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Educar a Razão: Educar o Homem Todo

 

Marli Pirozelli N. Silva
pirozelli@fei.edu.br

 

Tratar da educação da razão nos dias atuais parece estar na contramão de todos os estudos que propõem uma abordagem mais complexa do homem.

A preocupação em educar a razão ao contrário do que possa parecer numa aproximação inicial, não constitui um fechamento ou a reafirmação de uma tradição intelectualista totalmente oposta a exigência atual de uma formação integral, mas diz respeito ao cerne de qualquer proposta educativa.

Desenvolver a inteligência emocional, educar a sensibilidade, possibilitar o desenvolvimento de inteligências múltiplas são exemplos de diferentes abordagens do mesmo objeto, ou seja, expressam o esforço intelectual empreendido ao longo da história para compreender o homem em sua complexidade, procurando não reduzi-lo a um único aspecto.

Por que então insistir na educação da razão?

1 –Quem é o homem? A razão em questão

Quem é o homem? O que o constitui? Ao procurarmos a resposta para estas questões passamos a nos movimentar num terreno instável, composto por respostas superficiais, afirmações subjetivas ou doutrinárias que não resistem a uma reflexão cuidadosa sobre a experiência pessoal e nos remetem ao domínio da incerteza.

Nada deve ser afirmado sobre esta questão, que é a única realmente decisiva para o homem. Resta apenas a hesitação ou algumas afirmações tênues e convencionais, que não valem o sacrifício da vida. O homem não sabe quem é, não sabe para onde vai, qual é o sentido dos pequenos e grandes fatos que se sucedem em sua existência e, mais grave ainda, afasta estas questões de seu horizonte no cotidiano, tornando-se uma pálida imagem daquilo que está chamado a ser.

Inconsistência, incapacidade de criação e de assumir responsabilidades são alguns dos sintomas do obscurecimento da consciência do homem atual. Como afirma Hanna Arendt “a redução do homem a um feixe de reações o separa, com a mesma radicalidade de uma doença mental, de tudo o que nele é personalidade”.1

Esta constatação, longe de diminuir nossa crença no valor do homem, impele-nos a trabalhar de modo mais determinado, compreendendo o contexto cultural em que estamos mergulhados, nossos limites e potencialidades.

O que é então, próprio da natureza humana? De acordo com o grande pensador Tomás de Aquino “o ser do homem propriamente consiste em ser de acordo com a razão. E assim, manter-se alguém em seu ser, é manter-se naquilo que condiz com a razão.” Em outra sentença Tomás afirma que “o primeiro princípio de todas as ações humanas é a razão e quaisquer outros princípios que se encontrem para as ações humanas obedecem, de algum modo, à razão”. 2

Mesmo no interior de um contexto hostil ao florescimento de uma consciência plena, os fatores constitutivos da natureza humana podem ser atestados na experiência pessoal de cada um.

Razão e liberdade: eis os fatores que constituem o homem. Esta afirmação não parte de uma abordagem teórica, mas do reconhecimento de que o homem é o nível em que a natureza toma consciência de si mesma.

Por que vale a pena viver? Qual é o sentido da vida? Por que existem a dor e a morte? Qual é a razão do sofrimento humano? Estas perguntas revelam o dinamismo da razão em busca da verdade, da  compreensão do sentido da existência e de toda a realidade. São perguntas perenes ou fundamentais, expressas ao longo do tempo pelos gênios da literatura e da arte, são perguntas inextirpáveis, pois constituem o próprio tecido da nossa consciência. Ainda que estejam obscurecidas pela vida social, estas perguntas não podem ser eliminadas pois estão enraizadas no nosso ser e repropõem continuamente a pergunta última que define o homem como tal. Elas “exprimem a urgência de encontrar um porquê da existência, de todos os seus instantes, tanto das suas etapas salientes e decisivas como de seus momentos mais comuns. Em tais perguntas, é testemunhada a razão profunda da existência humana, pois nelas a vontade a inteligência e a vontade do homem são solicitadas a procurar livremente a solução capaz de oferecer um sentido pleno à vida. Esses interrogativos, portanto, constituem a expressão mais elevada da natureza do homem; por conseguinte, a resposta a eles mede a profundidade do seu empenho na própria existência”.3

O desejo de compreender o sentido último da existência, que chamamos de  senso religioso, manifesta-se através destas inquietações, é a expressão da própria natureza da razão e está na raiz de todo movimento humano, identificando-se com a fonte, a energia que provoca, sustenta e redefine o movimento dos povos no decorrer da história. O homem é homem porque não cessa de interrogar-se sobre o sentido do mundo e não apenas porque é capaz de agir sobre ele, ou moldá-lo de acordo com suas necessidades.

