Home | Novidades | Revistas | Nossos Livros | Links Amigos Renascimento e Barroco na Pintura Europeia Fragmentos de uma Galeria Pessoal
Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Univ. do Porto
Introdução
A Pintura Europeia, enquanto pintura do continente europeu, existe, certamente, desde que homens como os de Foz do Côa, Altamira, Lascaux... marcaram com objecto riscador em suporte idóneo traços da memória de si e das suas angústias.
Desde essa Pré-História esteticamente tão próxima de nós, muito caminho se percorreu. A Antiguidade, salvo excepções, pelo seu carácter cívico que sempre prefere o monumental, preteriu a pintura em favor da escultura e da escultura arquitectonicamente integrada. A Idade Média deslocou a pintura do mundo fenoménico para o mundo da fé. Há aí também uma Pintura Europeia, e em certos casos com clara homogeneidade continental, mas não se encontrará plena enquanto reflexo do espírito europeu. E em todos os casos referidos, a Pintura é ancilar e, independentemente da sua qualidade, não é considerada no imaginário comum muito acima das artes mecânicas.
Vai ser com o Renascimento, com os Renascimentos, e a Modernidade que a Pintura se assume como Arte com dignidade autónoma, e se dá conta da sua componente técnico-científica, e reflexivo-especulativa, como “cosa mentale”. Essa dimensão confere-lhe a maioridade enquanto expressão artística por excelência da eterna e intrínseca inquietação e indagação europeias.
Os apontamentos que se seguem dão apenas testemunho de alguns marcos pessoalmente significativos na nossa história pessoal da pintura. As ausências são muitas, mas as presenças podem ser exemplares de um percurso.
I. Giotto, um fundador
Giotto da Bondone insere-se no período comummente considerado pré-renascentista, do Trecento italiano, séc. XIV, na escola de Florença, tendo sido miticamente encontrado por Cimabue. A hagiografia italiana (é curioso que a historiografia artística anglo-saxónica, e até alemã sejam mais reticentes) deifica-o e considera que com ele se tem de abrir um novo capítulo na História da Arte, e especificamente na história da pintura (Gombrich, por exemplo, di-lo, mas, embora não o contradite completamente, não abre efectivamente tal capítulo). Mas por toda a parte proliferam as deificações. Entre nós, um dos excursos do Cavaleiro da Dinamarca de Sophia de Mello Breyner não deixa de o apresentar, o que é significativo (e não contraditório) numa autora tão profundamente impregnada pelo classicismo, designadamente helénico.
Giotto, tal como depois Donatello, era um homem do povo, e ao contrário, por exemplo, de Simone Martini (que cria nas suas composições religiosas um espaço irreal de elitismo aristocrático, identificando o divino e o socialmente nobre: patente no colorismo doirado da Anunciação), tem da divindade uma visão muito mais humanizada, e, pode dizer-se, franciscana. Grande parte das suas composições serão ilustrações da vida do poverello de Assis, de que foi uma espécie de arauto icónico. A influência de uma cosmovisão franciscana é fundamental para a compreensão da sua obra. Mas nela ficam coenvolvidos os problemas da própria interpretação do franciscanismo... questões que não são pequenas, e que enontram inusitados contributos em autores aparentemente laterais para o tema, como Henri Lepage e Michel Villey.
Por outro lado, ao nível estético, não se preocupa com a beleza (com um ideal de esteticismo perfeccionista), mas com um tipo de veracidade de uma rusticidade suavizada por uma espiritualidade difusa na forma, mas profunda na substância. De facto, sendo um homem de espiritualidade, e tendo posto o seu pincel ao serviço da causa apologética franciscana [1] Giotto faz-nos descer das abstractas figuras medievais, todas simbolismo, para uma arte humanizada. Não só pela forma, como até pela temática (mesmo temas religiosos como o de Joaquim e os pastores são tratados com tocante humanidade).
Um dos pontos em que os autores não se encontram de acordo, embora por vezes seja subtil o seu desentendimento, é nas fontes de Giotto, bem como na presença dos influentes no seu próprio trabalho de maturidade. Uns apresentam-no como claro superador da maneira grega, o mais distante possível do ícone, ao contrário da linha seguida pela escola de Siena. Outros, não deixam de nele ver (e ainda no seu realismo de base, que não contestam) a influência de pelo menos uma estadia em área de influência bizantina, e querem considerar a importância dessa aportação.
Sem desejarmos desempatar nem fazer irenismo deslocado, cremos ser fundamental, por um lado, a influência da sua mais directa circunstância (desde logo o ar de Florença e Cimabue...) mas sobretudo as suas preocupações próprias, designadamente o impacto da escultura na sua obra (por exemplo, a Fides do templo dell’Arena é já uma representação escultoricamente concebida), as suas angústias espaciais (que o levam a uma “perspectiva” empírica, mas muito eficaz: L. Venturi disse, a esse propósito algo como – “o artista não segue as regras, o artista cria as suas própria regras” – e as suas próprias regras, mesmo com carneiros e homens de dimensões relativas duvidosas, são eficientes). Mas, por outro lado, razão tem Gombrich quando, libertando-se também dos lugares comuns sobre o ícone e a arte bizantina, tenta compreender como poderá estabelecer-se uma ponte entre o velho e o novo. Com efeito, a arte grega e icónica, tem ainda, ao contrário do gótico, ocidental, reminiscências da técnica do helenismo. E nos rostos de alguns ícones ainda se pode descortinar algum claro-escuro, tal como nessas composições descarnadas e voláteis haverá ainda um fumus de perspetiva. Ora, sugere Gombrich, a partir desse legado poderia um génio inovador criar ou recriar o que na Europa ocidental se perdera.
