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A “Saudade” na Canção
Sertaneja Brasileira

 

Alberto Marianetti
Brazilian Journalist, Lawyer,
Master of Arts - Juridical and Social Sciences

 

A expressão da interioridade humana pode assumir diferentes formas: um meneio de cabeça, um aperto de mão, um sorriso, uma piscada de olhos, um tapinha na barriga, e até mesmo o próprio silêncio. O que num determinado país significa uma coisa pode ter um significado bem diferente em outro. O que pode ser sinal de amizade num lugar pode provocar briga em outro. Um exemplo entre muitos: o característico gesto indiano de aprovação, balançando delicada e ligeiramente a cabeça para os lados, no Brasil significa desconformidade ou dúvida.

Estamos diante do difícil, vasto e apaixonante mundo da linguagem humana, que é algo cultural, uma convenção que precisa ser aprendida.

Através do dinâmico veículo da linguagem, aqui vista em sentido amplo, o ser humano manifesta a sua interioridade. [i] A linguagem, portanto, pode ser entendida como um método exclusivamente humano, não instintivo, de comunicar idéias, emoções e desejos por meio de um sistema de símbolos produzidos de maneira deliberada. [ii] É evidente, porém, que a linguagem falada é a forma de expressão mais importante da cultura. [iii] E, em termos de arte, quando a linguagem utiliza o veículo privilegiado da música, a expressão dos sentimentos adquire um caráter todo especial.

A música, de fato, potencia, acompanha e expressa os sentimentos. Cantar é, provavelmente, uma das formas mais bonitas de externar o que sentimos. Pode-se cantar tanto a alegria quanto a dor, a solidão e a satisfação de estar perto de algo ou alguém. Quando a música se interioriza pessoalmente, transforma-se em canção. [iv]

Por isso, nada como olharmos, no presente estudo, para a letra singela da genuína música serteneja brasileira, carregada de sentimento sincero do povo, de um povo que tem, que sente e que canta a saudade. Ainda que, por vezes, dentro da simplicidade que lhes caracteriza, algumas letras careçam de precisão ortográfica e correção gramatical, exata é, porém, a expressão do sentimento que o autor deseja transmitir.... cantando!

Eu canto porque o instante existe
E a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
Sou poeta. (...)

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada (...) [v]

Como traduzir para outras línguas a palavra saudade? Ou, mais do que um problema puramente técnico, de simples tradução, como entender o sentimento de saudade? Tarefa árdua que o tradutor da língua portuguesa bem conhece.

Nesse sentido, o mundo lusófono tem a sua palavra por excelência. A interação palavra-vida torna-se ainda mais decisiva quando se trata de atingir sentimentos mais sutis e complexos do coração humano: neste caso cada povo costuma costuma gerar a palavra que se apropria do sentimento que é mais conatural e, reciprocamente: o sentimento se torna como que conatural porque a palavra se apodera do falante desde a infância. [vi]

Como método a ser seguido, dentro desse nosso estudo, vejamos, em primeiro lugar, o que alguns bons dicionários têm a dizer sobre o significado da palavra saudade. Depois, deixemos que o próprio povo, com espontânea simplicidade, diga como a saudade é sentida e cantada através dos versos da música sertaneja.

Bons dicionários estrangeiros precisam fazer, com muito mérito, um compreensível e inevitável malabarismo vocabular para tentar traduzir para outras línguas (como o inglês) a palavra saudade: 1 (casa, pais) homesickness; 2 (pessoa) longing; 3 (passado, infância) nostalgia; (sentir/ter saudades) to miss. [vii]

Não são apenas os dicionários estrangeiros que têm dificuldades com o verbete saudade. Bons e conceituados dicionários da língua portuguesa também não ficam isentos de problemas, como podemos comprovar:

Saudade.  Sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável .(...)  Etimologicamente, do  latim solìtas,átis 'unidade, solidão, desamparo, retiro'; der. do lat. sólus,a,um 'só, solitário', que se conservou nas línguas hispânicas, esp. soledad, port. saudade, onde ocorrem ainda as formas sodade, com monotongação au > o, e soidade. [viii]

