A Educação num Divã de Analista
Prof. Dr. João Marcos Romano
(Prof. Adjunto Fac. Eng. Elétrica e
de Computação UNICAMP)
Nunca estive num divã de analista e nem sequer estou certo de
sua existência. Já vi em filmes, mas os consultórios médicos que conheci só tinham
cadeiras comuns e uma maca geralmente curta e estreita. Mas deve ser bom deitar-se sem
sapatos num divã e esmiuçar a própria vida até um encontro feliz com a própria
normalidade. Por que não submeter então a este tipo de prova as Instituições que nos
rodeiam ou onde exercemos a profissão e passamos a maior parte de nosso tempo? São
nossos lares normais? E as escolas? Se não são, a primeira coisa a fazer é tentar
constatar até que ponto, para depois procurar o tratamento adequado.
Quando questionado sobre o que considerava uma pessoa normal,
Freud respondeu :
- Alguém cuja vida consiste de amor e trabalho(1).
Qualquer programa pedagógico deveria ter diante de si seu
modelo de normalidade, isto é, saber colocar e responder a questão de para que ensinar e
da finalidade de todo e qualquer processo educativo. Se toda a ciência médica, inclusive
a psiquiatria está voltada para tornar o paciente normal, biologica e psicologicamente
normal, é razoável concluir que se parte do princípio de que esta normalidade é um bem
a se perseguir e que há portanto uma forte correlação entre normalidade e felicidade.
Ninguém vai ao médico, ao psiquiatra, ou mesmo ao dentista para sair de lá mais infeliz
do que entrou. Mesmo que o processo de cura suponha dores e incômodos, existe a firme
esperança de se tornar melhor (fisica ou mentalmente melhor), o que em última instância
associamos à idéia de se tornar mais feliz.
Quando procuramos a nossa normalidade, procuramos estar
felizes, e esta normalidade não é outra coisa do que estar apto ao trabalho e ao amor,
tornar-nos capazes de criar e de dar, cumprindo assim o destino que, já nas primeiras
páginas do Gênesis, surge como tendo nos sido dado desde o início: trabalhar ("para
que o cultivasse e guardasse...") e amar ("...não é bom que o homem
esteja só").
Todo o sistema de ensino e educação, seja em que nível for,
só será realmente eficaz se tiver diante de si esta finalidade e for posto em prática
em coerência com ela. É ineficiente um sistema de ensino que gera anormais, que gera
egoístas e, em última instância, gera infelizes. O processo educativo pode (e, na maior
parte das vezes, deve) custar esforço, ser doloroso. Mas, tal como a cura, tem que se
fundamentar numa esperança, não na esperança tola de que a dor um dia passa, mas na
esperança de que ao final seremos melhores, mais normais, mais homens ou mulheres do que
éramos antes.
Vem como um corolário mais ou menos óbvio que, num sistema
educativo baseado nestes princípios, a primazia não está na quantidade, nem muito menos
na complexidade, dos conhecimentos que se transmite. Isto equivaleria mais ou menos a
julgar o médico pela sofisticação dos tratamentos que emprega e não necessariamente
pela saúde final de seu paciente. No caso do educador, ou da Instituição de ensino, a
saúde do paciente se mede pelo seu potencial de trabalho e de amor, termos dos quais vale
a pena extrair um pouco do significado, para não se correr o risco de ser mal entendido.
Antes porém é interessante notar que uma tal visão de educar
não está em desacordo com a conhecida análise etmológica, baseada no binômio educare/educere.
Preparar alguém para amar e para trabalhar supõe necessariamente o educator, pois
uma vida normal, uma vida de amor e trabalho, não se forja espontaneamente. Sem querer
aqui esmiuçar o assunto, sabemos por experiência própria e por observação da vida
alheia que todo o ser humano experimenta alegria no sair de si. Mais do que
isso, alguns filósofos contemporâneos associam esta transcendência ao próprio
conceito de pessoa, em contraposição à definição formulada por Boécio (séc. VI): naturae
rationalis individua substantia (substância individual de natureza racional), que
sublinha a dimensão da individualidade.
