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A Rede e as Redes - a Perspectiva
Sistêmica nas Ciências da Saúde

 

Luis Fernando de Mello Campos
lfmcampos@openlink.com.br

Yo soy yo y mi circunstancia
Ortega y Gasset

 

À primeira vista era ela uma velha gorda e alegre. Muito risonha, em cinco minutos de entrevista, na presença de uma meia duzia de médicos: professor e alunos, já tinha rido bastante. Entretanto, “o seu problema" era muito grave. Estava virtualmente condenada à cegueira: uma inflamação crônica (uveíte) havia resistido a todos os tratamentos tentados por sua oftalmologista. No entanto ria - e parecia espontânea.

No decorrer da anamnese foi emergindo um quadro extenso de descompensação. Insônia, obesidade, ressecamento da pele, micoses, catarata, descolamento da retina, falta de ar, hipertensão, fragilidade capilar, trombose, artrose, dores, alergias: uma lista infindável... No entanto ria. E sua história era tão assustadora quanto sua doença. Sua mãe fora expulsa de casa grávida. Nascera na Santa Casa e fora criada nos Expostos. Apesar de tudo fora saudável, com uns poucos episódios de alergia e de falta de ar com inseticidas. Casou-se, e aos dezesseis anos teve o primeiro de seus seis filhos. Sempre saudável; a vida equilibrada de gente pobre... Um dia, um passeio de barco. O barco virou e suas duas filhas morreram afogadas.

“Aí doutor, eu fiquei lelé da cuca...saí do ar... Os médicos me encheram de remédios. Meu marido deu para beber e começou a se meter com vagabundas. Passou a me destratar..." Nesse momento não consegue mais manter o riso...

No século XIII a. C ela teria ido à Escola de Asclépio, para que o iater cuidasse de seu ia, do seu grito de dor. Lá, seria encaminhada ao Templo e posta para dormir e sonhar. No dia seguinte, relataria seu sonho ao sacerdote para que este o interpretasse e lhe fizesse a prescrição adequada do iatreumata, a indicação terapêutica, que seria, então, administrada no Tholos de Asclépio.

Tudo dependeria do que os mensageiros dos deuses trouxessem ao seu sonho. O iatreumata poderia ou não ser um pharmacon, um remédio. Porque talvez ela apenas precisasse ouvir a lira e assistir ao canto do aedo para que as cenas traumáticas de sua vida ganhassem uma nova ordenação na cadeia significante. Mas poderia ter também necessidade de uma série de banhos, ou, ainda, de fazer ginástica e participar de jogos para resgatar o contato com o corpo já bastante deformado pelo peso de sua imensa dor.

Como no século XIII a.C. ainda não havia a separação corpo / alma trazida pela pólis, ela era thymós e pneuma, (conjunto de órgãos e sopro vital), sujeita aos desígnios da Moira. E, para o Iater, o que importava era a sua dor. Só mais tarde, com Hipócrates, um dos últimos asclepíades, institui-se a distinção reafirmada por todo o pensamento ocidental, que nos condenará a separar (e a tratar separadamente) o corpo do psiquismo, e a explicar a complexidade de seu sofrimento por uma combinatória de elementos simples relativamente isolados e independentes.

Hoje, para nós médicos, os impasses e limitações a que esta distinção nos levou já começam a se fazer evidentes. Para compreender a parte que nos coube desta herança - o corpo - , foi necessário um instrumental de análise que rompesse com os cânones da ciência clássica. Esses cânones nos condenavam a uma série de estratégias cognitivas ancoradas em um paradigma reducionista. Paradigma que erigia a simplicidade em requisito indispensável para que uma teoria científica pudesse atingir o princípio da realidade. Em outras palavras, sendo o real simples, a complexidade não passaria de uma ilusão, e os saberes que considerassem o mundo como complexo não pertenceriam ao âmbito da ciência.

Em consequência, para pensar, e de certa forma comprovar o real do corpo, foi necessária uma alteração desse plano de estratégias cognitivas e isso resultou em um questionamento dos níveis de realidade que a ciência se propõe a indagar. Quando se abandona a idéia de que uma realidade complexa pode ser decomposta (e entendida) pela combinatória dos elementos simples, os fios da teia, até então ininteligíveis, deixam entrever uma arquitetura e uma dinâmica dotadas de uma série de atributos, dentre os quais sobressai a natureza irredutível de sua complexidade sistêmica - o seu caráter estrutural -

Esta mutação conceitual foi, em boa parte, o resultado de novas possibilidades de calcular e mensurar formuladas pela informática e pelas ciências da natureza, o que resultou na ampliação substancial do leque de questões abordáveis por seus protocolos de investigação. E foi assim, através desta ruptura com o horizonte de legitimidade da ciência clássica, e de maneira análoga a da Física - onde os computadores tornaram exequíveis os cálculos matemáticos que permitiram a conceitualização dos sistemas caóticos, dos modelos de transição de fase e de outros novos objetos físico-matemáticos - que a Biologia passou a dispor de modelos teóricos que revolucionaram as concepções até então vigentes sobre a estrutura e a dinâmica dos seres vivos. Modelos relacionados com a termodinâmica (ordem de flutuação) e com a dimensão molecular (a estrutura das macromoléculas, do códico genético e dos mecanismos celulares de transmissão e recepção de sinais) constituiram o recurso que nos permitiu superar impasses e paradoxos decorrentes das insuficiências da visão tradicional.