Sem envolver uma opção pró- influência bizantina, esta ideia de algum modo explica como pode ter havido até uma confluência de legados, sintetizados pela capacidade inovadora de Giotto. Aliás, o problema das influências deve, pelo menos in casu, ser preterido pelo das motivações, já que o homem de talento, e a fortiori o de génio, tal como dizia Paul Valéry do leão, alimentam-se de carneiro...
Abra-se ou não um novo capítulo na História da Arte, Giotto coloca problemas muito interessantes, porque os coloca noutro nível: e aí está toda a espiral da História...
Giotto é realista, é o primeiro dos realistas depois de um tempo de simbolismo e abstraccionismo hoc sensu. Mas nem por isso é fotográfico, nem sequer nos coloca problemas de matemática construção do espaço. Também ao nível da estrutura da composição parece “ingénuo”, embora tenha subtilezas escondidas, e processos cuja simplicidade é só aparente: como o recorte no fundo, como a organização dos planos, etc... O que Giotto essencialmente nos recorda é a dupla qualidade do desenho: interior e exterior. O desenho que é divindade e modo de investigação do Renascimento, assume desde logo em Giotto a característica que Leonardo reivindicará para a pintura: a de coisa mental. Com efeito, o que conta mais para o nosso pintor é a concepção e a decisão, a inventio retórica da obra, logo, o desenho interior.
E independentemente do gosto e das soluções, esse encontro do artista com a utopia da sua obra parece essencial e um legado que merece não mais ser olvidado.
II. Leonardo e Miguel Ângelo: dois clássicos
No fresco dito d' A Escola de Atenas na Stanza della Segnatura, seguindo um procedimento normal na época, Rafael empresta a face de Leonardo a Platão, e, provavelmente por imposição última do Papa, ou do seu círculo próximo, concede ao fundo da escadaria um lugar estranho para um bisonho Miguel Ângelo. No Juízo Final da Capela Sixtina, o Buonarroti coloca o seu rosto no de S. Boaventura, aquele que havia sido esfolado e que na composição surge segurando a sua própria pele.
Quantos não têm visto na Gioconda o auto-retrato de Leonardo? E não poderemos pensar que o Moisés de Miguel Ângelo é, afinal, uma espécie de auto-retrato do artista?
Tais são as pistas simbólicas e iconológicas que emblematicamente colocamos à nossa reflexão. E alguns paradoxos, ou pelo menos aparentes contradições, desde logo se levantam.
Embora a História da Arte (bem como as diferentes historiografias em que o autor é particularmente importante: desde logo a historiografia literária, por exemplo) tenha claramente superado a tradição biografista, que se desenhara desde Vasari, e de algum modo até Wölfflin (embora prolongando-se "em contra-ciclo" depois deste), a verdade é que não existe arte desgarrada dos seus concretos produtores. No início do seu volumoso estudo sobre Miguel Ângelo precisamente (mais biográfico e de época que propriamente crítico), Giovanni Papini insurge-se veementemente contra a ausência do autor em estudos destas áreas.
Ponderada a sua importância contextual (no social, na linguagem e evolução própria das formas, etc.), não se pode resistir a comparar as personalidades de Miguel Ângelo e de Leonardo e de transportar um tal estudo psicológico para as suas respectivas obras.
Leonardo é um homem do mundo, de uma curiosidade sem limites, de um apuro e inventiva artística e técnica que se dividiu por diversíssimas matérias, com uma personalidade forte, mas dúctil, capaz de compromissos e de diplomacias. Há em si uma facilidade natural para todas as coisas, que não negando o "honesto estudo" quase faria dele um diletante se não houvesse sido um pioneiro em muitos aspectos. Dele se diz que não se interessava pelas coisas senão enquanto lhes não vislumbrava a solução. E daí o ter deixado inacabados grandes projectos: não só alguns dos seus estudos de engenharia mecânica (e até de aparelhos voadores), de hidráulica, como também de escultura (veja-se o célebre cavalo que tanto esperou por concretização), ou de pintura (lembremo-nos do cartão da batalha em Florença que serviria depois a Rubens de inspiração-modelo). A sua passagem pela vida é enigmática, apesar de nos ter deixado escritos — mas significativamente muitos deles redigidos como que em espelho. E recordemos a célebre passagem de S. Paulo sobre o ver um enigma, per speculum Também Leonardo se nos não revela senão enigmaticamente. A sua escrita (v. os seus Tratados de Pintura) é mais doutrinal do que confessionalista.
Por isso, Leonardo pode ser considerado o Aristóteles da Arte renascentista. E daí a surpresa de o vermos, com Rafael, aliado a Platão. Posto que o (neo-)platonismo de Rafael seja sobretudo o reflexo de uma vox populi culta, dos círculos em que se movia...
Leonardo bem podia ter feito seu o lema, tão humanista, de Terêncio e Protágoras (que depois Karl Marx iria também adoptar — talvez com menos razão, mas ainda assim com propriedade, nesse século XIX em que o Humanismo parece ter fascinado): sou homem e nada do que é humano me é alheio.
Nada de humano passou ao largo do Estagirista. Como nada se furtou à devoradora curiosidade de Leonardo.
