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Cultura Pós-moderna e Cristianismo
João Carlos Petrini
Diretor do Pontifício Instituto João Paulo II para
Estudos sobre Matrimônio e Família
Barrabás, símbolo do homem moderno
O romance do sueco Fabian Pär Lagerkvist, Barrabás, que ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1952, descreve de maneira sugestiva a dialética que acompanha todo o desenvolvimento da sociedade moderna, entre uma postura religiosa e uma racionalista. A obra apresenta Barrabás, uma figura marginal nos Evangelhos, preso nas masmorras do império romano, condenado à morte e inesperadamente libertado pelo clamor popular, que o preferiu a Jesus.
As personagens são dos primórdios do cristianismo, mas as questões levantadas são tipicamente modernas e a narrativa introduz o leitor no âmago do drama da liberdade diante do Mistério. O romance confirma a tese de Octávio Paz, de 1984, segundo a qual a literatura do século passado, muitas vezes irreligiosa e secularizada, não consegue se afastar do mistério, antes permanece a ele vinculada, como eixo de uma inevitável problemática, com a qual o homem do século XX se vê impelido a confrontar-se, mesmo que de maneira irreverente ou blasfema.
Lagerkvist (1952) apresenta o drama de Barrabás com uma linguagem simples e direta, numa sobriedade elegante, deixando entrever, por trás das cenas descritas, situações e posturas nas quais o leitor pode-se reconhecer. O romance, escrito como anotações sucintas dos acontecimentos relatados, deixa amplos espaços para que o leitor, movido por discretas sugestões, se envolva com a problemática.
Barrabás é apresentado como um bandido, violento e admirador da força, parricida, cioso de sua autonomia. Ele tem sua vida salva graças a Jesus, pois Pilatos o libertou em lugar do carpinteiro nazareno. Barrabás vive por causa de um outro que morreu em seu lugar e ele não sabe por quê. Experimenta uma irresistível urgência de compreender quem é esse por obra do qual está vivo, procurando compreendê-lo no horizonte explicativo de seu mundo, a partir dos critérios e dos valores com os quais está familiarizado. Ele é símbolo do homem moderno, com o qual guarda muitas semelhanças: este também é violento, pois construiu a civilização da qual se gloria ao clamor dos canhões, e é parricida, tendo eliminado o Pai do seu horizonte. O homem moderno reconhece no cristianismo a fonte dos valores que impuseram ao mundo a sua cultura e, como Barrabás, tem necessidade de compreender a origem da qual recebeu tudo o que tem de mais precioso. Procura enquadrar a tradição cristã nos esquemas da racionalidade iluminista mas, ao fazer isso, perde a possibilidade de abrir um verdadeiro diálogo com essa realidade [1] .
Sabendo que Jesus tinha dito que iria ressuscitar ao terceiro dia, o personagem de Lagerkvist se posta perto do túmulo para ver o que iria acontecer. De repente, um clarão deixa-o quase cego por alguns momentos. Em seguida, ele vê o túmulo vazio e encontra uma mulher que exulta de alegria, afirmando que Jesus ressuscitou. De início, ele pensa que está diante de uma situação extraordinária, que poderia explicar o que aconteceu nos últimos dias. Mas, logo em seguida, ele pondera que sua vista ficou ofuscada porque tinha permanecido muito tempo na escuridão da prisão e a primeira luz do dia certamente devia ter produzido aquela cegueira momentânea. E, regozijando-se interiormente por constatar que tudo estava dentro dos padrões da normalidade com os quais estava familiarizado, sentiu pena da mulher que, na sua simplicidade, estava alegre por algo irreal, quase certamente fruto de sua imaginação, sugestionada pelos acontecimentos dos dias anteriores.
Todo o romance é um contínuo suceder-se de idas e vindas entre uma irresistível exigência de saber se Jesus é realmente o Filho de Deus e a confirmação de que tudo corre de acordo com as leis da natureza e segundo as regras do poder. A cada página, ele parece atraído a juntar-se àquelas pessoas que conviveram com Jesus e que são estranhamente fascinantes, mas acaba por prevalecer a distância, sugerida pela visão da realidade à qual está acostumado.
Barrabás entrevista Lázaro, que Jesus ressuscitara, mas não se persuade da divindade do Mestre. A exaltação da humildade e da misericórdia feita pelos cristãos provoca sentimentos de repulsa num homem como ele, admirador da força e da violência. As circunstâncias o levam a uma mina do império romano, onde deve trabalhar amarrado com uma corrente de ferro a um escravo que era discípulo de Jesus. Barrabás fica impressionado pela transformação que observa no rosto do companheiro de desventura quando reza ajoelhado; ele admira a força interior que vê emanar desse homem que parece falar com Deus. Era uma força que Barrabás desconhecia e queria para si. Risca o símbolo de Cristo no verso da placa de identificação dos escravos, como estava na placa do amigo, mas não consegue rezar e chega a considerar tudo uma ilusão, toma as distâncias também desse companheiro e, por fim, o denuncia. É levado a Roma e quando ouve dizer que os cristãos estão tocando fogo na cidade, fica entusiasmado. Quem sabe, eles deram o passo para rebelar-se à prepotência romana e usar a violência para defender-se. Agora, sim, tem algo em comum com essas pessoas e pode fazer parte desse grupo. Ele também, então, começa a atear fogo à cidade.
