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O que Pode Significar a Gestão da Educação

 

Elie Ghanem
FEUSP / ONG Ação Educativa

 

Os motivos que inspiraram a formulação do tema deste seminário Cidadania, participação e controle social da gestão da educação possivelmente estão ligados a uma intenção e uma expectativa de atingir práticas educacionais satisfatórias, quando não excelentes. A fim de verificar como se situam aqueles que se ocupam dessa busca, é conveniente examinar o tema explorando seu significado com a explicitação de interpretações quanto a cada um dos termos que compõem o tema.

De que estamos falando quando nos referimos a gestão da educação? A pretensão de realizar uma gestão adequada da educação requer que se saliente de início a existência de uma posição contraditória, apesar de corriqueira. Quando professores ou técnicos de sistemas escolares falam de educação, costumam subentender que estão se referindo à educação escolar. Essa imagem restrita se contrapõe à idéia muito difundida e facilmente aceita de que a educação ocorre em múltiplos lugares e que, além disso, também são múltiplos os agentes educativos.

De acordo com essa idéia, alguns vão adiante e afirmam que todas as relações que os seres humanos mantêm em suas vidas, sejam relações interpessoais ou intergrupais, sejam relações com a natureza – o com o que restou dela – geram influências e aprendizagens. Desse ponto de vista, a educação seria um fenômeno social onipresente e perene.

Não contrastam com esse tipo de abordagem aquelas que – embora tenham teor mais prescritivo do que analítico – encontram-se em ditos como: “a educação cabe em todo lugar”. Certamente um preceito como esse diz respeito mais a um padrão de condutas esperado e desejável, uma idéia do que deveria ser um tratamento entre as pessoas que fosse marcado pela civilidade.

Poucos discordariam que a escola é uma organização dedicada principalmente à educação. E também não são muitos os que não admitem a força educativa do convívio familiar. De outra parte, muitos questionarão as orientações, as formas e conteúdos das mensagens dos meios de comunicação de massa. Mas questionarão com tão maior intensidade quanto mais reconhecerem o poder desses meios na formação de opiniões e na definição de estilos e preferências. Fica evidente a contradição entre aceitar tamanha amplitude dos fenômenos educacionais e, ao pensar em intervir em educação, ter em mente apenas o universo da educação escolar.

Dito isso, pode-se passar à consideração da expressão gestão da educação. Essa gestão, como em muitos outros casos, está altamente condicionada por seu objeto, podendo restringir-se mais ou menos às rotinas e problemas do universo escolar conforme o entendimento que se tenha de educação seja mais ou menos amplo.

Gerir é tomar decisões e outro aspecto importante da gestão da educação, além de sobre o que as decisões são tomadas, é quem toma as decisões. A propósito, também se sedimentou, por muito tempo, a atitude natural, sem questionamentos, de aceitação de uma hierarquia de poder. No topo dessa hierarquia, encontram-se os pequenos grupos que decidem sobre as grandes orientações da educação. É assim nos sistemas escolares, mas também é assim na educação familiar e naquela praticada pelos meios de comunicação de massa.

Os adultos, no âmbito familiar, como educadores, seguem grandes orientações que, em larga medida, não emanam de seu próprio desígnio, mas de uma mescla de tradições com opiniões atuais, compostas estas últimas a partir de mensagens dos meios de comunicação de massa. Estes, por sua vez, têm suas principais linhas balizadas pelas oligarquias que detêm o controle de sua propriedade e pelos especialistas responsáveis por sua programação e edição.

Se, no alto da hierarquia de poder, as grandes orientações da educação são ditadas por grupos muito restritos, há um nível de decisões (portanto, de gestão) inferior a elas, no qual se situam os educadores que atuam mais diretamente com os educandos. Ocupam esse nível intermediário de gestão os adultos na família, os professores e técnicos nas redes escolares e os profissionais que operam os meios de comunicação de massa.

Resta, então, um nível inferior, preenchido por aquelas pessoas que, mesmo diretamente implicadas nas práticas educacionais, mantêm-se predominantemente na condição de educandos. Nessa condição, em relação à gestão da educação, as pessoas estão sobretudo excluídas das decisões sobre grandes orientações da educação e escassamente engajadas na tomada de decisões sobre o funcionamento da educação. Os educandos são, o mais das vezes, rigorosamente afastados da gestão da educação, continuando apenas como objeto do empenho educativo dos educadores.

