Precisamos de uma Ética, mas qual? -
A Introdução da Ética na Escola
Marli Pirozelli N. Silva
(Profa. de C. Sociais - FEI
- Fac. de Eng. Industrial)
A educação, ao lado da saúde vem sendo
apontada como a grande tragédia nacional. Longe de ser uma novidade, este diagnóstico
revela uma situação bastante conhecida e remete à necessidade de ações urgentes e
eficazes. No centro deste debate encontram-se as propostas governamentais, que tem
suscitado inúmeras críticas sobre sua eficácia na solução dos problemas educacionais
a curto e longo prazo.
Dentre as projetos de alcance nacional já
colocados em prática está a produção dos Parâmetros Curriculares Nacionais,
destinados a imprimir uma direção mais uniforme e consistente ao trabalho desenvolvido
nas escolas pelos professores de Ensino Fundamental (1a
a 8a séries).
A grande novidade trazida pelos PCNs é a
introdução dos chamados "temas transversais" que devem permear todo o
conteúdo e a vivência escolar. A justificativa oficial para a escolha dos temas
apóia-se em três critérios: urgência social (porque afrontam gravemente a dignidade
das pessoas e rebaixam sua qualidade de vida), abrangência nacional (sem excluir assuntos
importantes no âmbito local) e possibilidade de efetiva aprendizagem no ensino básico.
Situando nesta categoria os temas:
"Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Orientação Sexual e Saúde", o
projeto governamental expressa e introduz na sociedade não apenas inovações de caráter
metodológico, mas uma concepção de educação e particularmente, uma visão sobre o
papel da escola no contexto atual do país.
Esta proposta parte da percepção de uma
situação social alarmante, que exige uma definição mais ampla das finalidades da
escola e portanto, de seus conteúdos. Trata-se de um currículo "aberto", seja
pelos temas que introduz, que tomam formas diferentes de acordo com o contexto em que se
estabelecem, seja pela própria proposta em si, que prevê a inclusão de novos temas a
partir da relação pedagógica e do contexto social. Sem dúvida, estamos diante de uma
inovação de alcance nacional sem precedentes, o que por isto mesmo acarreta algumas
dificuldades, riscos e questões que necessitam ser melhor examinadas.
Apesar de não ter o caráter de uma
disciplina, o tema Ética fará parte do cotidiano escolar e, portanto, gostaríamos de
ressaltar algumas questões sobre o conteúdo proposto.
A Escola Cidadã
Parece-nos que a despeito do valor
da proposta, a inclusão do tema ética encontra-se diretamente ligado a um apelo
político e social e por isto carrega uma expectativa excessiva por parte dos autores e de
toda a comunidade escolar.
Acredita-se que o ensino de ética será o
grande pilar na reconstrução da sociedade brasileira, ou ao menos terá papel
fundamental neste processo.
Retornando aos objetivos sinteticamente
expostos na introdução dos PCNs, começamos a identificar o valor que os temas
transversais adquirem nesta redefinição do papel da escola " Os temas propostos
expressam conceitos e valores fundamentais à democracia e à cidadania e correspondem a
questões importantes e urgentes para a sociedade brasileira de hoje, presentes sob
várias formas na vida cotidiana. São amplos o bastante para traduzir preocupações de
todo o país, são questões em debate na sociedade através das quais, o dissenso, o
confronto de opiniões se coloca. O desafio da proposta de " Ética" é levar a
escola a esse debate e incentivar que esta incorpore tais temas em sua prática "
(Cfr. Parâmetros Curriculares Nacionais - Ética - Ministério da Educação e do
Desporto, Secretaria do Ensino Fundamental - SEF).
O movimento que deu origem a esta proposta já
se delineava há algum tempo na sociedade sob a forma de uma indignação crescente diante
de situações de exploração, desigualdade, impunidade e aos poucos foi constituindo-se
num clamor nacional pela "ética" em todos os setores da vida social.
A discussão sobre ética, habitualmente
confinada aos domínios filosóficos adquiriu uma relevância social sem precedentes. As
questões morais tornaram-se objeto de conversas e incorporaram-se ao cotidiano do homem
comum, expressando a urgência de uma redefinição nos modelos das relações humanas.
É fácil constatar a desorientação dos
educadores, assim como de toda a sociedade diante de acontecimentos que nos colocam em
contato com este tema, apesar de todos afirmarem a necessidade de uma "postura
ética". Em busca de uma escola que incorpore os anseios sociais e políticos, a
eleição do tema "Ética" expressa a intenção de incentivar a construção de
uma escola atenta à realidade social, condição essencial para qualquer prática
educativa. Além disto, o reconhecimento de que há todo um universo de relações
cotidianas no interior da escola, sempre ignorado ou subestimado pelas propostas
curriculares, permite concluir que "não se educa para o futuro", traduzindo com
nitidez uma postura que educa para a percepção da própria realidade (Cfr. PCN-Ética...).
Qual é então, o papel da escola hoje? Ao
tomar consciência de que "as práticas pedagógicas são sociais e políticas"
e que "a relação educacional é uma relação política" temos assim definido
o objetivo da escola: a formação da cidadania. Este objetivo é ressaltado e vai sendo
coerentemente desenvolvido ao longo do projeto, mas já aparece definido em sua Introdução:
"O presente documento propõe um trabalho explícito, específico e sistemático de
análise de valores, de aprendizagem de conceitos e práticas e de desenvolvimento de
atitudes que favoreçam a convivência democrática e a construção da cidadania." (PCN-Ética...).