O que quero ressaltar aqui é que, embora a dimensão de comunicabilidade
seja fundamental no conceito mais recente de pessoa, ela demanda um esforço para crescer
e enriquecer. Se por um lado a pessoa humana encontra a sua plena realização na
transcendência; suas limitações, sejam de ordem física, psíquica ou moral, tendem a
encerrá-la no individualismo. Esta redução é a antítese do que defendo aqui como o
genuíno processo educativo. Educação para crescer como pessoa, educação para sair de
si, desabrochar (educere). Educação que por outro lado supõe um esforço, metas,
deixar-se conduzir (educare) livremente neste caminho de aperfeiçoamento. O
processo educativo assim entendido tem a finalidade, tão modesta e ao mesmo tempo tão
ambiciosa de gerar pessoas normais.
Amor
A sociedade que não educa para o amor gera anormais e
infelizes. É claro que o nível de anormalidade e infelicidade depende do quão viciado
estiver o processo educativo como também das próprias características humanas da vítima
deste processo. Os regimes totalitários que vimos florescer e, felizmente,
desmoronar, neste nosso século, são os exemplos mais dramáticos de até onde pode
chegar a catástrofe quando se educa uma ou mais gerações em oposição à realização
plena da pessoa, na sua sagrada individualidade e no seu anseio de comunicar, de
solidarizar-se.
Mas a sociedade que se procura construir hoje sobre os
escombros do totalitarismo não está isenta de repetir velhos erros com novas fórmulas.
Na medida que se educa, por exemplo, para o êxito, para o sucesso, ou ainda para aumentar
a produção, reduz-se drasticamente o conceito de pessoa e dos bens pelos quais anseia.
Neste momento, a mesma sociedade que produz o veneno procura
produzir um antídoto com a mesma velocidade, de maneira a abafar toda a carga de
angústia e infelicidade que possa estar sendo gerada num processo (des)educativo. Um
grande sintoma que logo se percebe é a deturpação, ou mesmo a manipulação dos termos.
Por exemplo, não se pode assumir que não se educa para o amor, é mais fácil
"redefinir" o termo segundo os interesses.
A este propósito Pieper(2) comentava que, ao folhear essas
revistas que pululam nos cabelereiros e salas de espera, sentia o desejo irresistível de
nunca mais pronunciar a palavra "amor". Mas o mesmo autor concluía em seu
ensaio que não se pode simplesmente calar e deixar de lado essas palavras básicas, como
também não se pode substituí-las por outras.
Palavra multifacetária que pode expressar, conforme o The
Four Loves de C. S. Lewis, afeição, amizade, o amor entre homem e mulher, até o
amor a Deus e de Deus. Em qualquer destas esferas pode-se falar, em expressão do mesmo
autor, do amor que nos leva a trabalhar (...that love which move a man to work...).
Propor que uma sociedade, através da família e das insituições de ensino, eduque para
o amor, não deve ser entendido pelas vias da ingenuidade ou da pieguice. Trata-se de
fomentar numa geração o desejo de desenvolver suas aptidões para poder melhor servir.
Para isto, é necessário destruir falsos ídolos.
O êxito e o sucesso, que se traduzem em última análise em
conseguir riquezas, poder e notoriedade, são desses ídolos que se apresentam à
sociedade atual. Parece que nunca a juventude teve uma postura tão pragmática nas salas
de aula. Ao invés daquele desejo genuinamente jovem de aprender, a ânsia de saber,
multiplicam-se os casos de estudantes desmotivados (e, diria, "envelhecidos")
perguntando-se sobre o que vai cair nas provas, o que se precisa saber para conseguir este
ou aquele emprego, ou questionando a importância de tantas teorias inúteis na vida
prática.
Por outro lado, sempre pode haver juventude. Aproveitando a
expressão poética de Milton Nascimento, podemos dizer que o coração de estudante
sempre bombeou sangue fresco às instituições, da Sorbonne da Idade Média aos mais
avançados campi americanos. Se atualmente se faz sentir um resfriamento, é o momento de
questionar a nossa atuação como docentes e, em conseqüência, a atuação da
Universidade como instituição. No nosso modo de ensinar (que longe de se limitar a uma
mera didática em sala de aula, estende-se a toda uma atuação de vida profissional)
estão como que embutidas uma série de razões pelas quais vale (ou não vale) a pena
aprender.