O romance termina com Barrabás na prisão, junto com os cristãos. Sofre a maior decepção quando descobre que os cristãos negam sua responsabilidade pelo incêndio. O entusiasmo dele devia-se a um equívoco. Eles o reconheceram; a maioria olhava para ele com certa hostilidade, porque o amado Mestre morrera em lugar dele. Ele fica afastado de todos, solitário. Estranhamente, histórias e temperamentos tão distintos continuam entrelaçando-se. Apesar de todas as diferenças, a Barrabás e aos cristãos é reservado um destino semelhante. Com efeito, no final, ele também é crucificado. A cena guarda uma impressionante proximidade e, ao mesmo tempo, a maior distância com o que acontecera com Jesus em Jerusalém: no alto da cruz, ao dar o último suspiro, Barrabás grita: “Nas tuas mãos entrego o meu espírito”, que são palavras quase idênticas às pronunciadas por Jesus. Mas o autor marca a diferença dizendo que Barrabás emitiu o seu grito “dirigindo-se às trevas” e não “ao Pai” como fizera Jesus [2] . Na forma como Barrabás encerra sua aventura terrena, pode-se reconhecer uma alusão ao niilismo, que emerge como a última meta para a qual o homem moderno se encaminha.
Ascensão e queda da razão iluminsta
O homem moderno entende a razão como medida de todas as coisas, não admitindo outra autoridade para ter certeza a respeito dos diversos aspectos da realidade. O racionalismo teve início como tentativa de superar a superstição, a magia e, principalmente, os conflitos religiosos nascidos com o cisma protestante. Mesmo com variações entre posturas moderadas e outras mais radicais, ele declara que tudo o que está fora do território que a razão pode controlar, além dos limites de sua possível ação, não interessa à república dos letrados e não merece esforços de compreensão. O homem moderno considera fabulação tudo o que está fora do domínio da sua razão e, por isso, não lhe atribui qualquer importância, pois não pode ser conhecido e nem tem poder para influenciá-lo. A mulher com a qual Barrabás tinha-se encontrado e que afirmava ter visto Jesus vivo, parecia, à sua postura racional, fora de lógica e a alegria dela sem fundamento.
A sociedade moderna, entusiasmada com a capacidade da razão em dominar a natureza e resolver problemas práticos, perseguiu o objetivo de discutir o lugar da metafísica, como fez Kant (1967), que cuidou de apresentar “a religião nos limites da pura razão” ou, antes, Espinoza (1963), que procurou legitimar “a ética demonstrada segundo o método da geometria”, passando pela negação da legitimidade da metafísica e pelo ateísmo de alguns filósofos do século XIX, até a proclamação da morte de Deus (NIETZSCHE, 1985).
Um trecho dos Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 44 de Karl Marx delineia com clareza esse ideal de autonomia que, desde aquele tempo, até hoje, continuou crescendo e expandindo-se na cultura moderna:
Um ser se considera independente somente quando é dono de si, e é dono de si somente quando é devedor a si mesmo da própria existência. Um homem que vive da graça alheia considera-se como um ser dependente. Mas eu vivo completamente da graça alheia quando sou devedor para com o outro, não somente do sustento de minha vida, mas também quando este, além disso, criou a minha vida, é a fonte da minha vida; e a minha vida tem necessariamente um tal fundamento fora de si, quando não é a minha própria criação.
Mais adiante Marx conclui:
Sendo que para o homem socialista toda a assim chamada história do mundo nada mais é se não a geração do homem por meio do trabalho humano, nada mais que o porvir da natureza do homem, ele tem a prova evidente, irresistível, do seu nascimento através de si mesmo, do processo de sua origem (MARX, 1968, 122-125).
A afirmação da autogênese do ser humano parece necessária para proclamar a própria liberdade, que não poderia coexistir com o fato de depender de outrem. Isto é possível sob a condição de contradizer a evidência elementar de que nós não nos fazemos por nós mesmos, somos feitos, a começar pelo acontecimento da nossa geração por parte de outros. Ao proceder dessa maneira, o homem moderno provocou um problema que provavelmente não tinha previsto, que não estava nos seus planos, mas que originou a crise da modernidade, hoje universalmente reconhecida: ele reduziu o campo de atuação da razão, deixando fora de seu foco, ou censurando, uma porção muito significativa da experiência humana.