O corpo passa agora a ser abordado a partir dessa perspectiva. Os resultados, ainda muito recentes, deixam entrever um outro corpo, radicalmente mais complexo e sofisticado do que pensáramos. Mais além de sua organização anatômica, que nos fornecia um modelo hierárquico sedutor: com níveis rígidos, compartimentados e lógicos, a introdução do paradigma da complexidade demonstrou a necessidade da inserção de dimensões adicionais e, mais do que isto, tornou pensável uma dinâmica organísmica. Essa dinâmica, fundamentalmente sistêmica, é determinada pela interpenetração de todos estes níveis, e, para ser compreendida, demanda o recurso a conceitos como os de sistema, estrutura, rede, informação, ruído, retroação e processos de auto-organização.

Assim, foi possível identificar os elementos e mecanismos do nível que determina os trâmites químicos e energéticos mediante os quais o corpo, em cada uma de suas células, constitui, regula, desregula e finaliza o seu existir. E, mais além do organismo considerado em sua individualidade, a compreensão dos mecanismos etológicos espécie-específicos, a caracterização do acoplamento estrutural de todo organismo ao meio em que habita, e a constatação da existência de uma relação inelutável com outras espécies foram fundamentais para desvendar a razão de ser de inúmeros comportamentos que, quando estudados nas situações artificiais de laboratório, tornavam-se incompreensíveis.

Ao subverter os conceitos tradicionais, a adoção do novo paradigma tornou imperativas a revisão radical dos conceitos de normalidade e patologia e uma reformulação dos critérios e procedimentos para o diagnóstico e a terapêutica nas ciências da saúde. Esta perspectiva deu ensejo a que se vislumbrassem novos fenômenos que, por sua vez, suscitaram novas questões relacionadas com o caráter organísmico de um corpo que se estrutura através de uma rede diversificada de ações e de mecanismos de controle.

Este corpo, que historicamente havia sido esquartejado e reduzido a uma simples combinatória de elementos, passou a ser compreendido como um sistema autopoiético, aberto e metaestável, isto é, um sistema que constitui a si próprio em uma relação permanente de trocas materiais e energéticas com o seu ambiente e capaz de múltiplos níveis de equilíbrio, determinados por inumeráveis modalidades de interação.

Desta forma, progressivamente, foi sendo revelado um cenário constituído por redes de interações em que informações bioquímicas, significativas e energéticas ultrapassam as fronteiras determinadas pela anatomia. Alguns mecanismos responsáveis por estas interações foram identificados, revelando uma lógica maquínica. Cabe destacar, em primeiro lugar, o dispositivo constituído por agentes químicos e receptores. Um hormônio, um neurotransmissor ou uma substância produzida por uma célula do sistema imune (uma citoquina) exercerão seus efeitos através de uma ligação (análoga à de uma chave com uma fechadura) com um receptor - uma proteína situada na membrana ou no interior de uma célula. A diversidade de efeitos é garantida pelo fato de que um mesmo agente químico pode apresentar diversos tipos de receptores e, mais ainda, porque alguns agentes podem ocupar receptores de outros.

Além disso, deve-se ressaltar que as células de cada um dos sistemas de controle (nervoso, endócrino e imune) podem sintetizar agentes químicos característicos dos outros (um glóbulo branco, por exemplo, pode produzir hormônios) e possuem receptores para virtualmente todos estes agentes químicos: o que configura uma rede de interações neuro-imuno-endócrina onde um hormônio (como a prolactina) determinará efeitos na imunidade e no comportamento e, analogamente, uma substância produzida pelos leucócitos - a interleucina - levará o organismo em certas circunstâncias a apresentar o comportamento de febre (elevação da temperatura, anorexia, astenia, algias e depressão).

Foi possível demonstrar que o sistema nervoso era responsável pela modulação das respostas imunes e que estas poderiam ser objeto de um condicionamento pavloviano clássico. Descobriu-se que as células efetoras do sistema imune possuiam receptores para neurotransmissores, e que estes, dependendo de suas concentrações, podiam inibir a sua replicação e atuação, o que explica a supressão da imunidade em situações em que há um forte componente emocional como, por exemplo, em casos de luto, depressão e ansiedade.

Mais recentemente alguns pesquisadores constataram a existência de correlações entre um tipo de substâncias químicas - os neuropeptídos - e os estados emocionais por que passa um indivíduo e também entre campos eletromagnéticos e responsividade imune, o que fez com que se reconhecesse que a rede neuro-imuno-endócrina é integrada por determinações psíquicas e mesmo eletromagnéticas (fala-se em imunologia comportamental, em psiconeuroendocrinoimunologia e em neuroimunomodulação).

