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(notas da conferência proferida no Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte IVFac. de Educação da Universidade de São Paulo, 10-9-02)

Jean Lauand
Prof. Titular FEUSP
jeanlaua@usp.br

 

Linguagem e Filosofar

Dedicaremos esta conferência a alguns fenômenos de linguagem, explorando alguns aspectos de particular interesse para a Filosofia e para a Educação (como muitas considerações sobre o tema já estão publicadas em artigos de minha autoria por esta mesma editora, remeterei, em cada caso, a essas publicações).

Santo Tomás de Aquino começa sua Suma Contra os Gentios recomendando a atenção para a linguagem comum: quando se trata do significado das palavras, deve-se seguir o uso do povo (Multitudinis usus, quem in rebus nominandis sequendum...”.

Essa, aliás - como faz notar Pieper -, chega a ser uma característica de todos os grandes pensadores clássicos: Platão, Aristóteles, Agostinho, Tomás, Confúcio, Lao-Tsé... Todos eles estão atentos à linguagem comum, como depósito de profundas intuições sobre o homem e o mundo.

Josef Pieper aprofunda nas razões desse fato: “Sabemos muito mais do que aquilo que somos capazes de exprimir de improviso, em palavras precisas, num determinado momento. E talvez aconteça que o que digamos de fato passe à margem de nossasverdadeiras convicções. Precisamente aí é que reside a dificuldade inerente às pesquisas deopinião, quando o seu objeto diz respeito não à existência exterior, mas à interior. As respostas expressam aquilo que os entrevistados acham que pensam, enquanto sua verdadeira opinião lhes escapa e se esconde a tais apressadas pesquisas. ‘O senhor crê na imortalidade?’ (este foi o tema de uma recente pesquisa internacional). Não é um resultado muito significativo o fato de que na Alemanha, 47% dos entrevistados tenham respondido afirmativamente. O que realmente um homem pensa da imortalidade possivelmente só se tornará claro (talvez até para sua própria surpresa) num momento de abalo existencial; uma rápida entrevista tem pouca probabilidade de penetrar na dimensão em que se situam tais convicções. Precisamente as nossas certezas mais vitais - as que atingem nosso fundamento e o do mundo, de que temos tanta segurança que por elas orientamos nossas vidas - estão fadadas a se transformarem logo em existência viva; se tudo segue seu caminho normal, convertem-se em vida vivida, tornam-se realidades, concretizam-se” [1] .

Concretizam-se principalmente em linguagem! E “ainda que não se dêem a conhecer de modo imediato, essas experiências estão presentes e ativas, e quem queira expressá-las deve ultrapassar o que se manifesta na superfície e procurar atingi-las para, por assim dizer, retraduzi-las em forma de enunciado” [2] .

Assim, quando o filosofar se volta para a linguagem comum, não está praticando um procedimento periférico, mas atingindo algo de muito essencial, pertencente ao próprio núcleo da reflexão filosófica. Na verdade, as palavras têm um potencial expressivo muito maior do que nós - tão familiar e quase automático é o uso que delas fazemos - possamos imaginar. Daí a atenção do filósofo para os modos de dizer, os contextos, as sutilezas da linguagem comum, em sua própria língua ou em outras.

Como é bem sabido, é nessa linha, a de buscar “o que dizem as palavras na experiência originária de pensamento” [3] , levando ao extremo as análises etimológicas - que se situam as reflexões de Heidegger, que chega a afirmar: “o acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem”. [4]

A seu modo, também o filósofo pode subscrever a conhecida sentença de Fernando Pessoa: “Minha pátria é a língua portuguesa” [5]

S. Tomás e as etimologias das formas quotidianas

Para este tópico, remeto ao artigo “Antropologia e Formas quotidianas - a Filosofia de S. Tomás de Aquino Subjacente à nossa Linguagem do Dia-a-Dia”, que esta em: http://www.hottopos.com/notand1/antropologia_e_formas_quotidiana.htm . Nele analiso o significado profundo das diversas formas de convivência (gratidão, felicitações, pêsames etc.) em diversas linguas, procurando mostrar a conexão de sentido dessas formas com o pensamento do “último grande mestre de um cristianismo ainda unido”, para usar a fórmula de Pieper.