Realizou-se um grande desenvolvimento nos domínios das ciências e da técnica, mas o esforço para dominar a natureza e a história acabou conduzindo a razão a servir ao poder: econômico, militar, político e ideológico. Tendo abandonado as exigências elementares como ponto de referência para a sua atividade, restou à razão colocar-se a serviço do poder e do mercado. Aspectos importantes da realidade ficaram sob o domínio dos sentimentos e das emoções. Dessa maneira, expressões de irracionalismo, antes limitadas ao âmbito da vida privada, ganharam espaço público, até receber uma formulação ideologicamente elaborada e existência institucional. Acontecimentos históricos do século XX documentam as conseqüências trágicas desse fenômeno, em contradição com a maior parte dos ideais que marcaram a modernidade no seu nascedouro.
A sociedade moderna, então, não entra em crise por um excesso de racionalidade, que tornaria árida a convivência social, devendo-se dar mais espaço ao sentimento para equilibrar a situação. A sociedade moderna entra em crise por uma carência da razão, que não é mais capaz de dar conta de todos os fatores da realidade, de orientar suas conquistas para responder às exigências humanas. Com efeito, a razão não mais compara seus produtos com as exigências elementares do ser humano, com as exigências de liberdade, justiça, verdade, felicidade, e sim com as exigências do mercado, isto é, do lucro e do poder.
A Escola de Frankfurt elaborou a crítica mais consistente à razão de matriz iluminista, explicando as causas da sua crise. A expressão “razão instrumental”, usada por Horkheimer e Adorno em 1976, entrou na linguagem acadêmica e, depois disso, muitos autores dedicaram-se ao estudo da razão e da sua incapacidade de dar conta, numa sociedade complexa como a moderna, de todos os fatores da realidade. Nessa mesma linha, Horkheimer escreveu A eclipse da razão, onde se pode ler:
Na era industrial a razão tornou-se um instrumento, algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para avaliá-la. [...] É como se o próprio pensamento se tivesse reduzido ao nível do processo industrial, submetido a um programa estrito, em suma se tivesse tornado uma parte e uma parcela da produção. [...] O significado é suplantado pela função ou efeito no mundo das coisas e eventos. [...] A verdade e as idéias foram radicalmente funcionalizadas. A afirmação de que a justiça e a liberdade são em si mesmas melhores do que a injustiça e a opressão é, cientificamente, inverificável e inútil. Começa a soar como se fosse sem sentido, do mesmo modo que o seria a afirmação de que o vermelho é mais belo que o azul, ou de que o ovo é melhor do que o leite. Quanto mais emasculado se torna o conceito de razão, mais facilmente se presta à manipulação ideológica e à propagação das mais clamorosas mentiras (HORKHEIMER, 1976, p.27-32 passim).
“Deus, se existe, não interessa”: a crise da doutrina e da moral cristã
A preocupação de excluir do próprio horizonte qualquer realidade que estivesse além do alcance do paradigma iluminista levou o homem moderno a descartar problemas e realidades que o obrigassem a olhar para além dos limites traçados pela razão, para além do espaço que ele considerava legítimo e viável para a sua atuação. Em função disso, combateu a metafísica, entendida como um ramo da filosofia clássica, preocupada em investigar racionalmente o ser, isto é, a essência de toda a realidade, a origem de todas as coisas, a finalidade última, o significado exaustivo de tudo. O paradigma iluminista, na sua fase tardia, considerou destituídas de sentido, falsos problemas, não somente as respostas oferecidas pela metafísica a essas questões, mas as próprias perguntas, inibindo, dessa maneira, até mesmo a possibilidade de dialogar a respeito.
Os cuidados para manter afastados problemas que apontassem para uma dimensão transcendente, levaram a classe intelectual a desvalorizar questões relativas ao significado da vida e da morte, por que e para que existem as coisas, prevalecendo preocupações práticas e técnicas, relativas ao funcionamento, à utilidade, ao modo de fazer. Nesse clima, deve ser compreendida a batalha contra a idéia de pecado e, de modo especial, de pecado original, que foi desencadeada a partir do século XVIII (CASSIRER, 1992).
O homem moderno reconhece que tem falhas, imperfeições, erros, no entanto ele cultivava a certeza de poder corrigir, pelo progresso da ciência, pelo desenvolvimento do conhecimento, essas imperfeições. A razão estaria à altura da redenção do homem, do aperfeiçoamento da sociedade, ela seria capaz de sanar seus males. Por isso, não pode admitir o pecado, isto é, uma raiz de mal, uma ferida que somente um poder divino poderia curar. Reconhecer o pecado significa abrir espaço para um Salvador, para alguém de fora do horizonte humano, para a presença de alguém misericordioso, que perdoa e restaura a vida. É exatamente isso que o homem moderno procurou evitar.
No início da modernidade, os valores morais próprios do cristianismo foram acolhidos e valorizados enquanto eram submetidos a um processo de secularização, para depurá-los dos aspectos especificamente religiosos. Os valores originários do cristianismo, retirados do terreno no qual haviam crescido, separados da raiz religiosa que os alimentava, rapidamente se esgotaram, como observou Romano Guardini, em O fim da época moderna (GUARDINI, 1993). A própria figura de Jesus Cristo não foi rejeitada. Ele foi aceito, porém não mais como Deus encarnado, mas como o maior mestre de moral. Quando não é combatida como força regressiva, causadora do atraso e da alienação, inibidora do desenvolvimento científico e do progresso social, a religião é esvaziada de seus conteúdos próprios, sendo-lhe reservada a função de retórica ornamental e de agência moralizadora.
