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A Guerra contra o Iraque foi uma Guerra Justa?

 

Vittorio Hösle*
(artigo publicado em 01/05/03)

Não é nada fácil traduzir, em discurso racional, o horror do que se passou há pouco no território iraquiano e a indignação com o atual governo dos EUA. Mas ainda que sujeita às emoções, a humanidade não pode dispensar uma análise racional, mesmo que apenas na esperança de encontrar na razão uma base comum, base que falta aos homens com emoções diferentes - e nada mais que emoções. Nesta guerra, portanto, não nos devia indignar apenas o fato de terem sido mortos seres humanos inocentes - pois isso, infelizmente, ainda que em graus diferentes, acontece em toda guerra. Quem acha que a vida de seres humanos inocentes não pode ser posta em jogo, sob nenhuma circunstância, está comprometido com o pacifismo, isto é, com a concepção segundo a qual todas as guerras são imorais. Mas essa posição é pouco plausível: implica necessariamente em deixar o mundo nas mãos daqueles que são menos sensíveis ao emprego da violência. E como um resultado assim tão terrível - que, muito provavel-mente, levaria à morte de ainda mais inocentes - poderia ser bem recebido por aqueles que se sentem na obrigação de defender os seres humanos inocentes? A lição dos anos 1930 é que a guerra justa é possível e, além disso, que se pode ser culpado tanto pela ação quanto por omissão. Quem rejeita a presente guerra, por razões gerais pacifistas, coloca-se sobre uma frágil base e dificilmente conseguirá convencer alguém do lado oposto: sua teoria comprova demais. Uma teoria da guerra justa pode ser essencialmente mais exigente e complexa, visto que mais diferenciada, mas também é necessária para uma avaliação correta da guerra do Iraque. Não é nenhum mérito da cultura alemã do pós-guerra (mesmo que, depois do crime dos nazistas, isso seja mais que compreensível), que ela não possua uma teoria dessa espécie - significativamente, o melhor livro sobre o tema foi escrito por um judeu americano: Michael Walzer.

Uma teoria da guerra justa deve ter três partes: motivo, estratégia e política pós-guerra. Começarei pela última. A política pós-guerra dos EUA na Alemanha e no Japão foi um feito enorme, pelo qual se deve ser muito grato - mas há fortes dúvidas de que algo análogo possa se dar no Iraque. Pense-se, primeiramente, nas pouco encorajadoras experiências da Grã-Bretanha, que arrancou o Iraque do Reino Osmânico na I Guerra Mundial e o dominou por muito tempo. Em segundo lugar, basta um olhar ao orçamento da guerra, que Bush requereu alguns dias após sua eclosão - sua política financeira é tão irresponsável quanto as suas políticas internacional e ecológica -, para ver que ele previu mais de 70 bilhões de dólares para as forças de combate, mas apenas 3 bilhões para a reconstrução do Iraque; e não é muito provável que o Iraque possa ficar sob o mandato da ONU. Em terceiro lugar, dificilmente Bush terá a força para arrancar das mãos de Sharon o problema fundamental da região - a falta de um estado palestino. Pois ele não é exatamente um realista político - e mesmo os mais severos críticos do realismo começam a sentir falta de realistas como Kissinger, que, com sobriedade, sabiam aquilatar as próprias possibilidades e acabavam provocando menos caos internacional. Além disso, é evidentemente difícil para Bush e outros membros do governo distinguir os interesses dos EUA dos de Israel (ou daqueles que Sharon considera como tais).

No que diz respeito à estratégia, os EUA têm com razão trabalhado nos últimos decênios no aperfeiçoamento de suas armas, para que sejam prejudicados menos civis do que na primeira guerra do Golfo. Mas, em primeiro lugar, os EUA subestimaram em muito a falibilidade de sua técnica (assim como superestimaram sua popularidade no Iraque). Em segundo, a pressão política para manter o número dos próprios mortos o mais baixo possível acaba ocasionando que, em caso de emergência, a matança de civis seja considerada inevitável. E, em terceiro, não se deve contar entre os mortos apenas os que caem em combate, mas também os que morrem em conseqüência da destruição da infra-estrutura. O fato de que o número destes últimos seria alto foi previsto com base na má situação do sistema de abastecimento da população civil iraquiana; e o de que a tomada de Bagdá tenha transcorrido de modo bem menos sangrento do que se temia é mais um caso de sorte do que propriamente de merecimento.