Todavia, no racionalismo e enciclopedismo aristotélicos, Leonardo, no seu claro-escuro e no seu sfumato não deixa de apresentar algumas fontes para o neo-platonismo (na analogia simbólica, evidentemente, que tais ligações comportam) pelo que a concordia entre Platão e Aristóteles, visada por Rafael, não deixa de fazer algum sentido, tanto mais que o virtuoso não morria de amores pelo seu rival Buonarrotti, contra quem terá (sozinho e com o tio ou parente Bramante) abundantemente conspirado junto do Papa. Um neoplatónico como Rafael não podia dar o rosto do seu rival a Platão.
Mas Leonardo parece dar o seu próprio rosto à Mona Lisa. Independentemente do arrojado (hoje já banalizado, porém) da interpretação, e de todas as conotações psicanalíticas, retenhamos dois aspectos apenas: por um lado, o enigma. Leonardo é enigma como o é a Gioconda. E, por outro lado, o preço da universalidade da dispersão de Leonardo: um certo sorriso permanente, que é auto-ironia, mas muita ironia face ao mundo também. Um provérbio oriental nos diz que devemos esconder-nos para bem rirmos da loucura do mundo. Leonardo não se escondeu, mas viveu no sfumato e no claro-escuro sob o manto diáfano da velatura de um sorriso.
Como diz Gombrich: até o sorriso de Gioconda deveria poder mudar. Mas não. O artista afivela-o e cativa-nos com a sua mestria, mas não nos toca no fundo da alma.
Totalmente contrária é a personalidade de Miguel Ângelo, o qual, mais que humanista e universal no sentido de Protágoras, Terêncio ou do Pico de Mirândola, é verdadeiramente também "nada más que todo un hombre". Sabemos que Miguel Ângelo, foi forçado a deixar os seus trabalhos escultóricos, seduzido e pressionado para pintar a Capela Sixtina. E que relutantemente acedeu. Mas sempre assinava como sendo escultor. É o Buonarroti um homem de uma só peça. A sensibilidade melancólica dos seus poemas, as preocupações com a família (que sustentou e que o explorou), até as mais prosaicas angústias com as criadas que o roubavam (furtavam !) denotam uma inteireza de carácter que também se adapta bem à dureza da pedra, e sobretudo se adequam à imagem do intelectual fino e subtil, todavia solidamente fundado, com valores e de boas contas… um homem frugal, também.
É Miguel Ângelo um neoplatónico que entende a sua arte como um desbastar de um númeno ou de um arquétipo inteligível já presente no mármore ou no granito.
O escultor deve retirar o que está a mais, libertar essa "alma" prisioneira do bloco. E daí que Miguel Ângelo, sabedora e carinhosamente, tivesse escolhido praticamente todos os seus blocos de pedra. Como o estatuário do nosso Padre António Vieira, rasga na pedra os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca… até do bloco informe sair "um santo que se pode pôr no altar".
O próprio Aristóteles, que era contudo um ser equilibrado, parece assinalar uma regularidade de carácter entre o melancólico e o homem de génio. A preguiça impede-nos de ir verificar se Teofasto e La Bruyère o terão seguido nessa caractereologia. A verdade é que a melancolia de Miguel Ângelo pode volver-se em cólera, e o seu carácter indómito valeu-lhe rixas que lhe chegaram a deformar o rosto.
Mas o corpo é para o nosso escultor apenas um invólucro da alma, e por isso ele posa para nós com o seu corpo esfolado (prefigurando, curiosamente, a "alma" do Conde de Orgaz, de El Greco).
Leonardo criara figuras extraordinariamente sedutoras. A Virgem dos rochedos, a Santa Ana, por exemplo, emanam uma luminosidade que impressiona ainda hoje. Rafael não era sincero quando escrevia a Castiglione que procurava em si, na sua imaginação, no seu interior, "um certo ideal" de beleza feminina. Rafael em boa medida o copiava de Leonardo.
Com Miguel Ângelo tudo é diferente. Não é tanto a beleza feminina nem a doçura ou o cativar da expressão que estão em causa. É, antes, o titanismo. Os poderosíssimos nus masculinos irrompem pela cenas bíblicas ao ponto de alguém ter assinalado que a Torah não era propriamente um ginásio helénico. As suas sibilas seguem esse mundo de super-homens.
Hoje parece sem mais sentido a crítica ao débil colorismo do autor, depois do restauro da Capela Sixtina. Pelo contrário: a força da cor inunda o olhar
Mas a este apogeu titânico não está associado um hino à vida. Os pares dos escravos, ou o par da noite e do dia (grupo tumular para os Médicis) revelam um agudo sentido de contraste trágico da vida, e um travo amargo nos perpassa pela mente: o escravo subleva-se, mas outro se resigna; a alvorada desperta, mas o dia declina no crepúsculo. Poderia ler-se de outra forma, ao invés. Mas não. É assim que tem de ler-se.
Freud meditou largamente diante do Moisés de Miguel Ângelo, e dedicou-lhe um eruditíssimo e notável ensaio — Moisés e o Monoteísmo —, em que reescreve a história da Bíblia. Não vamos aqui entrar em pormenores dessa narrativa primordial verdadeiramente mítica, e mito-política (Girardet, Rezler e outros deliciar-se-iam com este discurso legitimador do Êxodo).
Mas um ponto da argumentação de Freud (que visa destruir um mito fundador do judaísmo; ele que era judeu) nos é útil. O Moisés de Miguel Ângelo é um instantâneo de um momento preciso. Em que os judeus já se expandem em adoração do bezerro de oiro, e o interlocutor de Deus, indignado, reprime-se, encaracolando os anéis da barba como quem remói a ira, momentos antes de, num acesso de ira (dies irae, dies illae!), quebrar as tábuas da lei..
