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Nota sobre Antropologia e Gramática
Prof. Dr. Paulo S. L. M. Barreto
Escola Politécnica, Universidade de São Paulo
A língua é, não raramente, depositária de grandes experiências vividas (LAUAND, 2002). Constata-se esta observação não apenas no uso do vocabulário, mas nas formas gramaticais preferidas em cada cultura e em cada época. Assim, a gramática descritiva de uma língua — a gramática efetivamente empregada na linguagem falada — pode revelar indícios da própria cosmovisão dos falantes dessa língua. É o que ocorre com o uso do aspecto verbal na língua portuguesa falada no Brasil.
Aspecto verbal (COMRIE, 1976) é uma categoria sintática que descreve a estrutura temporal interna de uma ação, manifestando o ponto de vista do qual o locutor considera a ação expressa pelo verbo (CUNHA; CINTRA, 2001). Esta categoria é pouco abordada na educação elementar no Brasil, e omitida ou tratada de passagem em diversas gramáticas normativas tradicionais (ALMEIDA, 1999; CEGALLA, 2000). Não se deve confundir o aspecto com a noção de tempo verbal, que marca a relação entre o tempo da ação e algum tempo de referência. Evidentemente, a noção de aspecto não está restrita a esta língua ou aquela, embora seja mais clara e detalhadamente indicada em umas que em outras.
Uma característica marcante da conjugação latina é a oposição entre dois aspectos verbais, o perfeito e o imperfeito (CART et al., 1986). O imperfeito indica, sugestivamente, que a ação é vista como incompleta, isto é, enquanto processo, não enquanto resultado. O perfeito, por sua vez, indica que a ação é vista como consumada, acabada (o termo acabamento, no contexto de construção civil, reflete bem a idéia).
Também a língua portuguesa falada no Brasil é profundamente marcada por nuances de aspecto (PARKINSON, 1987), embora esse fato passe despercebido à maioria dos falantes nativos, talvez porque a indicação de aspecto seja normalmente efetuada por locuções verbais em vez de formas sintéticas de conjugação [1] .
Levando isso em conta, é interessante a tendência corrente no Brasil de evitar o uso do perfeito — via de regra, é o imperfeito que se escolhe, e com freqüência multiplamente marcado. Mais interessante ainda, podemos dizer, é que esse curioso comportamento na escolha do aspecto apresenta um correlação com a postura diante de um compromisso, ou melhor, com a indisposição diante do comprometimento. Ninguém parece assumir o compromisso de que entregará a mercadoria no dia tal, ou de que terminará a tarefa em tantos dias, ou de que responderá a uma solicitação no devido tempo. O que se ouve mesmo é que “vamos estar entregando a mercadoria na semana que vem”, “vamos estar concluindo o trabalho em breve”, “vamos estar avaliando o seu pedido”... Para quem não fala português nativamente, o acúmulo de indicações do imperfeito deve soar chocante: vamos (um verbo que já sugere, obviamente, uma ação em andamento) estar (uma marca de transitoriedade, de condição não final) fazendo (gerúndio). A expressão “vamos estar entrando em contato” é uma pérola; aqui, o imperfeito é indicado ainda uma quarta vez, no próprio estabelecimento do contato (que, por assim dizer, nem “termina de começar”)!
Em síntese, a própria língua trai a tendência de não procurar levar nada à perfeição (indicada, é claro, pelo perfeito), suspendendo não meramente a conclusão de qualquer tarefa, mas o comprometimento em concluí-la.
Para encerrar, cumpre reconhecer que o cenário traçado acima não está completo.
O perfeito não se poderia deixar de usar quando necessário, isto é, para indicar a coisa feita, o fato consumado. Tal é o caso, por exemplo, das notificações de descumprimento dos compromissos (a bem da verdade, admitamos, não assumidos): “houve um atraso na entrega da mercadoria”, “não conseguimos concluir o trabalho no prazo”, “seu pedido foi avaliado e recusado”, “não tivemos oportunidade de contatá-lo”...
Referências
ALMEIDA, N. M. de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 44a. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
CART, A. et al. Gramática Latina. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP, 1986. Trad. e adap. de Maria E. V. N. Soeiro.
CEGALLA, D. P. Novíssima Gramática da Língua Portuguesa. 45a. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000.
COMRIE, B. Aspect: An Introduction to the Study of Verbal Aspect and Related Problems. Cambridge UK: Cambridge University Press, 1976.
CUNHA, C.; CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
LAUAND, L. J. Em Diálogo com Tomás de Aquino. São Paulo: Mandruvá, 2002.
PARKINSON, S. Portuguese. In: COMRIE, B. (Ed.). The World’s Major Languages. Oxford (UK): Oxford University Press, 1987. p. 260–278.
[1] Excetua-se aqui a distinção sintética de aspecto no pretérito. Mesmo assim, locuções verbais mais precisas parecem ser mais comuns que essas formas sintéticas.