Saudade. 1. Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoa ou coisa distante ou extinta. 2. Pesar pela ausência de alguém que nos é querido. [ix]

É interessante notar que o significado de saudade, exclusividade da língua portuguesa, distanciou-se do seu significado primitivo, ou melhor, etimológico. Hoje, de fato, saudade não se refere ao sentimento de solidão, significado conservado, por exemplo,  em outras línguas românicas, como o espanhol (“soledad”) e o catalão (“soledat”).

Vale a pena recordar, aqui, o que Heidegger afirma: “Não é verdade que nosso pensamento viva de etimologias. Vive, antes, de pensar a atitude vigorosa daquilo que as palavras, como palavras, nomeiam de forma concentrada. A etimologia, junto com os dicionários, ainda pensa pouco demais”. [x]

A saudade do lusoparlante é um sentimento agridoce, complexo, sutil e desejável. A saudade é nostálgica e suave. É uma dor e um desejo que só quem ama é capaz de sentir. É uma prova de amor. 

Como se vê, estamos diante não apenas de um problema técnico de tradução mas diante da expressão de um traço típico da cultura brasileira, ou melhor, do mundo lusófono.

A autêntica música sertaneja, simples e singela, é o gênero de música mais difundido no Brasil. Cantada no campo e na cidade, perto do ainda existente fogão de lenha de uma casa modesta ou na varanda do rico fazendeiro, a música serteneja, herança rica, é passada de pai para filho. Ela é capaz de expressar com simplicidade o sentimento de saudade que o homem do campo alberga em seu coração. É de muita importância, dentro desse nosso breve estudo, ver o que a voz do cantor sertenejo diz, uma vez que a linguagem comum, que expressa o uso do povo, é um valioso depósito de profundas intuições sobre o homem e o mundo. [xi]

É realmente impressionante o número de vezes que a palavra saudade aparece na letra da genuína música sertaneja brasileira. Na realizaçao do presente estudo, 220 canções foram estudadas. A palavra saudade aparece em 52 delas, ou seja, em mais de 23,6% . Mesmo para um lusoparlante, amante da música sertaneja, essa proporção não deixa de ser um dado suurpreendente. Não menos impressionante é a variedade de situações em que o poeta sertanejo inclui a palavra saudade. Além do caráter ilustrativo, a citação de alguns trechos, que fazemos, a seguir, é bastante útil para uma melhor compreensão do significado da saudade.

a) Suave sentimento de incompletude

Quando eu desço pela estrada
e olho a casa abandonada
sinto, ao vê-la, não sei o que...
anda tudo uma uma tristeza
com saudade de você. [xii]

b) Doce recordação

Oh que saudade que eu tenho
Que doce recordação
Da minha casa de páia
Que eu deixei lá no sertão. [xiii]

c) Bem desejável

Tenho saudades de rever nas corrutelas
As mocinhas nas janelas
Acenando uma flor. (...)
Canção que fala da saudade das pousadas
Que já fiz com a peonada
Junto ao fogo de um galpão.
Saudade louca
De ouvir o som manhoso
De um berrante preguiçoso. [xiv]

d) A dor da saudade

Uma sodade é dor que não consola,
Quanto mais dói a gente qué lembrá (...)
O que é sodade,
Uma lembrança que vancê nunca sentiu. (...)
No dia que doê seu coração,
De uma sodade que eu tanto senti. [xv]

Ninguém compreende, a grande dor que sente
Um filho ausente a suspirar por ti.
Uma saudade que punge e mata, que sorte ingrata
Longe daqui. [xvi]

Saudade palavra triste quando se perde um grande amor
Na estrada longa da vida, eu vou chorando a minha dor. [xvii]

A saudade nas noites de frio
Em meu peito vazio irá se aninhar...
A saudade mata a gente, morena,
A saudade é dor pungente, morena! [xviii]

Ainda ontem, chorei de saudade,
Relendo a carta
E sentindo o perfume,
Mas o que fazer com essa dor que me invade [xix] ?