Mas qual foi mesmo o motivo desta guerra? O governo dos EUA apresentou diversos e sempre novos motivos, dos quais se destacam três: o primeiro é discutível tanto jurídica quanto moralmente; o segundo, moralmente, e o terceiro, monstruoso. Além disso, a opinião pública foi insistentemente manipulada com falsas afirmações (por exemplo, sobre as supostamente comprovadas relações entre o Iraque e a Al-Qaeda). Aliás, conselheiros do governo e intelectuais mencionam até motivos como a garantia de abastecimento americano de petróleo e o alavancamento da economia, motivos esses pura e simplesmente interditos para todo ser humano decente como legitimação da matança de outros seres humanos. Mas ainda que tais motivos também desempenhem um papel para certos membros do governo (particularmente para aqueles em débito com a indústria petrolífera), a maioria de nós não pode penetrar nos seus corações. E como a mescla de motivos dos adversários da guerra também não é lá muito transparente e pura, não se deve recomendar uma escola da suspeita dessa espécie. Os americanos favoráveis à guerra não estão errados quando apontam para o fato de que a França também tem interesses econômicos no status quo, e que a política de fechar os olhos para os problemas de segurança e para os Estados bárbaros, própria a tantos países europeus, é antes expressão da comodidade do que uma virtude. Poucas coisas contribuíram mais radicalmente para a perda de prestígio da Europa nos EUA do que o seu ultrajante fracasso durante a crise da Iugoslávia.

Passo agora a discutir os três motivos oficiais, que nem sempre são distinguidos pelo próprio governo. Primeiramente, o argumento de que o não cumprimento das resoluções da ONU pelo Iraque legitimaria a guerra. Esse argumento deve ser levado a sério. O direito não tem valor algum, se ele não puder ser levado a cabo; e a queixa dos americanos - de que uma ONU sem vontade de execução do direito não vale o dinheiro que ela custa - está certa. A primeira guerra do Golfo, tal como a guerra da Coréia, foi uma guerra justa; pois, se não for de ajuda para os Estados atacados, a ONU perde a sua razão de ser. Também é certo considerar um feito moral dos EUA o terem assumido a parte do leão, ou seja, a parte militar, em ambas as guerras - por mais abominável que tenha sido a armação do Iraque pelos EUA na guerra contra o Irã (entre outras, com armas químicas, sobre cujo emprego o Iraque foi instruído pelos EUA). E devia-se conceder que foi um erro não ter avançado até Bagdá, em 1991, embora isso pudesse ter sido feito sem custos excessivamente altos - pense-se apenas no massacre iraquiano dos xiitas, incitados pelos EUA à sublevação, que teve lugar logo após o cessar-fogo e que explica claramente por que, há pouco, os xiitas não saudaram os americanos como libertadores. Do mesmo modo, foi um erro da ONU tanto quanto dos EUA simplesmente tolerar a expulsão dos inspetores de armas do Iraque, em 1998. Pois, naturalmente, a comunidade internacional tem o direito de fazer imposições a um agressor derrotado. E novamente: um direito que não é levado a cabo com meios coercitivos é pouco mais que um desejo piedoso. A implementação do direito internacional não é uma guerra preventiva. Se os EUA tivessem usado apenas esse primeiro argumento, deveríamos ser gratos a eles; e, de fato, a resolução 1441 do Conselho de Segurança foi afinal votada consensualmente. O Iraque só começou a cooperar porque foi instituído um potencial de ameaça militar. Mas justamente porque ele tinha começado a cooperar, não havia nenhum motivo para partir tão depressa para a guerra (mesmo que fosse uma questão de lealdade a participação das outras nações nos custos do estacionamento das tropas americanas e inglesas, e que era sensato um ultimato como o previsto pela última sugestão francesa). Acima de tudo, porém, o argumento que aponta para a execução necessária das decisões da ONU é inconciliável com o desrespeito da ONU a que assistimos nas últimas semanas, aliás, já no verão passado: pois a ameaça de violação do direito internacional é proibida pela carta da ONU. O respeito pela ONU também é devido mesmo quando se admite que ela necessita de uma revisão geral, e que as estruturas jurídicas no Conselho de Segurança não mais refletem as relações reais de poder. E nada é mais prejudicial, a esse respeito, do que quando a impressão gradualmente se solidifica na certeza de que os EUA há muito já teriam se decidido pela guerra, independentemente do grau de colaboração do Iraque. Por fim, a rejeição da proposta francesa não foi apenas imoral, mas também militarmente estúpida, porque o mês ganho poderia ser utilizado para a dissuasão do parlamento turco, e a edificação de uma frente norte teria influído no curso da guerra de modo positivo para os invasores.