A presença do homem na natureza introduz um fator peculiar e único: a consciência e o afã de significado. O senso religioso é então, a pergunta da totalidade que constitui a razão, isto é, a capacidade que o homem tem de conhecer, de penetrar a realidade em busca de seu significado total. Ele está presente em toda e qualquer posição humana, pois mesmo sem ter consciência disto o homem afirma através de seus atos cotidianos a existência de um “quid” pelo qual vale a pena viver.

O desenvolvimento das ciências naturais, da antropologia, da filosofia e de todo o universo do saber comprovam a exigência de sentido, a incansável busca de respostas dentro de um campo limitado da realidade.

2 - A razão em busca de sua realização

O processo de secularização que teve início na Idade Moderna e atingiu o ápice no Iluminismo foi o grande responsável pela redução do conceito de razão que chegou até os nossos dias. A razão passou a ser concebida como medida do real, uma categoria limitada pela capacidade humana de demonstração empírica ou pela lógica. A razão, ao contrário, é um olhar aberto para a realidade e pode ser definida como a “capacidade de dar-se conta do real segundo a totalidade dos seus fatores”, é a abertura para acolher todas as possibilidades contidas na complexidade e multiplicidade do real.4

Quando é compreendida como exigência de significado a razão recupera sua real dimensão e a categoria da possibilidade - tão cara à pesquisa científica- que havia sido suprimida na concepção anterior é reintroduzida.

O que busca então a razão? Nada menos que a realização total. Nada menos que o Infinito. O objeto para o qual se dirige toda a energia humana sempre está além daquilo que nossa capacidade pode atingir. O senso religioso expressa a necessidade de uma resposta totalizante, capaz de abarcar completamente o horizonte da razão, de exaurir a categoria da possibilidade, mas há uma desproporção entre o horizonte último e a capacidade humana de atingí-lo.

A desproporção em relação à resposta total é assim descrita pelo poeta italiano Leopardi em seus Pensamentos: “..mas o fato de não se satisfazer de nenhuma coisa terrena, nem,por assim dizer, da Terra inteira; de considerar a amplitude inestimável do espaço, o número e a imponência maravilhosa dos mundos e descobrir como tudo é mísero e pequeno diante de nossa alma; de imaginar infinita e a quantidade de mundos, o universo infinito e sentir que nossa alma e nosso desejo são ainda mais vastos que tal universo; de acusar continuamente as coisas de insuficiência e nulidade e padecer angústia e vazio e, portanto tédio, parecem-me o maior sinal da magnitude e da nobreza da condição humana.”5

A vida é sede de um objeto que pode ser reconhecido pelo homem, mas permanece sempre além dele. Daí a facilidade em identificar o objeto último – a realização -com os aspectos parciais que podemos alcançar – as realizações.6 Com efeito, depois da quebra da unidade operada pelo Iluminismo, o homem passou a aspirar ao sucesso e à realização de aspectos setoriais como trabalho, família, finanças, espiritualidade, saúde e outros, esquecendo-se que o problema central da vida consiste em reconhecer um ideal que dê sentido a todos estes aspectos e colocar-se em caminho nesta direção.

Infelizmente, o homem atual renunciou à a busca da realização de si mesmo em sua totalidade (nem mesmo cogita tal hipótese)e contenta-se em equilibrar com êxito o maior número de setores, entendendo que o máximo que se possa almejar á a realização simultânea dos vários setores de sua vida. É sintomático que a espiritualidade hoje seja concebida como um dos setores a serem satisfeitos pelo homem, ou seja, uma entre tantas partes que compõem o homem. Até mesmo neste campo o homem deve ser bem sucedido, contando para isto com  métodos específicos oferecidos por uma vasta literatura de auto ajuda. Como nos ensina Pieper: “Todo desejo de felicidade do homem, por menores que sejam as satisfações em que se possa perder, se orienta infalivelmente para uma satisfação suprema que é o que na realidade ele procura”, mas constatamos que a mentalidade predominante leva-nos ao esquecimento desta exigência original.7

Desta forma, fixamos nosso olhar e dirigimos nossa energia na direção de objetos particulares, imediatos e palpáveis, calando a exigência profunda de realização total do humano inscrita em nossa razão, a qual busca expressar-se através da satisfação destes objetivos.