Assim caracterizada a hierarquia de poder que configura a gestão da educação, dela decorre um juízo sobre o aspecto da participação. Pode-se dizer que alguns dos principais problemas quanto à participação em educação dizem respeito à existência de grupos de pessoas excluídos de certas práticas educativas. É o caso daquelas que não têm acesso àqueles serviços educativos que contam com educadores profissionais. Esses serviços são compostos por escolas, mas também por uma diversidade de outros, tais como praças públicas, centros esportivos, centros de convivência, salas de exibição de cinema, de teatro, de apresentações artísticas, de debate científico ou político em geral. Mas também há pessoas excluídas de práticas educativas domésticas devido a conflitos intrafamiliares acentuados ou à decomposição dos grupos familiares. Além dessas pessoas que não participam de importantes práticas educativas, há uma grande quantidade daquelas que participam e, nesse caso, o problema se delineia pelo fato de participar das práticas, mas sem poder decidir de quais e sem poder decidir sobre as orientações que tais práticas seguem.

Tornando ao ponto da gestão da educação, quando esta diz respeito à dimensão pública das práticas educativas, trata-se de política educacional. Sobre política educacional, assim como ocorre em outros setores de governo, tomam decisões grupos muito reduzidos, especificamente dois tipos de autoridades: as do poder executivo e as acadêmicas. É muito comum a ocorrência de combinações ou de coincidências entre esses dois tipos de autoridades, quando integrantes de universidades compõem equipes ou assumem postos no ministério ou em secretarias de educação.

O predomínio desse escasso grupo de decisores em educação contraria a idéia de gestão democrática pelo menos em um aspecto que a define, ou seja, no número de indivíduos e categorias que participam da tomada de decisões. Desse ponto de vista, a gestão será mais democrática quanto maior o número de implicados nos processos decidirem sobre eles.

À persistência dessas oligarquias também contraria propostas para a educação que já alcançaram amplo consenso na arena internacional, embora enfrentem enormes dificuldades para serem adequadamente compreendidas e implementadas. Um importante marco de referência dessas propostas é a Declaração Mundial de Educação para Todos, firmada na conferência da Tailândia, em 1990. De cada palavra desse documento, é preciso extrair conclusões e, sobretudo, a partir de cada uma delas, inventar novas ações. Bastaria mencionar a determinação de que se reduzam gastos militares para ampliar investimentos em educação ou, com a mesma finalidade, efetuar renegociações de dívidas externas entre países credores e devedores. Mas aquela Declaração vai muito além no caráter inovador presente em sua visão de educação. Dentre suas muitas proposições desafiadoras, três sobressaem pelo estímulo que fazem à criatividade, especialmente pelas implicações quanto à gestão da educação. São proposições facilmente aceitas em palavras e dificilmente traduzidas em atos. Uma delas é a de um conceito amplo de educação, entendida como aquela que se inicia com o nascimento e dura ao longo de toda a vida. Um conceito com tal amplitude coloca à gestão da educação a tarefa de constituir sistemas educacionais que não se resumem a redes escolares, mas que articulam estas a um alargado espectro de agentes educativos.

A outra proposição a destacar é a que desloca o ensino da posição central que convencionalmente veio ocupando, para colocar em seu lugar a aprendizagem. Não se trata de um mero jogo de palavras, mas da admissão de que a aprendizagem é plural e que não decorre linearmente das atividades de ensino. É suficiente, para perceber essa mudança de enfoque, notar que se costuma chamar as redes escolares de sistemas de ensino – é incomum referir-se a elas como sistemas de aprendizagem – e uma expressão utilizada abundantemente nos meios pedagógicos é “processo de ensino-aprendizagem” (com o hífen), que deixa supor uma relação direta e exclusiva de causa e efeito entre esses dois termos.

Não menos importante na Declaração é a ligação que ela estabelece entre educação e necessidades básicas. Afirmar tal vínculo – a Declaração utiliza a expressão “necessidades básicas de aprendizagem” – significa inclusive destituir de fundamento a crença de que a simples oferta de escolarização deva ser a meta das políticas educacionais. Essa crença dá por suposto que tudo o que se ensina e que se exige aprender na escola responde a necessidades das populações. Uma suposição desse tipo despreza o muitas vezes denunciado encerramento das atividades educativas em uma cultura escolar fechada, em parte inútil e, em parte, prejudicial ao enfrentamento de problemas de sobrevivência, saúde, habitação, alimentação, transporte, equilíbrio emocional no convívio familiar, desenvolvimento de talentos e capacidades, desfrute do jogo e da brincadeira, bem como os problemas da participação no desenvolvimento das comunidades e das nações que as englobam.

