8 de Junho passado, quando muitos ainda estavam adormecidos para a questão, publicamente dei a conhecer as minhas críticas, que foram em crescendo – e que vários jornais e revistas acolheram, até que, pouco antes das eleições, comecei a enviar artigos que nunca vieram à luz do dia. Desde Junho de 2003, pois, discuti a questão, em Portugal e em congressos europeus – designadamente na Itália e na Grécia. A comunicação social portuguesa não deu a mais pálida ideia do que foram os sucessivos debates sobre a questão – e muito menos de quem os ganhou.

Finalmente, pela questão europeia aceitei candidatar-me ao Parlamento Europeu. Foi esse o meu principal tema durante a campanha eleitoral, em que tive ocasião de sublinhar publicamente (para espanto de alguns) que, sendo contra a Constituição Europeia, era federalista no puro sentido do termo, e, sendo liberal, era anti-neoliberal. Ou seja: sou social-liberal. É que nem só os extremos ditos “de direita” e “de esquerda” têm direito a criticar a Constituição Europeia – até porque a minha crítica é bem diferente.

Hoje, quando os governos adoptaram já o seu texto definitivo, impõe-se um balanço.

A História tem caminhos sinuosos e misteriosos. A Constituição Europeia codificada, voluntarista, voga com o vento da História a seu favor – é um facto inegável. A razão pode estar com os que perdem – creio que neste caso está - , mas a História faz-se com os que ganham. Isso lhes dá um fumus de razão… Terão razão a menos que haja uma catástrofe, e só mentes perversas e anti-europeias querem que uma catástrofe aconteça. Estão pois as pessoas de boa vontade, Portugueses e Europeístas, condenados a uma capitulação pacífica. Oxalá a uma reconciliação tranquila.

Perdi, como muitos perdemos, em toda a Europa, este combate. Lutámos por uma Europa mais participada, mais democrática, designadamente pelo referendo. Hoje, até o referendo é já supérfluo.

Porquê? Porque, por muito que custe, há que reconhecer que os Europeus já legitimaram esta Constituição – seja ela qual for no seu pormenor final.

Nem só a cidadania activa o é. Se nas eleições europeias o “partido de José Saramago” tivesse ganho as eleições, isto é, se os cidadãos se tivessem exprimido em branco, ainda se poderia pensar que recusavam as regras do jogo, e que seriam contrários a esta Constituição Europeia. Mas, na verdade, nunca tal sucederia. O leque partidário português e europeu tinha, “à direita, à esquerda, ao centro”, onde quisermos, vários partidos contra a Constituição Europeia. Portanto, seria de esperar que se uma cidadania efectiva quisesse mesmo ir contra este modelo, teria votado em partido e não em branco. Um mínimo de responsabilidade e oportunidade o imporia. Em eleições não há purismos desses.

O que ocorreu, isso sim, foi, em Portugal como em muitos países, um acto de cidadania passiva – respeitável, embora preocupante. Quem cala consente. Os Europeus consentiram. E em Portugal foi claro: 61% dos Portugueses consentiram passivamente nesta Constituição Europeia, e os que votaram PS, e Força Portugal - PSD/CDS/PP fizeram mais: votaram nela activamente. É uma larguíssima, esmagadora maioria.

Para quê referendar? É certo que a campanha eleitoral foi insultuosa, nada esclarecedora, que se fugiu ao problema, se nacionalizou o debate, se escamoteou a verdade, e se discriminaram alguns. Certo. Mas mesmo assim o Povo tem a obrigação de se informar. Os Políticos não são os únicos culpados, de quem se pode esperar tudo e dizer tudo.

Houve vários partidos que deixaram muito claro, ao menos nos tempos de antena na televisão, o que representaria a Constituição Europeia. Se os Portugueses não prestam atenção sequer aos tempos de antena, não podem queixar-se.

Não há agora que encontrar álibis, mas que pensar no futuro.

Doravante, nenhum partido terá qualquer futuro político se insistir na temática europeia como questão fracturante e de princípio. Resvalará inevitavelmente para o extremismo e o isolacionismo. Esquecerá que agora está em jogo, mais ainda, Portugal. E que as soluções para Portugal passam por definições de políticas claras, que têm de derivar de opções ideológicas claras também. O tempo do frentismo sincrético acabou.

Resta agora trabalhar por Portugal e pela Europa no quadro de uma Constituição Portuguesa revista que se subordina claramente à Constituição Europeia, e todo o nosso Direito ao Direito Europeu.

Doravante, lutar por Portugal tem como terreiro sobretudo Bruxelas.

Nem mais uma palavra sobre as questões de fundo da Constituição Europeia, da Soberania, mesmo da Autonomia.

Tudo mudou. Temos agora de trabalhar à europeia, de pensar em grande, de encontrar aliados europeus. Todos nós. Qualquer de nós.

A alternativa a uma colaboração construtiva na Europa que aí vem é apenas a dos velhos do Restelo. E, agora sim, opormo-nos ao empenhamento europeu construtivo seria uma atitude não só anti-europeia, como até anti-nacional. Houve um nobre quixotismo na nossa luta – embora os moinhos de vento fossem mesmo castelos. Chegou a hora de Sancho.

Os Lusitanos também perderam frente aos Romanos [2], e alguém duvidará que Portugal, só possível com a romanização, é muito melhor que a Lusitânia? Deixemos entrar o novo Império Romano. Ajudemos a construí-lo e a melhorá-lo. São os ventos da História.

Porto, 29 de Junho de 2004



[1] Cf., desde logo, o nosso artigo Introdução Constitucional à ‘Constituição’ Europeia, in “Videtur”, n.º 23, Agosto de 2003.

[2] A propósito desta questão, o nosso artigo Identidades, Etnocentrismos e Romance Histórico – Encontros e Desencontros no Brasil Nascente e nas Raízes de Portugal, in “Videtur”, n.º 25, 2004.