A cidadania portanto, torna-se o eixo da
educação escolar, o referencial dos conhecimentos, das práticas e valores que devem
orientar o exercício pleno da participação social. Cria-se a figura da
escola-cidadã, que sintetiza em si os objetivos, métodos e conteúdos da educação
escolar.
Ética e educação do homem à totalidade
Desta forma, constatamos que o projeto está
baseado numa concepção de ética que não se distingue de cidadania. A relação
ética-cidadania existente no projeto (ética para a cidadania) tem como premissa uma
definição de ética que contempla o homem exclusivamente em sua dimensão
sócio-política.
O documento expressa seu entendimento sobre o
termo ética da seguinte forma: "A Ética diz respeito às reflexões sobre as
condutas humanas. A pergunta ética por excelência é: como devo agir perante os outros?
Verifica-se que tal pergunta é ampla, complexa e que sua resposta implica tomadas de
posição valorativas. A questão central das preocupações éticas é a da justiça
entendida como inspirada pelos valores de igualdade e eqüidade" (PCN-Ética...)..
Para isso foram eleitos como eixo de
trabalho, quatro blocos de conteúdo: Respeito Mútuo, Justiça, Diálogo e Solidariedade,
valores referenciados no princípio da dignidade do ser humano, um dos fundamentos da
Constituição Brasileira.
O texto de referência afirma que ética diz
respeito às reflexões sobre as condutas humanas, mas isto pressupõe a existência de
uma direção, um sentido último do agir humano, que é ignorado ou encoberto pela
urgência de uma ação social. Se queremos possibilitar a formação de pessoas com
autonomia moral e não apenas a serviço de normas estabelecidas pelo Estado, a pergunta
ética por excelência desloca-se inicialmente do campo do agir, para o do ser, que
qualifica e fornece as razões ao agir humano.
A exigência que tomou conta da imprensa, das
conversas nos centros de poder, nos centros de produção cultural, nos locais de
trabalho, encobre na verdade a necessidade urgente de um processo educativo que enfatize a
reflexão sobre a natureza do homem e forneça critérios capazes de responder às suas
necessidades pessoais e sociais. Nosso ponto de partida não se encontra em normas ou
preceitos. A concepção de ética, tem como fundamento o ser do homem, a natureza humana.
E implica a realização de todo homem sob pena de uma auto-agressão.
A ética portanto, é entendida como "um
processo de auto-realização do homem, um processo levado a cabo livre e responsavelmente
e que incide sobre o nível mais fundamental, o do ser homem. Quando porém se trata da
moral, a ação humana é vista como afetando, não um aspecto particular, mas a
totalidade do ser do homem. ela diz respeito ao que se é enquanto homem" (Lauand, L.
J. Ética: Questões Fundamentais, p. 7, S. Paulo, DLO-FFLCHUSP, p. 7).
Longe de manter o homem preso aos próprios
interesses, acreditamos que esta postura gera uma relação do homem com a sociedade mais
dinâmica, verdadeira e eficaz, visto que o agir humano parte do reconhecimento do
conjunto de exigências que constituem a natureza humana (desejo da verdade, de justiça,
de beleza).
Desta forma, as perguntas sobre o sentido da
existência , tais como: "O que é ser homem?", "Qual o sentido da
vida?" irrompem novamente na consciência humana de modo inevitável, atravessando a
superficialidade da cultura dominante que produz o esquecimento e a noção de que tais
perguntas são socialmente irrelevantes e devem ser negadas ou simplesmente ignoradas.
É a partir da busca do sentido, que é
característica própria da razão humana, que o homem é capaz de perceber como um valor
a prática da cidadania. Não é este o objetivo de toda a educação? Que o homem possa,
a partir do reconhecimento daquilo que o constitui dar corpo à novas formas de
relacionamento sociais, que muitas vezes surgem de forma imprevista carregando algo novo e
que não estão previstas nos nossos projetos de uma sociedade ideal?
A perspectiva de autonomia, que é enfatizada
no documento e pressupõe uma dimensão individual, parece-nos correr o risco do fracasso.
O documento reconhece um nível ético individual, mas assume claramente como objetivo
"instrumentalizar os alunos na compreensão da realidade e na busca de soluções
para questões sociais", encobrindo novamente a noção de realização da natureza
humana.
Isto significa em termos práticos, que se o
homem não tem consciência de quem é, da estatura humana que pode atingir e abre mão da
busca do significado de sua vida, a solidariedade dificilmente será capaz de manter-se
além de uma ajuda imediata, quando se compreende a impossibilidade humana de soluções
definitivas.
Haveria razões que justificam a necessidade de
ser um bom cidadão além da tolerância mútua? Isto será suficiente para garantir ao
homem a manutenção do desejo que o move em todos os aspectos de sua vida? Como escapar
do poder que nos pede apenas uma atitude de "homologação" como dizia Pasolini?
Não ignoramos que os valores retirados da
Constituição partem do reconhecimento da dignidade humana e constituem um "núcleo
moral" baseado em valores fundamentais como a justiça, igualdade e solidariedade,
que ainda precisam ser implementadas no país. Nossa objeção refere-se à necessidade de
uma abordagem ontológica, que enfatize o fundamento da ética, a raiz de toda a ação
humana.
A sociedade brasileira necessita de ações
urgentes e eficazes, mas a condição para reconstituir o tecido de uma sociedade
esfacelada pela miséria, violência, impunidade e individualismo é ajudar o homem a
fazer a experiência da busca de sentido, do reconhecimento das exigências que o
constituem e o impelem à ação. Desta forma teremos a possibilidade de múltiplas
experiências sociais, que partem de homens que também são cidadãos.
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