Hegel observa que o homem moderno percebe uma profunda divergência entre a inteligência e a religião, e acha que se essa profunda divergência não for removida, precipita-se no desespero”. [...] É derrubada a parede divisória entre religião e conhecimento [...] chegando-se assim à coincidência entre religião e filosofia. [...] Segundo Hegel, a religião não seria outra coisa que a filosofia mesma, em forma incipiente, ingênua, imatura (MONDIN, 1997, p.95-97).
O Iluminismo tinha limitado a aventura da razão ao espaço da finitude, mas o romantismo reabriu a questão do absoluto, propondo de novo o problema da relação entre o finito e o infinito. Hegel tenta resolver essa questão e dedica-se ao estudo da religião e da figura de Cristo, compreendido como modelo de moral e como figura que concilia finito e infinito. A interpretação hegeliana reduz o homem-Deus a simples momento do processo do pensamento humano e a realidade histórica de Cristo ao caminho que cada homem e a humanidade inteira devem percorrer em si mesmos para tornar-se espírito, para adquirir plena consciência de si. O divino é, assim, entendido como totalmente imanente à história. A conciliação entre finito e infinito realiza-se na história e sua máxima expressão é o Estado, última realização do destino humano. Todavia, o preço dessa “conciliação” é a negação do valor do finito, da pessoa humana concreta, que é sacrificada à totalidade (BORGHESI, 1983).
“Nessa altura já estavam colocadas todas as premissas para transformar a filosofia em ciência, a teologia em antropologia, a religião em ateísmo” (MONDIN, 1997, p. 97). É o que ocorre logo depois de Hegel, com Feuerbach, Comte, Marx, Engels, Nietzsche e outros. O processo mais eficiente de secularização, contudo, foi realizado através da coincidência entre o funcionamento da estrutura e da ética, num terreno mais amplo que a reflexão filosófica, tanto no liberalismo quanto no socialismo, podendo alcançar, a partir desses modelos teóricos, toda a realidade social.
Com efeito, tanto o mercado capitalista quanto o sistema socialista são, ao mesmo tempo, modelos econômicos e modelos éticos. O bom funcionamento dessas estruturas (concorrência perfeita ou planejamento global, capaz de manter sob controle o maior número de variáveis) se encarregaria de proporcionar, simultaneamente o máximo de produtividade (ou de lucro) e o máximo de felicidade, independentemente das intenções subjetivas, da tensão moral e ideal para viver a justiça e a fraternidade (PETRINI, 1999, p.16).
Foi ganhando espaço na sociedade uma postura chamada de ‘laicismo’ que inicialmente se restringia a um grupo de intelectuais. Segundo esta postura, Deus, se existe, não tem relevância para a realidade concreta, ou, de acordo com a fórmula de Cornélio Fabro, “Deus, se existe, não interessa” (FABRO, 1997, p.109). Deus fora afastado da realidade humana, para além das nuvens, “no céu”, e o cristianismo era identificado com a doutrina e com a moral. A doutrina ficava sempre mais estranha à mentalidade dos modernos, parecendo alheia aos problemas reais da existência. Na etapa inicial da modernidade, a moral cristã era considerada funcional aos interesses do capitalismo emergente, garantindo o respeito e a aceitação das normas que regulamentavam a convivência social. Num segundo momento, sob a pressão de diversos fatores, a moral cristã parecia apresentar mais problemas do que soluções para uma sociedade que necessitava de outros valores e de outros direitos, quase sempre divergentes dos consolidados na tradição cristã. Assim, o cristianismo deixou de ser funcional ao moderno processo produtivo.
Até a Segunda Grande Guerra, a controvérsia entre a sociedade secular e a Igreja referia-se a algum ponto da moral, enquanto era aceita a arquitetura “cristã” da existência. Discutia-se, por exemplo, o divórcio, mas se aceitava o matrimônio monogâmico, discutia-se o uso da pílula, mas se aceitava a relação entre sexualidade, amor e procriação. Era apenas uma etapa de um longo processo que iria desembocar, em breve tempo, numa nova antropologia, mais correspondente aos novos parâmetros valorativos.
Niilismo, última etapa de um itinerário
A perspectiva otimista da cultura do século XIX, alimentada pelo avanço do conhecimento científico e suas maravilhosas conquistas e pelo hegelismo, que parecia divinizar o homem e a história, encontrou uma crítica impiedosa na filosofia de Nietzsche. Ele mostrou que o projeto do racionalismo ocidental constituía uma monumental mentira. Recusou uma racionalidade arrogante e uma moralidade abstrata e negadora da vida, que identificava com o cristianismo, nas formas por ele conhecidas no ambiente familiar durante a infância. A civilização ocidental já tinha concluído o percurso que conduzia ao niilismo, mas não sabia sustentar o peso das conseqüências. Será ele a anunciar: “Deus está morto! Nós o matamos”. O super-homem será capaz de sustentar a falta de sentido e de afirmar a própria vontade de potência, na opção por uma autonomia que luta com Deus, entendido como antagonista e inimigo do homem.