A tua saudade corta,
Como aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
E os óio se enche d’água
Que até a vista se atrapaia, ai, ai, ai [xx] .

e) Prova de amor

Meu pai eu quero casar
Com a Marica criolinha
É verdade que ela é preta
Mas é muito bonitinha
Eu tenho sodade dela
E ela tem sodade minha. [xxi]

O meu amor foi-se embora
Saudade no peito cresceu. [xxii]

Por um lado, talvez possa parecer contraditório, à primeira vista, que o homem comum tenha a saudade como dor, e uma dor  que, de certa forma, ele gosta e se orgulha de ter. Por outro lado, porém, fica claro, também, que o que faz com que alguém goste de ter saudade é o amor. Só quem ama tem saudade

Saudade é aquela doce lembrança que gostamos de ter. É aquele delicioso pungir de acerbo espinho, no dizer de Almeida Garret. Gostamos de ter saudade, porque é sinal de que temos coração, de que amamos, de que somos normais, de que temos uma sã interioridade.

Como é possível gostar de sofrer? Como é possível gostar da dor da saudade? “Tomás de Aquino, no século XIII (quando mal havia português e não estava formada a palavra saudade), fez um agudo diagnóstico: a dor –diz ele- é por si contrária ao prazer, mas pode acontecer que um efeito colateral da dor seja deleitável, como quando produz a recordação daquilo (pessoa, terra, etc.) que se ama e faz perceber o amor daquilo po cuja ausência nos doemos. E assim, sendo o amor algo deleitável, a dor e tudo quanto provém desse amor também o serão”. [xxiii]



NOTAS  E  REFERÊNCIAS

[i] R. Yepes Stork e J. Aranguren Echevarría, Fundamentos de Antropología, 3ª. Edição, Eunsa, Pamplona, 1998, pp. 39-41.

[ii] E. Sapir, Language, Harcourt, New York 1921, p. 7.

[iii] Leonardo Polo, Quién es el hombre, Madrid, Rialp, 1991, pp. 154-166.

[iv] R. Yepes Stork e J. Aranguren Echevarría, op. cit., p. 53.

[v] Cecília Meireles, Viagem – Vaga Música, 2ª. Ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1973-1976, p. 5.

[vi] L. J. Lauand, Conferências de Filosofia http://www.hottopos.com.br/videtur9/renlaoan.htm

[vii] Dicionário Oxford Escolar, para estudantes brasileiros de inglês, Oxford University Press, 1999, p. 244.

[viii] Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.

[ix] Aurélio, O Minidicionário da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, 4ª. Ed., Rio de Janeiro, 2001, p. 624.

[x] M. Heidegger, Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 126.

[xi] L. J. Lauand, Linguagem, Filosofia e Educação, notas de uma conferência proferida na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 10/9/02.

[xii] A Casinha da Colina, Luiz Peixoto, Antonio S. Pereira e Pedro Sé.

[xiii] Casinha de Páia, Alvarenga e Ranchinho.

[xiv] Mágoa de Boiadeiro, Nonô Basílio e Índio Vago.

[xv] Moirão da Porteira, Raul Torres e João Pacífico.

[xvi] Piracicaba, Newton Almeida Mello.

[xvii] Meu Primeiro Amor, Hermínio Gimenez, José Fortuna e Pinheirinho Jr.

[xviii] A Saudade Mata a Gente, João de Barro e Antônio Almeida.

[xix] Ainda Ontem Chorei de Saudade, Moacyr Franco.

[xx] Cuitelinho, Folclore recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Xandó.

[xxi] Marica criolinha, Florêncio.

[xxii] Pomba do Mato, Raul Torres.

[xxiii] L. J. Lauand, Conferências de Filosofia, op. cit.