Pois Miguel Ângelo é esse vulcão prestes a entrar em erupção. Com a tinta escorrendo-lhe para os olhos quando, já ancião, pinta na Capela Sixtina. Quando pinta deitado, ao ponto de depois mal poder sentar-se.
Mas Miguel Ângelo ultrapassou o seu Moisés. E terminará os seus dias com obras meio esboçadas na pedra, que já não têm época nem estilo (aliás para isso sempre caminhou). A Pietà, que deixa inconclusa, parece ser equivalente àquele poema de Antero de Quental em que o outrora cavaleiro andante, depois de ter visto o vazio do palácio da ilusão, se acolhe à mão divina, como que reencontrando a infância:" Na tua mão, na tua mão direita" O escultor não perdera a fé nunca, mas agora aborrecia já o prometeísmo e resignadamente, contritamente, deixava-se adormecer.
O conceito de arte de Leonardo inscreve-se, mais claramente que o de Miguel Ângelo, no programa renascentista como procura, verdadeira demanda e investigação da verdade. Trata-se de olhar a natureza e os clássicos, de estudar "cientificamente" uma e os outros. Mas Leonardo é mais experimentador e mais próximo do seu "modelo", velando a sua intimidade. Mestre de mestres, pioneiro de técnicas, enciclopédico, bem merece a associação ao "Filósofo" por antonomásia. É apolíneo, diriam alguns. Não só a alma profunda e atormentada de Miguel Ângelo se identifica com o lado dionisíaco (lunar, obscuro — o "signo de Saturno" dos artistas, no dizer de Wittkower), como a sua adesão intelectual vai para as águas do neo-platonismo. A arte passa a ser uma forma de comunhão (comunicação) com essências. Trata-se ainda de procurar a "verdade". Mas a verdade encontra-se no céu dos conceitos, e o artista deve procurar aí ascender, sabendo da íntima união do Bem, do Belo e do Justo.O kalon e o agathon particularmente se ligam (claro que o dikaion também). A arte é uma demanda do Graal… Nova demanda, claro..
Leonardo da Vinci e Miguel Ângelo Buonarroti são, sem sombra de dúvida, os dois rostos do Janus do classicismo renascentista. O seu virtuoso (mas virtuosimo não significa classicismo puro) é Rafael, que em certo sentido anuncia o Maneirismo. A ele se devem consagrar algum tempo, dado ainda hoje ser considerado um dos maiores pintores de sempre.
III. Rafael, ou o virtuosismo
Rafael Sanzio nasceu em Urbino, a 28 de Março, 6, 7, 8 ou 17 de Abril de 1483, uma sexta-feira santa, às 3 horas da manhã, segundo nos diz, com precisão quase hagiográfica, o seu primeiro biógrafo, Vasari. Filho único de um pintor local, também poeta, de nome Giovanni Santi (1435-1494) - pouco se sabe de sua mãe, Magia Ciarla - , o qual, embora competente, aspirava a mais para o seu filho, desde que nele foi apreendendo excepcionais dotes de artista.
Assim, depois de haver ajudado o pai, ao que parece em trabalhos de pouca monta, em algumas obras em Urbino, foi ainda muito novo colocado como aprendiz na oficina de Perugino (1445/50-1523), que fora discípulo de Verrochio (1435-1488). Aliás, Rafael ficaria órfão de pai aos onze anos. Na oficina do pintor de Perugia, de tal modo assimilaria a técnica do mestre que a custo distinguiríamos, a partir de certa altura, os trabalhos de um e do outro. Não fora o estar assinada por Rafael, a crucifixão do altar da Capela de S. Domenico na Città di Castello (Londres, National Gallery), por exemplo, teria sido certamente atribuída ao seu mestre. Esta é uma obra elaborada entre 1502-1503.
Do período perugiano é de assinalar, de entre todas, a sua Coroação da Virgem, com alguma influência de Pinturicchio (1454-1513), e uma estrutura em dois níveis que lembra um tanto a que será utilizada, em todo o seu apogeu, mas em três estratos, no fresco dito da “Disputa do Sacramento” na principal parede da Stanza della Segnatura, como veremos.
Coroa este período de formação O Casamento da Virgem, o qual, comparado com A Entrega das Chaves, do seu mestre, de que revela evidentes citações, evidencia bem toda uma outra visão do espaço e uma vivacidade muito diversa no tratamento das figuras humanas.
Tendo recebido também influências de Mantegna (1430/31-1506), Paolo Ucello (1397-1475) e Piero della Francesca (?-1492), Rafael, que, ganhando asas face ao seu mestre, procurará consolidar um estilo próprio, viaja pelo centro de Itália, estuda, e aperfeiçoa-se.
Vai conhecer no seu período florentino (1504-1508) dois génios excepcionais, cuja arte procurará também assimilar: Leonardo da Vinci (1452-1519 ) e Miguel Ângelo (1475-1564). No contacto com as obras de ambos (e ainda com a de Fra Bartolomeo, 1472-1517), e obviamente também sob a pressão das encomendas (não da alta aristocracia, mas de banqueiros e burgueses abastados, o que talvez haja contribuído para lhe dar alguma latitude criativa face a modelos mais enraizados), vai trabalhando com virtuosismo em dois vectores essenciais da sua obra, que não devem ser minimizados: o tema da Madona, e o retrato.