Nietzsche anuncia o fim da racionalidade, entendida como reflexo da verdade das coisas. Ao pensamento, ele atribui apenas a tarefa de ser “escola da suspeita”, tensão para desvelar, atrás de conceitos universais, a máscara de interesses particulares. Renuncia-se, nessa perspectiva, à visão clássica da razão como abertura ao ser e como capacidade de elucidar a natureza das coisas. Isto torna impossível o acesso a certezas indubitáveis. A verdade, então, não mais se apresenta como a manifestação da evidência do ser à subjetividade, mas como um produto da “vontade de potência”. “O problema da verdade transforma-se assim em problema de forças” (BARTH, 1971, p.262). Nietzsche faz também uma crítica radical da moral, ele não acredita em valores eternos. Segundo ele, os valores são o resultado de uma produção do homem e afirma que é preciso destruir a moral para libertar a vida. Os valores passam por um processo de “transmutação”. “O que é bom?”, pergunta Nitzsche, respondendo em seguida:
Tudo o que intensifica no homem o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mal? Tudo o que provém da fraqueza”. [...] “É por puro preconceito moral que atribuímos maior valor à verdade do que à falsidade”.
Ponto de chegada dessa postura só poderia ser um niilismo radical:
“[...] falta o fim, falta a resposta, o por quê, [...] o devir não tem em vista nada, não se alcança nada. [...] O mundo é uma realidade destituída de sentido e de valor (apud MACHADO, 1999, p.78).
No tempo presente, estamos diante da mais ampla difusão do niilismo na sociedade. Não se trata, no entanto, do niilismo trágico como o de Nietzsche, inquieto na busca de um sentido. Hoje estamos diante de um niilismo soft, que esquece a pergunta do significado e a substitui com uma consideração banal da realidade. Tentou-se silenciar, ou não considerar, os aspectos da existência que, mesmo de forma indireta, pudessem remeter para uma realidade transcendente. A cultura de massa, em decorrência disso, especializou-se em oferecer produtos culturais cuja marca principal é a banalidade e certa retórica da vulgaridade. Seria necessária uma investigação empírica para compreender o grau de influência dessa cultura da banalidade no vertiginoso aumento da violência urbana nestas últimas décadas. Afinal de contas, “O relato sobre a banalidade do mal” de Hannah Arendt, realizado em 1999 por ocasião do processo contra o criminoso nazista Eichmann, constitui uma hipótese que lança uma ponte entre a banalidade e a violência, que abre um itinerário de investigação e de explicação.
Seria essa a origem da desafeição para com a realidade, tão presente na cultura atual, e da busca do sonho, da “viagem”, ou de um mundo virtual?
Uma mutação antropológica
Em poucas décadas, sob o efeito de diversos fatores convergentes, tais como a revolução sexual, a difusão da cultura de massa e a influência dos meios de comunicação social, as possibilidades oferecidas pela manipulação genética, as mudanças na organização da produção, com o advento da informatização e a automação dos processos produtivos e com a prevalência no mercado do capital especulativo “volátil”, de alta rentabilidade, configurou-se um cenário cultural e social no qual floresce uma imagem de homem e de mulher radicalmente diferentes dos anteriores. Alguns autores falam de uma “mutação antropológica” (Scola, 1999, p.316), isto é, de uma visão alternativa e global do homem e de todos os aspectos mais profundos da sua existência.
A mudança que atinge a maneira de compreender o ser humano constitui um processo complexo, do qual são indicadas algumas etapas mais significativas. Começa a prevalecer um dualismo antropológico que separa como mundos distintos o corpo e o espírito. O corpo passa a ser considerado como um material bruto, sem significado pessoal intrínseco e dominado pelo determinismo das leis biológicas e psicológicas. O espírito, representando o mundo da liberdade, da busca da paz interior, da integração cósmica e da elevação mística, estaria justaposto ao corpo, seguindo suas próprias exigências. A mudança mais relevante se verifica no campo da sexualidade que, na nova perspectiva, pode ser vivida sem a abertura à procriação. Este fato retira da sexualidade a característica de ser premissa para constituir uma relação de responsabilidade recíproca, que dure no tempo, capaz de acolher e educar a eventual prole. O exercício da sexualidade perde a exigência de um vínculo estável, em vista de um projeto comum de vida, enquanto conserva o caráter de fonte de prazer. O aspecto lúdico, sempre presente na expressão da sexualidade, acaba por ser a única dimensão que define seu valor, eliminando qualquer responsabilidade da pessoa com o parceiro dos jogos sexuais.