Realmente, a utilização de citoquinas (interferon e interleucinas) no tratamento do câncer levou muitos pacientes a apresentarem alterações psíquicas (depressão, delírio e alucinações) e pesquisas realizadas com atores demonstraram alterações significativas no sistema imune correlacionadas aos padrões emocionais que eram suscitados pelos papéis que representavam E o que é mais surpreendente: pacientes psiquiátricos com um quadro dissociativo em que emergem múltiplas personalidades apresentam padrões bioquímicos diferentes para cada personalidade

Estas descobertas nos ajudam a ressignificar o quadro clínico apresentado por nossa paciente. Todo um conjunto heterogêneo de sinais e sintomas passa agora a fazer sentido. Ela, como muitos outros pacientes que acorrem a nossos consultórios, foi vítima de uma tensão insuportável, de uma sobrecarga que produziu uma ruptura em sua rede de significações e, como esta rede é inextricavelmente ligada à rede mais ampla, essa sobrecarga é veiculada para outros circuitos que, por sua vez, ao determinarem alterações de estados corporais, enviam para a rede de significações informações que redundarão em novos significantes.

Por outro lado é importante compreender que estes efeitos de rede podem ter diferentes origens e podem também seguir outras direções. Em outras palavras, também é possível que as alterações hormonais na gravidez, que configuram uma sobrecarga endócrina, possam provocar uma ruptura na rede de regulações imunoendócrinas (uma doença autoimune), acarretando, de maneira análoga, distúrbios psíquicos. Dado o fato de que os circuitos neurais são extremamente plásticos e dinâmicos, também não nos deve surpreender que o fato de que essa rede neuroimunoendócrina possa alcançar algum grau de reestruturação a partir de uma intervenção (psicanalítica) na rede de significação.

Sabemos também que os efeitos dos eventos disruptivos não dependem apenas de sua natureza ou de sua intensidade. Na verdade, toda uma constelação de fatores, equacionados singularmente em cada um, determinará a maior ou a menor vulnerabilidade a este ou a aquele evento, em um certo momento e sob a influência de um determinado contexto. Da mesma forma, as possibilidades de restauração ou de evolução para um outro estado de equilíbrio dependerão também de uma singular articulação entre recursos e carências da pessoa atingida e de seus homólogos nos dispositivos terapêuticos de que dispuser.

Por estas razões, ao constatarmos que os nexos causais que conduzem à enfermidade e à saúde são constituídos por fatores radicalmente heterogêneos, somos obrigados a colocar em questão a natureza e o alcance dos modelos de que as ciências naturais dispõem. De fato, herdeiras da tradição de simplificação, as estratégias cognitivas utilizadas para a compreensão dos objetos complexos primam por um tipo de tática que age de maneira análoga a de uma negação: tudo aquilo que for singular e único será devidamente descartado, para que possa emergir um tipo geral, uno, puro, logico e asséptico.

Uma vez que se abandona este ideal de um ponto de vista absoluto, a questão da elaboração de modelos teóricos aparece em sua dimensão constitutiva básica - a escolha -. A partir do momento em que se renuncia à simplificação, a consistência intrínseca de um modelo será correlativa à escolha dos tipos de singularidades que serão selecionados e ao cálculo das condições em que estas singularidades produzirão os seus efeitos. Sua validade, em consequência, estará determinada apenas por uma questão de circunstância, o que vale dizer que nossas teorias e respostas são relativas apenas às questões que decidimos formular e às condições que circunscrevemos para elaborá-las.

Hoje, defrontamo-nos com uma cartografia complexa, em que sucessivas corporações de ofício delimitaram seus territórios, configuraram seu espaço e seus objetos. Erigiram fronteiras teóricas e consagraram, através de uma produção discursiva sacralizada os meridianos dos campos teóricos em torno dos quais gravitamos. Por estas razões, uma reflexão sobre a questão das posições dos diversos profissionais de saúde e, por extensão, de seus respectivos instrumentos de teorização e de intervenção, não pode se limitar apenas à revisão e à flexibilização de suas respectivas definições e modalidades de atuação.

Vale portanto dizer que os profissionais de saúde – incluindo-se aí todos aqueles que se dedicam ao ofício de curar ou de mitigar o sofrimento humano – estão aprisionados em modalidades de conhecimento que refletem uma visão de mundo obsoleta, baseada em princípios que não mais se sustentam, uma vez que foram superadas pela descoberta das possibilidades de comprender e teorizar a complexidade do seu objeto de estudo.

Em verdade, para que se possa pensar e agir em conformidade com o que o novo horizonte descortina, além de elaborar novas teorias e modalidades de intervenção é indispensável poder aquilatar a medida em que essas teorias e intervenções participam (como objeto de valor) de um mercado: do intrincado interjogo de interesses que configura a dimensão institucional - a mais ampla das redes.

Referências bibliográficas