Mais ainda do que o chiaroscuro de Leonardo, aplica o sfumato, técnica que perfeitamente domina, superando o seu enciclopédico precursor.
Em qualquer das linhas em que agora se desenvolve a sua obra se denota um longo trabalho de análise e um lento processo de maturação, que o faz ir assimilando tudo aquilo por que vai passando, já distante dos verdes anos da oficina de seu pai, ou até da do seu patrono, ainda muito convencional. Como afirma Gombrich, “na realidade, a sua aparente simplicidade nasce de uma profunda meditação, dum cálculo minucioso e de um sentido artístico infalível” [2] .
Este período florentino vai contribuir decisivamente para a maturação de um ideal de beleza, que fará mais tarde Rafael replicar a um cortesão que o inquiria sobre quem seriam os modelos das suas composições: é “uma certa ideia” [3] , dirá. Mais explícito, mas a nosso ver injusto, foi o pintor numa carta ao seu amigo Baltazar Castiglione: “já que as belezas são tão raras entre as mulheres, eu sirvo-me de uma certa ideia na minha imaginação” [4] .
Cínica observação para quem tinha fama de incansável amador [5] , e deixará legenda de ter morrido, não de amores, mas de excessos de amor.
Esta idealização platónica não é só do pintor, mas tem ao longo dos séculos cativado tanto o público simples como boa parte dos refinados críticos. Sobre a Madona do Grão Duque, que tem passado de geração em geração como um dos mais celebrados ícones ocidentais (passe a contraditio in terminis) da Virgem e o Menino, afirma também Gombrich, que está muito longe de ser naif: “Parece que não poderia ser diferente e que existe tal e qual desde a origem do tempo” [6] .
Outra obra que reflecte extraordinariamente esse estudo, numa aparente naturalidade e facilidade, é A Bela Jardineira, em que Rafael claramente absorve e ultrapassa a simples influência de Leornardo.
Em 1508, aos 25 anos, parte para Roma, com o mestre, para decorar os novos aposentos do Papa. O convite ter-se-á devido aos ecos da sua fama veiculados sabiamente por Bramante, que era seu compatriota, e seu parente, talvez tio. A Stanza della Segnatura, cujas pinturas fará inteligentemente divulgar também através de gravuras (as de Mercantionio Raimondi virão a ser decisivas na sua fama), granjear-lhe-á definitiva consagração. A sua oficina tornou-se conhecida internacionalmente, e até Duerer viria a interessar-se pelo artista italiano. Trocariam trabalhos.
Depois da Stanza della Segnatura, seguir-se-iam novas Stanze (de Eliodoro, de Constantino, do Incêndio de Borgo), embora não atingindo os cumes artísticos desta, e progressivamente confiadas na execução à sua escola.
Obviamente que a docilidade (ou tortuosidade hipócrita, poder-se-á pensar) do seu carácter, ao contrário do de Miguel Ângelo (com o qual, porém, terá significativa questão [7] ), ter-lhe-á aberto muitas portas. A tal ponto conquistou a corte papal, que nesses meandros sinuosos do Vaticano renascentista esteve quase para obter o chapéu cardinalício.
No período romano, além de ter desenvolvido magnificamente a pintura de cavalete, em que sobressaem obras como o retrato de Júlio II (além de vários outros retratos de personagens da corte papal e o do seu amigo Castiglione), La Velata, La Fornarina ou a Madonna dela Rosa, o mais significativo é a decoração de stanze e logge.
Receberá também duas encomendas destinadas ao rei de França: A Sagrada Família e S. Miguel.
Uma significativa encomenda privada é o fresco, provavelmente pintado em 1511, para a villa Farnesina de Agostinho Chigi: é uma representação de Galateia, em que movimento e equilíbrio de forças revelam novamente muita reflexão desaguando num leve e gracioso resultado, cheio de vida. Lembra o Nascimento de Vénus de Botticelli(1445-1510), mas é muito menos convencional.
Acresce ainda o trabalho enorme de desenho com variadíssimas técnicas, de que nos ficaram, felizmente, abundantes exemplos, os cartões das tapeçarias sobre os Actos dos Apóstolos (encomendadas em 1515), assim como o lugar de arquitecto papal, em que sucede a Bramante, em 1514, com o encargo imediato de levar a cabo a reconstrução de S. Pedro. Dessa faceta nos ficaram ainda, por exemplo, a Igreja de Santo Egídio, a Capela Chigii na Igreja de Santa Maria del Popolo, a Vila Madama, e os palácios Branconi e Pandolfini, respectivamente em Roma e Florença. Rafael ocupou ainda o cargo de prefeito das antiguidades romanas, desde 27 de Agosto de 1515, tendo-se dado com afinco ao levantamento arqueológico romano. Desta experiência, e em colaboração ou com a ajuda de Castiglione, proviria a Carta sobre as Antiguidades de Roma. O contacto com as antiguidades romanas levou-o a um trabalho de sistemático desenho desses modelos, e chegou mesmo a enviar jovens à Grécia com a incumbência de para si desenharem os salvados da Hélade clássica.
Virá a falecer aos 37 anos, no dia do seu aniversário, ou, pelo menos, numa outra sexta-feira santa (decerto a 17 de Abril de 1520), plausivelmente de febre aguda, motivada ou não por desregramentos. Segundo Vasari tê-los-ia ocultado aos médicos, tendo sido por isso sangrado na pressuposição de se encontrar com uma congestão, quando tal terapia seria contra-indicada ao seu verdadeiro mal.