3 - Indicações para a educação da razão

Não é difícil perceber as conseqüências do obscurecimento da razão ou do senso religioso.

“Estamos sob o domínio da confusão e do desconcerto, da falta de referências claras, da falta de critérios claros para decidir operativamente, para assumir as responsabilidades da vida. É um mundo no qual a identidade do eu parece cotidianamente posta em crise: um eu inconsistente, incapaz de criação, incapaz de responsabilidade. Entorpecido pelos acontecimentos que o solicitam continuamente”.8

Conhecemos de perto a violência do poder, do terrorismo, da miséria e da injustiça, assim como todo o anseio e dedicação do homem para modificar estas circunstâncias. O desenvolvimento da tecnologia e da pesquisa científica atestam o trabalho e a fenomenal capacidade humana de interrogar, descobrir a realidade das coisas, utilizar a  herança recebida  e transformá-la em benefício da vida, mas revelam também a desorientação quanto à finalidade última. Por vezes, a tecnologia e a ciência são alçadas à condição de causa última, trazendo conseqüências imprevisíveis para a humanidade, já que elas tornam-se um fim em si mesmas e não admitem nenhuma orientação ética. Daí decorre a importância de promover uma educação voltada para o uso pleno da razão, compreendida em seu sentido mais amplo como abertura a todos os fatores da realidade.

Isto pode concretizar-se em todos os níveis do processo educativo, da infância até a idade adulta através de propostas que estimulem a observação de si e da realidade. É preciso estimular a tomada de consciência de si mesmo, não através de reflexões que partem de uma imagem da própria pessoa, mas da observação de si mesmo em ação nas circunstâncias cotidianas.

Além disto é preciso afirmar uma hipótese explicativa unitária para a realidade. Não se pode exigir decisão e maturidade se não afirmamos claramente uma proposta, uma forma de ver toda a realidade a partir de um ponto unitário, em oposição à concepção fragmentada da vida humana que predomina atualmente. Cabe ao educador afirmar o valor pelo qual vive de maneira explícita, revelando as razões daquilo que lhe parece bom e verdadeiro, pois isto permite uma tomada de posição clara por parte do educando.

Educar é avivar o desejo que constitui a razão, para que ela reconheça em todas as circunstâncias os fatores originais do homem, levando em conta o senso religioso e sua inevitável busca de satisfação plena.

É também apontar a precariedade das soluções parciais, ainda que estas respondam às necessidades justas e a permanência do desejo, que estruturalmente compõe o homem, buscando os nexos de cada ação com o sentido último de sua existência.

Esta é a grande tarefa que temos, cujo resultado não está em nossas mãos possuir, pois, “reconhecer que somos feitos de inquietude e que em nosso coração pesa um desejo de infinito é uma maneira de afirmar a liberdade incondicional de nossa vida e a maior dignidade que o ser humano pode almejar”. 9

Notas

1 – Cf. Pino, Stefano A. Abraão : o nascimento do eu, Rímini, 2001, p.18.

2– Cf. Lauand, Jean  Razão, Natureza e Graça – Tomás de Aquino em Sentenças, S.Paulo, Edix-FFLCHUSP, 1995, p.47.

3 – Carta Encíclica Fides et Ratio de João Paulo II, S. Paulo, Paulinas, p.47.

4 – Giussani, Luigi – O Senso Religioso, R.J.,Nova Fronteira, 2000, p.31

5 -  Cf. Giussani, Luigi – O Senso Religioso, R.J.,Nova Fronteira, 2000, p.75

6 – Sobre este tema ver Lauand, Jean “Mother Mary Comes to me - a Radical Insegurança da Condição Humana” http://www.hottopos.com/mp2/mothermary.htm

7 -  Pieper, Josef Felicidade e Contemplação - Lazer e Culto, S. Paulo, Herder, 1969, p.11.

8 – Pino, Stefano A. Abraão : o nascimento do eu, Rímini, 2001, p.6.

9 – Navarro, Jorge - Las Preguntas Perennes – http://www.hottopos.com/notand7/jorgenavar.htm