O segundo argumento: tratar-se-ia de libertar o Iraque de um tirano. Ninguém discute que Hussein era um déspota assassino. O problema com esse argumento é, sem dúvida, que o direito internacional vigente não permite nenhuma intervenção humanitária (e nenhuma das resoluções da ONU para o Iraque exigia uma mudança de regime). Mas existem bons motivos morais para desenvolver prudentemente o direito internacional nesse sentido - se é que ele deva ser realmente um direito de nações e não um mero direito de Estados, que de fato protege os Estados uns dos outros, mas não as nações de seus respectivos Estados. Em Ruanda, na minha opinião, teria sido justificada (aliás, devida) uma intervenção, e a guerra contra o que restava da Iugoslávia, em 1999, foi com razão por muitos considerada moralmente legítima - sobretudo porque nessa guerra houve incomparavelmente menos mortos não só dos que Milosevic causou com suas guerras, mas também, muito provavelmente, dos que ele teria continuado a causar. Essa é sem dúvida a condição decisiva. E o fato de que essa regra da proporcionalidade dificilmente poderia ser mantida na presente guerra já era previsto, à mão de argumentos merecedores de atenção, pela maioria dos experts.

O terceiro argumento: os EUA teriam direito a “preemptive actions to counter a sufficient threat to our national security” (ações preventivas contra uma significativa ameaça de nossa segurança nacional), como se pode ler no National Security Strategy, documento de setembro último, do governo dos EUA. Como residente permanente nos EUA, senti vergonha ao ler esse texto, e o sentimento continua. Pois todo o desenvolvimento do direito internacional do último século desembocava justamente na proibição da guerra preventiva - esse é, entre outros, um feito dos EUA (em especial de Kellog, o qual foi agraciado em 1929 com o prêmio Nobel da paz pelo ainda vigente pacto Briand-Kellog). Mas existe um, e apenas um, argumento a favor da nova doutrina - a intimidação falharia com terroristas prontos a morrer. Há algo de verdade nisso, e, além do combate contra esse grupo, pode-se tentar chegar a um consenso. Mas, primeiro, Hussein não tem o perfil de suicida, e, segundo, o argumento moral universal contra a guerra preventiva é muito, muito forte: no fundo, toda guerra pode ser considerada preventiva, dado que sempre existe algum tipo de ameaça, sobretudo para aqueles que aspiram a ser invulneráveis - essa doutrina também comprova demais. (Quem - como o velho Kant - aceitava guerras preventivas, na maioria das vezes pensava em guerras contra Estados que ameaçam tornar-se superpoderosos e, por conseguinte, ameaçam o equilíbrio de poderes. Mas tal teoria não é do interesse dos EUA.) E, de fato, o mencionado documento mostra o quão extensivamente a administração atual interpreta o direito à guerra preventiva - a nenhum outro país deve ser permitido construir um poder militar nem sequer semelhante ao dos EUA. Como a China - que ainda ficará na dependência do capital americano por algum tempo - deve entender esse fato? Como os demais Estados devem interpretá-lo? Como admirar-se de que, em vista desse documento - que repugna por sua estupidez não menos que por sua irresponsabilidade moral -, os EUA não tenham conseguido obter o apoio da ONU? E como surpreender-se com o fato de que a maioria dos Estados esteja agora se perguntando quem será o próximo da lista de