O epitáfio, saído da pena do poderoso Cardeal Bembo, recorda-nos que Roma e o Vaticano choraram nesse dia de luto. O texto é longo, mas Gombrich dá-nos dele o essencial: “Aqui jaz Rafael, que fez temer à Natureza por si fosse dominada, em sua vida, e, uma vez morto, que morresse consigo. [8] ”
Vasari sublinha, em eloquentes e até punjentes palavras, o carácter doce e delicado de Rafael, que se diria predestinado para uma fama tranquila, e uma existência plácida e deleitosa, contrariando o mito do artista atormentado. Assim, e explicitamente comparando-o a Miguel Ângelo, afirma, como que remetendo-o para o Panteão dos artistas como um pintor-quase-santo:
“O céu dá por vezes uma prova da sua generosa benevolência acumulando numa única pessoa a infinita riqueza dos seus tesouros, o conjunto das suas graças e os dons mais raros, normalmente repartidos num longo espaço de tempo entre muitos indivíduos. Foi o que se tornou manifesto no caso de Rafael de Urbino, tão excepcional quão sedutor.
A natureza dotou-o de uma modéstia e da qualidade de alma que encontramos por vezes nos seres cheios de uma humanidade delicada e espontânea, que enriquece particularmente uma afabilidade sorridente, sempre docemente agradável em todas as circunstâncias com todos. A natureza ofereceu-o ao mundo: já vencida pela arte com Miguel Ângelo, desejou sê-lo simultaneamente pela arte e pela graciosidade com Rafael.” [9]
Os deuses chamam para si mais cedo aqueles que amam – velho adágio que contribui também para o mito de Rafael.
Seja como for, a sua morte precoce mais contribuíu para a legenda.
Por outro lado, Rafael, por natureza ou por cálculo, procurou não hostilizar, antes cativar os que lhe podiam ser figadais inimigos, desde logo os oficiais do seu ofício. Recordemos só a sua reverência para com os mestres e colegas mais velhos, patente no ter deixado intocados, quando poderia ter substituído, algumas composições de Perugino e outros, na decoração das Stanze, ou na representação de Leonardo, Bramante, do Sodoma e de outros, imortalizando-lhes os traços nas suas obras, designadamente na alegoria do Saber, a “Escola de Atenas”. Porém, como se evidencia dos trabalhos preparatórios da Escola de Atenas, Miguel Ângelo estava ausente dos seus planos para a composição, e terá sido incluído sob pressão do Papa. Curiosamente, é uma figura que destoa do conjunto, não se compreendendo como poderia haver uma mesa de mármore a meio de uma escadaria. Admitimos que tenha existido alguma sublevação ou reserva mental nesta tardia inclusão do rival. Mas outra teoria considera o aludido bloco estereométrico de pedra como a “pedra viva” e “pedra angular” em que assenta a Igreja. Esta teorização, que se deve a Matthias Winner, parece ter o dom de afastar das nossas preocupações a identificação da personagem e as vicissitudes da sua inclusão ulterior.
Todavia, Rafael cedeu, para não desagradar. Essa sua arte de não desagradar levá-lo-ia até a aceitar (contra a sua índole de aparentemente instável amante), em 1514, um casamento com a sobrinha do influente Cardeal Bernardo Dovizi, de Bibiena, Maria. Mas a sua propensão diplomática foi adiando tanto a celebração do enlace que a noiva faleceu entretanto.
Esta arte do compromisso, própria da sua personalidade, virá a ser importante para a interpretação da sua obra, que à primeira vista parece querer agradar ao gosto comum, e especificamente pode contribuir para a compreensão da solução adoptada nas antinomias filosóficas e teológicas que, como veremos, se poderiam defrontar na sua obra-prima, a Stanza della Segnatura, e especialmente no fresco das virtudes.
Mas se Rafael conseguiu sempre ser fiel a si mesmo, e mesmo por entre diplomacias e influências traçar o caminho autónomo do seu génio, não conseguiu resistir à banalização do seu gosto e da sua “maniera”. Discípulos sem chispa e epígonos sem talento, ajudados pela celebridade, fizeram-no involuntário chefe de escola do maneirismo, e santo do academismo. Entretanto, ao contemplarmos a sua Transfiguração, vemos que morreu em vias de explorar outros caminhos. Os quais, como pode ver-se pela figura infra, acabarão por cristalizar também num certo gosto, de afortunada posteridade.
Com efeito, Rafael vai dever muito da sua fama ulterior à Transfiguração, e a múltiplas versões da Madona.
E todavia, a própria composição da Transfiguração é bastante engenhosa, para um Rafael que gostava da simplicidade estrutural. Continuando com a sua normal forma-base, o círculo (tão patente nas suas representações da Madona), como que coloca desta feita Cristo num círculo superior. Este círculo invisível tem como centro o seu pé direito, o qual, por sua vez, atinge o limite de outro círculo, que não pode deixar de representar o mundo, e que tem como centro a mão aberta de uma personagem barbada.
