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“Serviços de Natureza Sexual”

(artigo enviado para publicação em 15-06-03)

 

Maria Cristina Castilho de Andrade

Agente das Pastorais da Mulher e Carcerária na Diocese de Jundiaí – SP, autora de “Nos Varais do Mundo/Submundo” pela Editora Loyola e responsável pela Comissão de Prevenção à Violência Sexual
Infanto-Juvenil do CENDUS (ONG jundiaiense)

 

Está em debate o Projeto de Lei do deputado federal Fernando Gabeira (PT) dispondo sobre a exigibilidade de pagamento por serviço de natureza sexual e suprimindo os arts. 228, 229 e 231 do Código Penal.

Segundo Gabeira, na justificativa ao projeto, ele se inspira no exemplo da Alemanha que, em fins de 2001, aprovou uma lei que tornou exigível o pagamento pela prestação de serviços de natureza sexual e, também, suprimiu do Código Penal Alemão o crime de favorecimento da prostituição. Afirma que “o Legislativo brasileiro possui maturidade suficiente para debater a matéria de forma isenta, livre de falsos moralismos que, aliás, são grandemente responsáveis pela degradação da vida das pessoas que se dedicam profissionalmente à satisfação das necessidades sexuais alheias”.

É bom ressaltar que, no Brasil, o exercício da prostituição não é considerado crime. Crime é o ato de explorar a mulher prostituída, ganhar dinheiro às custas dela.

No último dia 05 de junho, o jornal “Folha de São Paulo” publicou no suplemento “folhaequilíbrio” interessante matéria sobre o novo enfoque que as empresas modernas estão adotando com o intuito de melhorar o desempenho e a satisfação de seus funcionários. Para refletir sobre questões existenciais e valorizar o autoconhecimento em prol da produtividade, essas empresas promovem seminários onde são discutidos valores humanos, promovendo e auxiliando cada um a descobrir sua missão no mundo. O funcionário é visto além do seu aspecto profissional, ou seja, em sua integridade física, mental, emocional e espiritual. “Pensar, sentir e querer” representam a base de treinamentos de funcionários, realizados pelas empresas.

Os principais conceitos da espiritualidade corporativa, apresentados no suplemento “folhaequilíbrio” são: inspiração e ciência; criatividade e emoção; saúde e bem-estar; liderança eficaz; mudança organizacional; responsabilidade social e a verdadeira riqueza, que se trata de harmonizar os valores materiais e financeiros com a riqueza e o valor não-materiais (social, ecológico e espiritual).

Já que, de acordo com o citado Projeto de Lei, a prostituição passaria a ser considerada oficialmente como profissão, perguntamos: é possível o desenvolvimento desses conceitos na implantação da prostituição como profissão? Os proxenetas estarão preocupados em harmonizar os valores materiais e financeiros com a riqueza e o valor não materiais? Imaginemos um Seminário dirigido para o autoconhecimento de uma mulher prostituída, no sentido de que ela desempenhe melhor sua função, aumentando os lucros do proxeneta. As palestras seriam voltadas para o tema: “Meu corpo é de domínio popular. Ofereço-me para ser sugada e, no ‘tempo de bagaço’, reconheço, sem dor alguma, que serei jogada na sarjeta”. Ou será que não é essa a realidade? No caso de meditação, a mantra seria “Nada” ou “Proxeneta”.

No Boletim Informativo da Pastoral Nacional da Mulher Prostituta ou Marginalizada, “Madalena”, de março de 2003, a jornalista Priscila Siqueira, comenta que as organizações internacionais que trabalham com a questão da exploração comercial e sexual de mulheres e crianças como a Federação Abolicionista Internacional – FAI, ou a Coalizão contra o Tráfico de Mulheres – CATW, admitem que a legalização ou a regulamentação da prostituição não é a resposta para a exploração e o tráfico de mulheres e crianças.  De acordo com a FAI, é um cheque em branco que se dá para a indústria da prostituição poder ganhar ainda mais, expandir seus mercados e aumentar a exploração de mulheres e crianças. Em toda a Europa, é na Holanda e na Alemanha - países em que a prostituição é legalizada - que acontece a maior venda de mulheres e crianças para a indústria do sexo.

É evidente que a tramitação desse Projeto deve depender da opinião da maioria das mulheres prostituídas, filhas da violência sexual infantil, da miséria ligada à promiscuidade, do uso indevido de drogas ilícitas. Mulheres prostituídas e ex-prostitutas, que integram a Pastoral da Mulher da Diocese de Jundiaí – SP, foram ouvidas sobre o projeto de lei do deputado Gabeira e manifestaram-se, unanimemente, contrárias à proposta, com as seguintes justificativas: não vêem a prostituição como uma profissão que possa ser imitada pelas filhas, mas sim como um caminho temporário, decorrente de situações familiares difíceis, do desemprego, da falta de preparação para inserir-se no mercado de trabalho, da dependência de drogas; usaram o termo “sujar” a carteira de trabalho, no caso de ser registrado: “prostituta”, nome que desejam no anonimato e, no futuro de suas vidas, no esquecimento; mesmo com a prostituição regulamentada, as mulheres continuarão sendo discriminadas; o Projeto oficializa a situação dos cafetões ou proxenetas, que representam mais um poder sobre elas; aumentará a exploração da mulher em situação de miséria, pois o proxeneta será sempre aquele de maior poder aquisitivo e com muito mais chance de ser ouvido pelos diferentes setores da comunidade a que pertence; a mulher será obrigada a aceitar todos os tipos de fregueses e a responder às suas taras, para não desobedecer ao “patrão”.

Responsável pela implantação da Pastoral da Mulher da Diocese de Jundiaí - SP, em 1982, mas acompanhando essa realidade na rua, a partir de 1967, tenho, impregnados em mim: gritos de mulheres exploradas, pisoteadas, maltratadas; anseios que foram destruídos, quando o pai lhes invadiu o corpo; justificativas infeccionadas das que se sentiram com culpa por serem objetos de violência; corações sangrando por homens que pensaram que ficariam; o medo dos exploradores; a aspiração indeclinável de que as filhas não repetissem o mesmo caminho-descaminho; o terror dos instintos animalescos que feriram a alma; a angústia da queda, logo depois do aplauso nos palcos ilusórios; a tristeza da luz cinzenta das praças ébrias; o pavor do círculo de morte que é muito difícil romper; crateras existenciais pela impossibilidade de exercer sua verdadeira missão na História.

Projetos de Lei que asseguram o direito dos mais fortes, no caso, daqueles que favorecem a prostituição, tornam mais frágeis as meninas e as mulheres; Projetos de Lei que oficializam o uso do corpo, que contém alma machucada, no atendimento a interesses egoístas, não tornam melhor um povo e um país.

Na verdade, a degradação da vida das pessoas está no uso dela pelo poder ditatorial, diferente do poder ensinado por Jesus Cristo, em favor da felicidade de todos os seres humanos: o poder como serviço, o lava-pés.