Assim, quando dizemos um simples “obrigado” ou “parabéns” estamos expressando (inconscientemente) densas teses filosóficas e teológicas. É nesse sentido que até um José Saramago pode afirmar: "Há uma evidência que não deve ser esquecida: no que respeita à mentalidade, sou um cristão"(Cadernos de Lanzarote III, 1996, p. 81, 31.III).

Duas peculiaridades do português

1. Dias da Semana. João Paulo II (Dies Domini, Nota 22) destaca - entre outros encantadores fatos da língua portuguesa - o de que os nomes dos dias da semana em nossa língua são: segunda-feira, terça-feira etc.

Os nomes dos dias da semana nas outras línguas remetem a divindades pagãs/planetárias: do dia de Thor (Donnerstag, Thursday, Thor’s day) aos viernes, lundi, saturday etc.

Feria em latim é a palavra para festa. Ora, como genialmente faz notar Josef Pascher: para a liturgia todo dia é dia de festa e é por isto que a liturgia chama o dia comum (/que não é comum: é sempre de festa) de feria... Festa porque o culto cristão -o sacrifício de Cristo, a Santa Missa- se realiza em meio à criação: toda a criação é -por Cristo, com Cristo e em Cristo- oferecida ao Pai. Assim, a liturgia fala em feria, em festa, porque em vez das superstições dos astros, celebra a Cristo. Comentando o Salmo 93 (En. in Ps. 93, 3), S. Agostinho diz: "O primeiro dia depois do sábado é o domingo, dia do Senhor; o segundo é a secunda feria, à que os profanos chamam diem Lunae; a tertia feria, diem illi Martis; a quarta feria é o que os pagãos chamam de dia de Mercúrio e o pior é que muitos cristãos também... Não admitamos isto! Oxalá se corrijam e abandonem este modo de falar e usem a linguagem que é nossa (...) pois Cristo aboliu as superstições".

Nessa mesma linha, S. Tomás diz (Super Ev. Io. cp 20 lc 1) que o domingo é a “primeira feira”, prima feria, e isso por causa da Páscoa: assim como o Gênesis começa com o dia, assim também a Páscoa em que principia o mistério da nova criatura e se renova a face da terra é o Dia, a Feria. A Páscoa é o dia da Ressurreição no qual inchoabitur dies aeternitatis, "começa o dia da eternidade, no qual já não se alternam dia e noite, pois o Sol que faz esse dia, já não morre"

2. Saudade. Outra sugestiva peculiaridade do português é nossa palavra saudade.

O pensamento e a vida estão mais ligados à linguagem do que em geral supomos. A força viva da palavra não só transmite, mas até mesmo gera e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos, o que podemos pensar e sentir...

Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. Valem para toda a realidade humana as considerações sobre a "latência", que Moles tece em seu livro O Kitsch. Valendo-se de uma metáfora fotográfica, ele fala de uma revelação das impressões confusas, pelo surgimento de um vocábulo: "O surgimento nas línguas germânicas de um termo preciso (‘Kitsch’) para designá-lo levou-as a uma primeira tomada de consciência: através da palavra, o conceito torna-se passível de apreensão, e manipulável... O trajeto científico para conhecer, começa por nomear". De fato, sem a posse da palavra Kitsch é-nos muito mais difícil reparar em que há, no fundo, qualquer coisa de comum entre o pingüim da geladeira, o anãozinho do jardim e oquadro de cores fosforescentes... É precisamente neste ponto fundamental para a educação que Pieper insiste em Das Viergespann: a interação entre a possibilidade de percepção (e vivenciamento da realidade moral) e a existência de linguagem viva.