Uma concepção de educação nesses moldes - ampla e provocadora - é incompa-tível com os costumes mais arraigados que compõem as práticas educativas, destacada-mente os que se apoiam na idéia reduzida de gestão da educação como gestão da educa-ção escolar e, mais precisamente, como gestão de unidades escolares. Incompatível mais ainda com a participação de poucos nas decisões e na participação apenas de educadores. As políticas educacionais adotadas por variados governos, em seus três níveis, algumas vezes incorporaram a diretriz da democratização da gestão. Isso ocorreu nitidamente a partir da primeira metade dos anos 80, com a retomada das eleições para governadores dos estados, no declínio do regime militar. Aquela diretriz chegou a fazer parte da Constituição, em seu artigo 206, como um dos princípios que “regem o ensino”: “gestão democrática do ensino em estabelecimentos públicos na forma da lei”.

Os esforços empreendidos nessa direção permaneceram em grande medida no leito da tradição que entende a educação estritamente como educação escolar, esta como ensino e o ensino dissociado (ou condição remota) da satisfação de necessidades básicas. Em conseqüência, a participação na gestão passou a referir-se a cada unidade escolar e não ao universo muito mais amplo da política educacional.

Mesmo para a democratização da gestão da escola, os governos que a ela deram alguma atenção concentraram-se na criação de meios institucionais de participação nas decisões, envolvendo funcionários das escolas (docentes, técnicos e funcionários não docentes), os alunos e os familiares destes, em geral, compreendidos na categoria “pais”. Esses mecanismos institucionais consistiram principalmente de conselhos escolares ou da escolha de diretoras de escolas com alguma forma de eleições nas quais também votam alunos e pais. A informação disponível sobre o funcionamento desses mecanismos não é muito abrangente nem sistemática. Mas as pesquisas que se fizeram a respeito indicaram efeitos muito tímidos da existência desses mecanismos ou seu caráter demasiadamente formal. Mais recentemente, algumas iniciativas vêm sendo tomadas para tratar a gestão da educação em seu sentido amplo.

Entre essas iniciativas, convém destacar a aprovação do Plano Nacional de Educação como lei pelo Congresso, em janeiro de 2001. É certo que foi aprovado com nove vetos do presidente Fernando Henrique Cardoso, que incidiram principalmente nas metas relativas a financiamento, por exemplo, a de elevar o gasto público com educação até 7% do Produto Interno Bruto brasileiro.

Em São Paulo, desde 2001, o Fórum de Educação da Zona Leste empenhou-se em um processo ainda não concluído de elaboração participativa de um plano local de desenvolvimento educativo. Realizou, desde então, três seminários nos quais cerca de 350 participantes formularam dezenas de propostas de ação para uma educação adequada às peculiaridades dessa região urbana, na qual vivem cerca de quatro milhões de pessoas. Para esse processo, o Fórum convidou profissionais de escolas de diferentes tipos, estudantes de nível médio, líderes comunitários e sindicais. Mas também convidou órgãos públicos de quase todos os setores e dos níveis municipal, estadual e federal: 20 secretarias municipais, 14 estaduais, 11 ministérios e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Fez isso com uma expectativa baixa, que se confirmou de fato porque, do governo federal, esteve presente apenas o Ministério das Comunicações e, do estadual, além das diretorias de ensino da Secretaria da Educação, apenas a Secretaria de Ciência e Tecnologia. Do governo municipal, além dos órgãos responsáveis por escolas, contou com a Secretaria de Esportes, a de Cultura  e a de Meio Ambiente. Não obstante, constituiu-se um grupo de trabalho com 30 órgãos públicos e organizações da sociedade civil encarregado de dar continuidade ao processo ao longo de 2003, ampliando-se e negociando, ainda, responsabilidades, prazos e recursos.

Esse mesmo grupo está em entendimentos com a Secretaria Municipal de Educação para que inicie e faça ampla convocação tendo em vista elaborar, no mesmo estilo, um plano de educação para o município de São Paulo. Esse é espírito que animou todo o processo e que ilustra o significado do primeiro termo do tema Cidadania, participação e controle social da gestão da educação. Ao exercício da cidadania, subordina-se a proposição de controle social. Trata-se da cidadania aqui entendida como o grande desafio da educação e da vida política, traduzida pela palavra corresponsabilidade. Sem que ela se exerça na própria elaboração da educação que se pretende realizar, fica irremediavelmente prejudicada, quando não inviabilizada e sem sentido, qualquer tentativa de controle social remetida à gestão da educação.