Ogni dipintore dipinge sé: Esta máxima, de grande sabedoria, atribuída a Cosme de Médicis, deixa-nos ainda mais perplexos sobre a figura de Rafael. Como se pintou a si próprio ao longo da sua obra? Seria por haverem contemplado a aparente perfeição arquetípica das suas criações que tantos críticos conceberam um Rafael quase perfeito? Tal pode constituir, porém, traiçoeira e platónica kalokagathía, associação (neste caso eventualmente apressada) do belo com o bem. Apesar dos trabalhos de Vasari e de tantas hagiografias ulteriores, et pour cause, Rafael continua a ser para nós um desconhecido, escapa-se-nos, e o seu sorriso é mais enigmático que o da Mona Lisa. Santo ou pecador, ou, parafraseando Lutero, muito santo porque muito pecador? Uma pessoa doce e sem personalidade vincada, com uma vida fácil, “de príncipe”, de triunfos e prazeres sem história? Beneficiário de um grande virtuosismo e vítima da sua facilidade, ou trabalhador de fundo na sombra, aparentando uma espontaneidade que não teria? Um cortesão hábil e de duas faces? Paternal mestre de múltiplos discípulos, ou empresário de uma oficina lucrativa? Génio ou sábio precursor do marketing da sua obra? Importa pouco julgar o homem, e conhecê-lo interessa sobretudo para melhor compreender a obra. Ni rire, ni pleurer, ni maudire, comprendre, escreveu Paulsen. Esse deveria ser o projecto de uma biografia de Rafael. Uma biografia a fazer, evidentemente. Numa coisa a vida e a arte do artista confluem: na sedução. Rafael foi, antes de tudo o mais, um sedutor.
IV. Rubens e o Barroco
O Barroco não é uma realidade homogénea. Nietzsche dizia que os conceitos que têm história não têm, ou não podem ter, definição. Por isso é muito complexo identificar o Barroco na perspectiva limitadora da de-finição. Daí que o referirmo-nos a ele através de exemplos seja um procedimento, na verdade, muito mais simples, e muito mais eficaz.
Pedro Paulo Rubens parece-nos ser um autor de síntese de muitas das características do Barroco. E o desembarque de Maria de Médicis em Marselha afigura-se-me um bom exemplo de profusão e difusão barrocas, no domínio do profano, assim como a Descida da cruz (uma composição da primeira "fase"), um interessante exemplo no domínio sacro dos mesmos elementos.
Rubens concentra na sua vida vários elementos contrastantes mas confluentes, consegue integrá-los e ser bem sucedido. Filho de pai protestante, e emigrado na Alemanha, acabará por regressar, depois da morte daquele, e ser educado na religião católica; homem do norte, fará uma educação longa e atenta em Itália, de onde sairá apenas para a pátria aquando da doença da mãe — recusando uma carreira no berço do Barroco. Nomeado pintor oficial do regente (que governava em nome do rei de Espanha), mantém numerosas encomendas de origem eclesiástica, mas também particulares. Com uma enorme facilidade e capacidade de trabalho, monta ao que parece uma "oficina" de produção "em série", mas sempre planeia ou dá o seu toque pessoal às obras que dali saem.
A sua ligação ao poder fá-lo diplomata, corresponde-se em latim com intelectuais, e pinta com candura os seus filhos. É cativado pela vida, pela urgente e fugaz vida que nas três graças efemeramente poisa, com ainda ecos clássicos, e retrata os homens e as mulheres do seu tempo num jardim de amores algo "parnasiano" já.
A sua maestria técnica é capaz de velaturas sucessivas que valorizam a cor. As formas avultam em volutas que antes só eram permitidas nos anjos pequeninos de Rafael.
Ut pictura poesis. O Barroco de Rubens é um hino à vida, com um horror mortis patente no horror vacui.
Já na Egressão da Cruz Rubens tinha evidenciado que dominava a anatomia (sendo ainda escultórico à Miguel Ângelo). Mas subsequentemente o escultórico deixa o anatómico, para passar a ser mais o jogo de volumes do "grupo escultórico" em pintura. Além de que o trompe-l'œil, designadamente nos tectos que parece perderem-se até o astral, já mistura as três clássicas artes plásticas. Todavia, Rubens não precisa de chegar tão longe, até porque o seu lado nórdico o moderava (por exemplo, na paisagem é muito tradicional ainda), e o Barroco italiano nunca vogou pelo mar alto da efervescência alemã, austríaca ou da Boémia — designadamente na perspectiva de um exagerado "decorativismo".
A entrada triunfal da Médicis tem essa dimensão cinestésica. Trombeta da fama a anuncia; logo, a música. Descrição narrativa literária (não sem nereidas mitológicas e tritões que assinalam a literariedade clássica do evento). Festa, brilho, cor e popularidade derivada do fausto.
Analisando o Barroco como uma evolução a partir de um classicismo (renascentista), parece patente que aqui temos (concentremo-nos nesta composição laudatória), sem dúvida o triunfo da mancha sobre a linha (quão longe do delineamento de contornos mesmo de um Botticelli!); a opção por formas abertas, expansivas, coloridas, em vez de formas fechadas (encerradas em linhas ou de todo o modo conclusas) — é também o princípio de alguma obra aberta no sentido de Umberto Eco; apesar do fausto e do "éclat", a coloração tem as suas nuances, pelo que, não estando patente aqui a tenebrosidade, todavia se compreende que a claridade barroca não é a luz da razão objectiva, mas uma luz filtrada, sentimental, mesmo quando, como num Caravaggio, ela parece seguir o dedo divino como foco (como no seu S. Mateus, cobrador de impostos), ou seja, cor e uma luminosidade de segundo grau, "secundárias" e não "primárias" em sentido psicológico; a composição estrutura-se em planos de diferente profundidade, embora no caso concreto. dois níveis ainda relembrem a justaposição de planos do Renascimento. Finalmente, as relações compositivas entre unidade e multiplicidade, em relação com a temática e a sua desenvolução são mais complexas. Wölfflin assinala que o Barroco evolui do múltiplo para o uno. Mas não estamos plenamente certo disso, nem a "doutrina" é unânime. Seja como for, a composição em apreço assinala a dispersão de elementos próprios, mas é una na mensagem e não dispersa no modus.