Nesse quadro, o matrimônio e a família perdem significado. Diversas agências da ONU tornaram-se caixas de ressonância dessa mentalidade e, nas Conferências de Cairo e de Pequim, defenderam novos direitos, mais condizentes com a emergente imagem de homem e de mulher, de sexualidade e de maternidade. Os “novos direitos”, no entanto, que são defendidos como sinal de uma maior liberdade (ao aborto, à eutanásia, etc.), constituem na realidade a mais sutil submissão à lógica do mercado, que coloniza todos os espaços da vida, difundindo seus critérios contábeis, de cálculo, de conveniência, do intercâmbio de equivalentes, emergindo como critério fundamental para a tomada das decisões a avaliação de custos e de benefícios (PETRINI, 2000).
A divergência da antropologia, até então aceita, pode ser percebida pelo relatório de Monsenhor Renato Martino, observador do Vaticano junto à ONU: “O princípio de que a sexualidade é inerente à relação conjugal foi tratado nas Conferências do Cairo e de Pequim como uma inútil relíquia do passado. [...] Também a sacralidade da vida foi posta em ridículo e ofendida” (MARTINO, 1997, p.76).
A procriação também pode ser realizada sem o concurso da união sexual sendo, assim, assemelhada à produção de uma mercadoria. Com efeito, a fecundação pode ser obtida através de técnicas de laboratório, não sendo mais necessária a relação sexual. Com o desenvolvimento da clonagem, não será necessário nem mesmo o concurso de um elemento masculino e um feminino. A procriação pode acontecer fora do ambiente da intimidade sexual entre um homem e uma mulher, vivida como expressão do amor, assumindo todas as características de uma produção industrial.
A vida humana não mais é compreendida como relação com o Infinito e por isso inviolável, inegociável. A vida e a morte passam a ser negociadas politicamente e submetidas à aprovação da maioria ou ao arbítrio do indivíduo. A vida humana que começa e a que termina, dentro dessa visão, podem ser suprimidas, sempre que os interesses em jogo assim o preferirem. O embrião não passa de aglomerado de células, podendo ser submetido a qualquer tipo de manipulação. O corpo reduz-se a instrumento de trabalho e de lazer, perdendo outras dimensões.
Diante desse novo cenário desenhado pela cultura pós-moderna, o Papa manifestou muitas vezes sua preocupação, convidando cristãos e “homens de boa vontade” a retomar o desígnio de Deus sobre a pessoa, o matrimônio e a família, para participar do debate em curso, tendo como ponto de partida a visão cristã do ser humano na sua versão mais original. No “Evangelium Vitae” n. 28, ele afirma:
Encontramo-nos diante de uma batalha gigantesca e dramática entre [...] a morte e a vida, entre a cultura da morte e a cultura da vida. Encontramo-nos não apenas “diante”, mas necessariamente no meio desse conflito: todos estamos envolvidos e tomamos parte nele, com ineludível responsabilidade para decidir incondicionalmente em favor da vida (JOÃO PAULO II, 1995, p.57).
O desígnio de Deus sobre a pessoa, o matrimônio e a família
O Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família vem trabalhando, há mais de vinte anos, para compreender essas mudanças e para elaborar uma antropologia adequada às exigências humanas originárias, tendo em vista o diálogo com quantos estão atentos à evolução sociocultural. De modo sucinto, são indicados, a seguir, alguns dos temas mais significativos que vão construindo essa nova perspectiva de reflexão (A BÍBLIA de Jerusalém, 1981, p.34).
O objetivo principal é elucidar o desígnio de Deus sobre a pessoa, o matrimônio e a família, tomando como ponto de partida a narrativa da criação, do livro do Gênesis. Esse relato, de um lado, valoriza a relação do ser humano com o Criador, do qual é imagem e semelhança e, de outro, valoriza a diferença sexual como originária, pois “homem e mulher o criou”(Gn 1, 27). Estão assim articuladas e integradas a dimensão espiritual e a corporal do ser humano, que se afirma como uma união indissolúvel de corpo e de alma (corpore et anima unus). A inquietação relacionada ao desejo de infinito e a busca da felicidade que caracterizam o ser humano de todas as épocas, como a poesia e a arte documentam amplamente, podem ser levadas a sério, abrindo o espaço para a transcendência.
Nesse quadro de referência ao corpo (e à diferença sexual que o caracteriza) é atribuído um significado simbólico, com valor de sinal e expressão da pessoa. Esta é reconhecida como um ser consciente, racional e livre, que traz em si uma vocação originária ao amor, fundamento da dimensão social do ser humano. Com efeito, só na companhia de seus semelhantes ela encontra as condições necessárias para o seu desenvolvimento e para a sua realização, a começar pelo matrimônio e pela família. A pessoa, assim compreendida, é sujeito de uma dignidade absoluta, que não depende de nenhuma qualificação e possui direitos inalienáveis e deveres morais que a colocam como razão de ser de todas as instituições sociais, políticas e econômicas. É apenas o caso de lembrar que é impossível construir a realidade social como ordem, na liberdade e na justiça, quando esses direitos inalienáveis são conduzidos no horizonte do mercado, negociados de acordo com interesses de grupos.