ataque? Com uma democratização de todos os Estados deste mundo, conforme imaginada pelos idealistas no governo, não se conseguiria muita coisa, pois também as democracias podem indispor-se umas com as outras; e, além disso, a democratização de muitos Estados do Oriente Médio conduziria os fundamentalistas ao poder. A tese ingênua, segundo a qual a guerra não seria possível em um sistema republicano internacional, não tem base empírica, é refutada pela própria conduta dos EUA e não passa provavelmente de uma representação ideológica. Uma política para criar democracias por meio de bombas não pode dar muito certo, apesar de todo o desmedido poderio dos EUA. Pois ela mina o direito internacional, em vez de adaptá-lo cuidadosamente aos novos perigos. Destrói o consenso na luta contra o terrorismo. Solapa a legitimidade da hegemonia americana, porque a contradição entre o ideal democrático e a concentração de todo poder internacional em um único Estado, que representa apenas 4% da população mundial, transcende as raias do tolerável. Sim, ela tem necessariamente por conseqüência o fato de que todos os Estados que não querem ser “libertados” por Bush - como a Coréia do Norte e o Irã - tentem munir-se de armas de exterminação em massa. Só quem não é capaz de observar a si mesmo de uma perspectiva externa pode estar na altura de tal política, que com toda certeza lembra não a Hitler, mas, em muitos aspectos, à megalomania da Alemanha sob Guilherme II.

Isso tudo é muito triste porque, de fato, não há nenhuma alternativa à hegemonia dos EUA. Sem os EUA, a ONU não pode fazer nada; e nós já vimos nas últimas semanas que, na Europa, não se pode depositar muita esperança. A nova ordem mundial, a que visava o notável estadista e civilizado republicano da costa oeste George Bush sênior, está sendo arruinada pelas bombas de seu filho, esse ex-alcoólatra texano que se presume salvo pessoalmente por Jesus e que gostaria de propagar a sua experiência de salvação para todo o mundo. Se os EUA tivessem expandido sua hegemonia de modo suave e inteligente e também se empenhado na adesão a tratados internacionais como o Protocolo de Kyoto, a maioria dos Estados a teria aceitado. O século XX mostrou a todos que o preço para a anarquia internacional é elevado, e todos sabem que ele é ainda mais alto numa era de armas de exterminação em massa. Augusto, no leito de morte, pediu a seus amigos que lhe dessem uma salva de palmas como se fosse um ator de teatro. Mas em que consistia seu feito teatral? Consistia em ter habilmente ocultado o seu poder; pois tinha aprendido, com o assassinato de César, que sua autocracia só teria alguma chance, se a fachada da república fosse preservada. A hegemonia americana só pode durar se tanto a fachada quanto a substância da ONU forem preservadas e os EUA, numa medida totalmente diferente do que até agora, assumirem responsabilidade por todo o mundo. Para isso, decerto, é necessário um governo com mais inteligência e menos presunção e hybris.



* O filósofo ítalo-germânico Vittorio Hösle, 42, professor na University of Notre Dame é autor de, entre muitos outros títulos, Hegels System; O café dos filósofos mortos (Ed. Angra/Inst. R. Lúlio) e Moral und Politik, sua obra mais importante. O presente artigo foi traduzido do original alemão por Edson Dognaldo Gil, mestrando em filosofia pela PUC-SP, pesquisador do CNPq e membro do IBFC Raimundo Lúlio.