A religiosidade barroca é sobrecarregada, obviamente, nas peças de índole sagrada, mas não esqueçamos que é uma religiosidade sobretudo de matiz católico (embora autores como Janson procurem "recuperar" a ideia, universalizando-a e descaracterizando-a confessionalmente). E a distinção entre fé dominical e fé semanal (Huxley), coisas de César e coisas de Deus, se não eram ainda claras no século XVII (antes em muitos casos os gládios coincidiam), todavia estavam longe do concentracionismo da República de Genebra de Calvino, onda cantar o que não fossem livros religiosos era proíbido, e vestir em cores não pardas constituía escândalo.
Por isso, a presença religiosa em temas profanos não é omnipresente.
Já no apear da cruz, obviamente, se trata de tocar, impressionar, chocar, comover. O Barroco fará uso da sentimentalidade e da grandiosidade, usando as fraquezas do fausto como forças da Contra-Reforma. Não foi só a Igreja, foi igualmente o Estado.
Todavia, a multiplicidade do fenómeno, de índole cultural geral, acabaria por ter presença também na burguesa Holanda ou na anglicana Inglaterra, por exemplo. Daí que uma avaliação totalmente unitária desta realidade seja temerária.
Ainda assim, o Barroco é excessivo — e daí que as teorizações mais globalizadoras (de epos) o façam contracenar, no eterno retorno da História, com o classicismo. Tal é, por exemplo, a conhecida visão de Eugénio d'Ors.
Não se entendia o Barroco como entidade a se há alguns anos ainda (antes dos anos 20 do século XX). A época sincrética do classicismo (de influência francesa acrescida — v. os preconceitos ainda actuais de um Victor Tapié sobre Versailles vs. Vaticano), tudo abrangia, entre Renascimento e Romantismo.
Em Rubens, pela temática, pelo tratamento de alguns temas, ainda se vê clássico e italiano, sem dúvida: não se prescindiu da linguagem grandiosa, apenas foi dramatizada, teatralizada.
Essa é, em grande medida, a differentia specifica do Barroco: o teatro, a teatralidade. E é ele que (sobretudo na versão do teatro lírico, ou ópera) sintetiza o espírito do Barroco.
Ora, como sabemos, há ópera lírica e trágica e ainda "clássica", e ópera buffa.
Ambas são sínteses do Barroco com os seus vários sentidos.
[1] A qual, na sua versão original, depois traída – sobretudo, ao nível teórico, com Guilherme de Ockham, mas já antes: e disso é conhecido exemplo vulgarizador de O Nome da Rosa de Umberto Eco - é mais humanitária que humanista, e mais mística que humana).
[2] E. H. GOMBRICH, The Story of Art, 9.ª ed., Londres, Phaidon, 1995, trad. fr. de J Combe e C. Lauriol, Histoire de L’Art, nova ed. revista e aumentada, Paris, Gallimard, 1997, p. 316.
[3] E. H. GOMBRICH, Histoire de L’Art, p. 320.
[4] Apud WINCKELMANN, Gedanken ueber die Nachahmung der griechischen Werke in der Malarei und Bildhauserkunst (1754), nova reed. (2.ª), Estugarda, ed. de Ludwig Uhlig, Reclam Verlag, 1977, trad. cast. de Vicente Jarque, Reflexiones sobre la Imitación del Arte Griego en la Pintura y la Escultura, 2.ª ed., Barcelona, Península, 1987
[5] Cf., por todos, RUDOLF e MARGOT WITTKOWER, Born under Saturn. The Character and Conduct of artists: A Documented History from Antiquity to the French Revolution, Londres, Weidenfeld, 1963, trad. cast. de Deborah Dietrick, Nacidos bajo el Signo de Saturno. Genio y Temperamento de los Artistas desde la Antiguedad hasta la Revolución Francesa, 5.ª ed. esp., Madrid, Catedra, 1995, p. 150 ss..
[6] Idem, Ibidem.
[7] Miguel Ângelo queixa-se a um cardeal, em 1542 (vinte e dois anos depois da morte de Rafael) das intrigas deste e de Bramante junto de Júlio II, e invoca que “tudo o que em sua obra há de arte deve-o a mim”. Até depois de morto Rafael prejudica as aspirações de Miguel Ângelo, que é preterido na decoração da Sala de Constantino pela oficina de Rafael, que executará o trabalho a partir de desenhos deixados pelo mestre. Cf. STEPHANIE BUCK/PETER HOHENSTATT, Raffaelo Santi, llamado Rafael. 1483-1520, p. 62.
[8] E. H. GOMBRICH, Histoire de L’Art, p. 323 : « Ci-gît Raphael, qui durant sa vie fit craindre à la Nature d’être maîtrisée par lui et, lorsqu’il mourut, de mourir avec lui ». Para este trecho, a tradução do livro de Vasari é diversa: “Notre puissante mère nature a craint d’être vaincue; /Quand il mourut, elle même a craint de mourir.» GIORGIO VASARI, Les vies des meilleurs peintres, sculpteurs et architectes, p. 224. Todavia, a questão do epitáfio é controvertida: cf. Ibidem, p. 242, n. 171.