Os estudos teológicos do Instituto estabelecem um nexo entre a revelação divina e a experiência humana que contribui para a renovação de um horizonte metafísico de tipo existencial. Abre-se, dessa maneira, a possibilidade de percorrer um itinerário, antes impraticável, para falar da pessoa, da sua liberdade, da comunhão interpessoal, em analogia com as relações intratrinitárias e do amor esponsal como dom de si no corpo, à imitação de Jesus Cristo que se doou no corpo para a vida do ser humano.
a) Homem e mulher - A diferença sexual introduz o ser humano na consciência de uma deficiência e de uma solidão originárias, na evidência de uma fragilidade radical que poderia desembocar na extinção da própria espécie. Estes limites o impelem à busca e ao conhecimento do outro de si, do diferente, para o qual sente-se atraído e junto do qual pode enfrentar positivamente seus limites. A consciência de si, da própria identidade, nasce do encontro com o outro, que se realiza através do corpo, sexualmente diferenciado. A autoconsciência nasce da reflexão sobre a experiência que pessoalmente cada ser humano faz de si e dos relacionamentos que estabelece com toda a realidade e com o outro sexo. Deficiência, solidão e fragilidade são insuperáveis sem o concurso do outro, que começa a ser percebido como possibilidade de resposta, de solução ao próprio drama. Nesta perspectiva, a sexualidade emerge como condição, como fator fundamental da própria identidade de ser humano.
O ser humano não pode existir sozinho, mas somente como unidade de dois e, portanto, em relação com uma outra pessoa. A diferença homem-mulher é compreendida, então, como a expressão de uma originária unidade dual que implica e valoriza simultaneamente a identidade e a diferença. A mesma dignidade e os mesmos direitos qualificam a identidade do ser humano que aparece na história sempre e somente como homem e mulher, mesmo quando essas categorias parecem culturalmente confusas.
Para compreender o significado da sexualidade humana é necessário, antes de mais nada, deixar falar o dado, ao mesmo tempo fenomenológico e ontológico, que nenhum homem (ou nenhuma mulher) pode ser por si só todo o ser humano: ele tem sempre diante de si a outra maneira de ser, a ele inacessível. Uma alteridade que é diferença distingue o homem a causa de sua natureza sexuada. Também sob este aspecto, manifesta-se inevitavelmente sua contingência (SCOLA 2002, p.32).
A diferença sexual é originária, constitutiva do ser humano, essencial à sobrevivência da espécie, inscrita em cada cromossomo. Ela foi elaborada culturalmente ao longo das gerações, quase sempre em função do jogo de poder entre os sexos. As imagens e os modelos de comportamento masculino e feminino, fruto de circunstâncias históricas determinadas, podem ser colocados em discussão, como de fato está acontecendo, em busca de uma maior correspondência com as exigências de igualdade e de participação. As relações entre os sexos constituem, neste sentido, um interessante entrelaçamento de natureza e cultura.
b) Antropologia dramática - Esta compreensão do ser humano na sua corporeidade sexuada situa-se no horizonte da antropologia dramática. Afirma Von Balthassar, (1992, p.317): “[...] não existe outra antropologia a não ser aquela dramática”. O drama nasce do fato de que o ser humano se move na cena do mundo sobre a qual deve representar a sua parte. Todavia ele compreende que deriva de um primeiro ato não escrito por ele e do qual não participou e se move em direção ao último ato, do qual não conhece o script, não sabendo como terminará. Quando reflete sobre si mesmo, o sujeito individual encontra-se já em ação na cena do grande teatro do mundo. Ele não escolheu começar a existir, no entanto, encontra-se na situação de ter que escolher para edificar uma existência que busca inevitavelmente a sua realização. Como a linha do horizonte, a realização da própria humanidade parece afastar-se quanto mais procura aproximar-se dela (SCOLA, MARENGO e LÓPES, 2000, p.59-60). Move-se na cena do mundo, devendo escolher entre uma ampla gama de possibilidades. “Talvez não há outro ser vivente a tal ponto dilacerado entre alternativas” (STEINBECK apud BALTHASSAR, 1992, p.320). “[...] não pode sair do curso da ação dramática na qual se encontra desde o nascimento, não pode sair para finalmente ponderar sobre o que jogar. Ele já está no jogo sem que alguém jamais tenha perguntado a ele se quer jogar; já recita de fato uma parte, mas qual?” (BALTHASSAR, 1992, p.323).
