O Perfeito Estranho
Profa. Dra. Gabriele Greggersen
(Universidade ABC - São Paulo)
Finalmente chegara o grande dia. Éric não via
a hora de mostrar ao mundo inteiro sua mais recente invenção.
Já aos 5 anos de idade dava mostras do seu
gênio inventivo. No meio de uma fazenda perdida no interior dos EUA, brincando com
pequenos blocos lógicos, ele, como que por coincidência (ou por intuição), montou as
peças de tal forma que formavam uma pirâmide cuja base era um triângulo eqüilátero.
Como se sabe, muito poucos conseguem montar esta figura geométrica - a mais sólida de
todas (a exemplo das pirâmides do Egito) - a partir de outras.
O fato é que Éric, ao ingressar na escola,
revelou-se definitivamente como sendo aquele tipo de criança-prodígio à qual não
escapa absolutamente nada. Mal o professor vira as costas, lá está ele a decifrar
enigmas milenares e a reinventar números misteriosos e descobrir relações fantásticas
da matemática.
Interessante era notar que, a despeito daquele
conceito comum de criança superdotada de espírito sistemático em tudo e hermético,
portador tradicional de óculos fundo-de-garrafa, nosso amigo era antes disperso,
profundamente criativo e imaginativo e muito sensível ao mundo e aos seus dilemas e
vicissitudes. Adorava ouvir e escrever contos-de-fada.
Aos 13 anos de idade, inventou uma substância
capaz de evitar, ou pelo menos reduzir a chance de surgimento da acne nas faces humanas.
Foi um sucesso instantâneo.
Aos 18, graduou-se em bioquímica e eletrônica
e aos 25 já era Ph.D. premiado, com várias publicações e internacionalmente
reconhecido por suas contribuições nos campos da biologia genética e engenharia
eletrônica. E, à medida que envelhecia, parecia mais acirrado nos estudos e na sua
fascinação pela invenção. A ciência foi tomando o lugar que originalmente cabia aos
antigos contos-de-fada, que, embora secretamente ainda o tocassem, não ficavam bem para
um acadêmico do seu porte. Mas nunca deixou de lado aquele gênio imaginativo. Na
verdade, parecia que Éric não passava de um Peter Pan em miniatura que, inconformado com
a predominante gratuidade e falta de nexos no mundo, impunha-se a busca de regras e de uma
ordem de que tanto sentia falta.
E, de fato as relações que previa e
evidenciava, na maioria das vezes podiam ser verificadas e "funcionavam". Por
outro lado, pessoas talvez menos geniais e mais sensíveis ao não necessário, o comum e
simples do mundo, não conseguiam deixar de ter uma inalienável impressão de
artificialismo nas idéias e invenções de Éric.
Não chegavam a ser extravagantes, não. Eram,
de fato geniais. Mas sua genialidade parecia não dizer nada ou pouco afetava as pessoas
ordinárias e seu mundo cotidiano, mesmo porque elas não tinham acesso ao produto de sua
pesquisa.
Então, certo dia, era chegado enfim o momento
mais esperado. Desde sua primeira invenção, Éric sonhava em revelar ao mundo a sua
maior obra. De fato todos deveriam ficar atônitos e reconheceriam à primeira vista que
estavam diante do que representava o primeiro passo de uma nova Revolução Copernicana.
Ninguém jamais na história haveria de superar tal feito, diante do qual os maiores
gênios deste mundo empalideceriam.
Enfim, para que tanto segredo? Na verdade, a
invenção dos sonhos de Éric nada mais era do que a velha fantasia de Michelangelo
concretizada em David, sua mais alta expressão de terribilità: criar um ser, um
ser, com todas as letras, humano. E foi o que fez (ou, pelo menos, pretendia fazer). Não
com pau e pedra, mas com fusíveis, circuitos analógicos, reações em cadeia e coisas do
tipo...
Concretizou assim o sonho de tantos autores
ficcionais futuristas: criar o andróide perfeito.
http://www2.vision.net.au/ftp/pub/cd2/gg/sci_fi/android.gif
Do ponto de vista físico, o andróide
tinha todas as características humanas: cabeça, tronco e membros; sistema respiratório,
sangüíneo, hormonal, nervoso, ósseo, muscular e epidérmico. Era dotado de sentimentos
(ria, chorava e se apaixonava) e inteligência; sabia falar, aprender, expressar opiniões
e julgamentos; tomava decisões refletidas e planejadas.
Só tinha uma diferença: não adoecia (pois
nenhum vírus ou bactéria podia conhecer o seu sistema operacional mais profundo) e não
cometia erros. Éric sentia tanto orgulho de sua invenção que quase teve vontade de
morrer por ele: afinal, o que era ele, Éric, diante de tanta perfeição? E aquele era
seu dia de glória. Éric e seus patrocinadores organizaram um mega-evento, rodeado de
mistério e cobertura jornalística.
Ninguém deveria conhecer ou divulgar o
segredo. Tinha tudo para ser a maior surpresa de toda a história da humanidade. Na noite
daquele dia, já no local da festa, plumas, paetês e muito glamour. Gente famosa
de todo o mundo, carros importados de último tipo, champanhe à vontade, conversas de high
society, entrevistas, flashes, etc. Até que, finalmente, após horas tortuosas de
conversas e rodeios, foi anunciada a apresentação da obra e uma bela moça que falava ao
microfone, numa questão de segundos, num simples aperto de botão, fez baixarem as
cortinas.
O andróide apareceu diante da vista de todos,
no seu traje a rigor e com ar de majestade. Primeiro, houve um silêncio geral. Toda a
platéia mergulhava num estado que beirava a alucinação coletiva.
Antes, porém, das pessoas poderem recuperar-se
do choque e expressar seu abalo de admiração em um grande e uníssono - Ooooooh!, uma
pequena criança aproximou-se timidamente do andróide, puxou da aba de seu fraque e
perguntou-lhe:
- Moço, como você se chama?
O andróide, depois de focalizar bem a face da
criança, que mal notara, e, ao detectar o teor e conteúdo da pergunta, diante da
platéia, que, a estas alturas, era incapaz de um "Ah", a princípio
empalideceu, depois ficou extremamente ruborizado, até que finalmente, começou a
fumegar. Parecia que algum circuito havia entrado em curto. Subitamente, deu um saltou
gigantesco para trás, atirando-se para fora da enorme janela de cristal e saiu em
disparada pelos jardins do palácio de convenções.
Alguns anos depois, uma vez abafado o
escândalo, que havia acionado desde o FBI até a CIA, logo o episódio caiu no
esquecimento da opinião pública, permanecendo registrado nas revistas como nada mais que
um grande "fiasco".
Depois de assentada definitivamente a poeira
provocada por toda esta viravolta, ninguém nunca mais ouviu falar do andróide, nem
tampouco no seu criador, que dizem, ter sido acometido de uma amnésia que o isolaria do
mundo pelo resto de sua vida.
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