Durante várias gerações enganou-se toda uma juventude com
falsos amores. É interessante a este propósito citar uma passagem de As Grandes
Amizades de Raïssa Maritain, que serve como testemunho de uma brilhante estudante da
Sorbonne do início do século : a única lição prática que se poderia receber
daquele ensino consciencioso e desinteressado era uma lição de relativismo integral, de
ceticismo intelectual e, se houvesse lógica, de niilismo moral. Os rapazes saiam de seus
estudos filosóficos confiando nas idéias apenas como instrumentos de retórica, e
inteiramente desarmados para as lutas do espírito e para os conflitos do mundo. É então
que começávamos a perder as batalhas da humanidade e da França contra a nova barbárie,
adornada ainda por algum tempo dos prestígios de uma cultura já gasta, já hipócrita, e
já pronta para a adoração da força.
A barbárie se impôs em diversas ocasiões ao longo deste
século, vimos construir os Auschwitz e os Gulags. E mesmo depois de tê-los derrubado,
não estamos ainda livre dos relativismos e dos ceticismos. Talvez ainda se estejam
elaborando novas mentiras para contar a nossos estudantes e preparando-os para adorar
outros tipos de força: a força do mercado, da tecnologia desvinculada de valores
humanísticos, a força de uma falsa ética superficial que serve mais como figura de
retórica e prescinde de valores morais que realmente libertem e realizem a pessoa humana.
As vítimas mais evidentes dessa nova ordem já não são mais enviadas aos campos, mas
vão formando bolsões de miséria na periferia das grandes metrópoles do mundo,
excluídos dos benefícios que a sofisticação tecnológica traz.
Educar para o amor começa talvez por encontrar maneiras
concretas de dizer a nossos estudantes que este é um preço muito alto a se pagar pelo
progresso, pela eficácia, e apresentar-lhes alternativas convincentes e realistas.
Trabalho
Certa vez o diretor de uma renomada escola de engenharia
comentava que o seu objetivo era formar profissionais generalistas e com boa inserção no
mercado.
Se de um lado a afirmação parece satisfatória, um exame mais
profundo vai nos levando a perceber que é absolutamente vazia de conteúdo. O que
significa ser generalista ? Pretende-se ter uma boa inserção no mercado para fazer o
quê?
São perguntas que chocam aqueles que vêem a formação
universitária única e exclusivamente como preparatória para o exercício de uma
profissão. O problema é que esta visão é hoje absolutamente majoritária entre
professores universitários, ao menos nas chamadas áreas tecnológicas.
Perder de mira a idéia de que aprender é um fim em si, deixar
de fomentar nos estudantes o gosto em descobrir as verdades da ciência ou da filosofia,
está na origem de um estudo pragmático e desestimulante. Por outro lado, é difícil
cultivar o amor a verdade se somos ao mesmo tempo relativistas e céticos. É difícil um
ensino desvinculado de interesses imediatistas quando a sociedade acena aos jovens que o
sucesso profissional, acompanhado da devida contrapartida financeira, é condição única
e suficiente para a felicidade.
Novamente, há que se voltar os olhos para nosso modelo de
pessoa normal para não perder o ponto de mira. Sua vida consiste de amor e de trabalho,
como é normal e não esquizofrênico, vive essas duas realidades de forma harmônica. O
amor lhe move ao trabalho e no trabalho põe à prova e robustece seu amor. Trabalha
porque ama, trabalha por amor. Evidentemente um trabalho assim entendido requer uma
formação profissional de excelência. Já não se quer aprender mais apenas para galgar
degraus, mas para poder fazer mais, porque se ama. Mais ainda, vê-se já no aprendizado
uma tarefa a ser bem trabalhada, estuda-se e aprende-se por amor. Neste ponto o amor aos
semelhantes e o amor à verdade se encontram e se fundem numa única realidade. E aí
bate, forte como deve ser, o coração de estudante.
(1) Rama P. Coomaraswamy, Freud e a Religião, Jornal da Tarde 26-12-1992.
(2). "O que é o Amor?" Rev. da FEUSP 18, 2, jul.-dez.
1992, p. 253-263.
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