A unidade dual de homem-mulher, alma-corpo, indivíduo-comunidade, está na origem do drama humano, com efeito, subtrai a pessoa ao determinismo biológico e chama em causa a sua liberdade como último ponto de definição da autoconsciência. A filosofia e a literatura documentam este drama, expresso com diversidade de acentos ao longo dos séculos. Na cultura pós-moderna, no entanto, assume especial importância o esforço para negar o drama, procurando eliminar as perguntas que o alimentam. (BALTHASSAR, 1992, p.335-370).
c) O Mistério nupcial - Mistério nupcial é um dos conceitos mais importantes elaborado pelos teólogos da sede central do Pontifício Instituto João Paulo II para Estudos sobre Matrimônio e Família. Retomando uma antiqüissima tradição, já do Antigo Testamento, o conceito indica não somente a relação nupcial entre um homem e uma mulher, mas, por analogia, a Aliança entre Deus e o povo eleito. Por mistério nupcial, entende-se:
[...] de um lado a unidade orgânica de diferença sexual, amor (relação objetiva com o outro) e fecundidade, de outro, refere-se objetivamente, em virtude do princípio da analogia, às diversas formas do amor, que caracterizam quer o homem-mulher com todos os seus derivados (paternidade, maternidade, fraternidade, sororidade, etc.), quer a relação de Deus com o homem no sacramento, na Igreja, em Jesus Cristo, para chegar até a Trindade mesma (SCOLA, 1998/2000).
Deixando a outros a tarefa de desenvolver os aspectos especificamente teológicos, pode-se compreender o coração da nupcialidade, como a unidade de amor, sexualidade e procriação. Aqui está a originalidade do conceito, que apreende sinteticamente aspectos antropológicos fundamentais, resgatando a unidade que, desde os primórdios da história até poucas décadas atrás, constituiu o eixo da relação homem-mulher, ao redor do qual organizaram-se o matrimônio e a família e, como conseqüência, relações de cooperação e de solidariedade entre os sexos e entre as gerações. Na diversidade das formas que estas realidades assumiram e no meio de contradições que se verificaram, a nupcialidade sempre permaneceu como o núcleo central ao qual se deve atribuir a origem de dinâmicas sociais que desenharam as diversas civilizações.
Na sua acepção mais simples, nupcialidade indica uma relação entre um homem e uma mulher caracterizada por uma certa qualidade. Refere-se à elaboração de um projeto de vida comum que contém, em seu horizonte, a possibilidade de procriar filhos, de acolhê-los e educá-los. A simpatia e a atração entre um homem e uma mulher, que encontram na relação sexual a expressão mais plena, se orientam para a partilha estável da globalidade da existência, a ponto de constituir um casal socialmente reconhecido, caracterizado pela comunhão de habitação, de tarefas, de recursos, em vista da edificação de uma realidade comum, que encontra no matrimônio e na família a sua plena realização. Viver a paternidade e a maternidade no horizonte da nupcialidade, aceitando o empenho de educar a prole, produz mudanças relevantes não apenas na identidade das pessoas envolvidas e nas responsabilidades assumidas, com alterações significativas na organização quotidiana da existência, mas também na sociedade. A rede de relações familiares assim constituída cria espaços de gratuidade e de solidariedade entre os sexos e entre as gerações. E no tecido fino destas relações são transmitidos e consolidados valores, critérios de juízo, crenças, ideais, atitudes, que tornam a vida em sociedade mais ou menos civilizada.
O conceito de nupcialidade indica não apenas um certo tipo de relação homem-mulher, caracterizado pelo envolvimento e pelo dom recíproco de si, pela atenção ao destino do outro mais que ao próprio interesse. Indica também uma postura diante de toda a realidade, uma atitude humana carregada de afeição, atenta para aceitar e valorizar a alteridade, a diferença. Nasce, assim, um modo de relacionar-se com as pessoas, com a natureza e com o mundo dos objetos, compreendendo cada realidade no horizonte de totalidade da qual recebe significado. A nupcialidade sugere um olhar positivo sobre a realidade, capaz de reconhecer a finalidade do objeto, por exemplo, de um rio, de um bosque, de um animal, para além do interesse imediato que mede a sua utilidade. São Francisco de Assis, no seu Cântico das Criaturas, dirige um olhar nupcial sobre todas as criaturas, até mesmo sobre a realidade da morte, desejoso de admirar, acolher, respeitar. No pólo oposto à nupcialidade, situa-se a relação ocasional entre o homem e a mulher, no exercício de uma sexualidade que reduz ao mínimo os vínculos inerentes ao relacionamento. A cultura atual valoriza modelos de relacionamentos caracterizados pela parcialidade, que se limitam a aspectos particulares e envolvem interesses determinados, para um tempo limitado, em vista da maior utilidade.
Na cultura contemporânea, não será um conjunto de circunstâncias biológicas, técnicas e culturais que poderão induzir as pessoas a viver a sexualidade no horizonte do amor nupcial, como pode ter acontecido no passado. A nupcialidade, entendida como união de amor, sexualidade e procriação, poderá ser vivida somente como conseqüência de uma livre decisão, que nasce da compreensão da sua importância para a própria realização.
Referências
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[1] É interessante notar que o Iluminismo exalta a “Luz” e o “Logos”, que são palavras do evangelho de São João, mas os significados, evidentemente não coincidem.
[2] No relato da Paixão segundo São Lucas, Jesus diz: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. (Cfr. Lc 23, 46).