O empobrecimento do léxico é assim, hoje, um dos principais problemas da educação, na medida em que gera um círculo, literalmente, vicioso: a falta de linguagem viva embota a visão e o vivenciamento da realidade; o definhamento da realidade esvazia (ou deforma) as palavras... Faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos acesso à realidade. Certamente ocorre, antes da formação do conceito em nossa mente, aquilo que Tomás de Aquino chama de collatio, um ajuntamento e comparação de impressões, uma pré-abstração, feita pela "capacidade cogitativa" (para usar uma vez mais a linguagem do Aquinate). Contudo, enquanto não há conceito e palavra, andamos inquietos à busca deles, ou passamos à margem da realidade sem nem sequer a ver. Aquela inquietude que se manifesta tão claramente na teimosia com que nos esforçamos por trazer à memória um nome esquecido...

A interação palavra-vida torna-se ainda mais decisiva quando se trata de atingir sentimentos mais sutis e complexos do coração humano: neste caso, cada povo costuma gerar a palavra que se apropria do sentimento que é mais conatural e, reciprocamente: o sentimento se torna como que conatural porque a palavra se apodera do falante desde a infância.

Nesse sentido, Portugal e Brasil têm a sua palavra por excelência, que certeiramente penetra nos meandros do coração e atinge aquele complexo agridoce que chamamos saudade. Como, por exemplo, traduzir para outra língua o verso da canção de Isolda: "Das lembranças que eu trago na vida você é a saudade que eu gosto de ter...?"

Tomás, no século XIII (quando mal havia português e não estava formada a palavra “saudade”), fez um agudo diagnóstico - em que inclui até a explicação causal - da saudade: a dor - diz ele - é por si contrária ao prazer, "mas pode acontecer que um efeito colateral (per accidens) da dor seja deleitável, como quando produz a recordação daquilo (pessoa, terra, etc.) que se ama e faz perceber o amor daquilo por cuja ausência nos doemos. E assim, sendo o amor algo deleitável, a dor e tudo quanto provém desse amor também o serão" (I-II, 35, 3 ad 2).

Se a caracterização em si já é perfeita, ela se mostra mais genial ainda quando nos lembramos que São Tomás não era português nem brasileiro...

A voz média

Para este tema, veja-se a entrevista que realizei com o Prof. Dr. Mario Bruno Sproviero: “Linguagem e Consciência - a voz média”, que se encontra em: http://www.hottopos.com/mirand3/linguage.htm

As línguas antigas dispunham de uma fantástica terceira voz: a voz média. Emprega-se a voz média para ações que não se enquadram propriamente na voz ativa nem na voz passiva. Quer dizer que há ações que não são ativas nem passivas? É, é isto mesmo! O verbo nascer por exemplo não é ativo nem passivo: eu nasço ou sou nascido? Sim ,certamente sou eu que nasço, mas não exerço ativamente esta ação...; por isso o inglês fala do nascer na passiva: I was born in 1952. O mesmo acontece, por exemplo com o morrer: a ação é minha, mas não é minha... A língua espanhola procura suprir a lacuna da voz média, tornando reflexivos verbos que em português não o são: Yo me muero etc.

As canções de Paulinho da Viola trabalham muito com esse conceito de voz média; como no samba “Timoneiro”, do qual procedem os maravilhosos versos: "Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar..."

Timoneiro
(P. Viola - Hermínio Bello de Carvalho, 1997)

Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar
É ele quem me carrega
Como nem fosse levar

E quanto mais remo mais rezo
Pra nunca mais se acabar
Essa viagem que faz o mar em torno do mar
Meu velho um dia falou
Com seu jeito de avisar

"Olha, o mar não tem cabelos
Que a gente possa agarrar"

Timoneiro nunca fui que eu não sou de velejar
O leme da minha vida Deus é quem faz governar
E quando alguém me pergunta como se faz pra nadar
Explico que eu não navego quem me navega é o mar
A rede do meu destino parece a de um pescador
Quando retorna vazia vem carregada de dor
Vivo num redemoinho, Deus bem sabe o que Ele faz
A onda que me carrega, ela mesma
É quem me traz

 

Assim são voz média em latim: nascer (nascor), morrer (morior); falar (loquor: é falando com você que eu falo comigo mesmo); confessar (confessando eu me arrependo) etc.

O sistema língua/pensamento semita

Sugestivas características do sistema lingua/pensamento árabe estão no estudo “Os Amthal na Cultura Árabe” em : http://www.hottopos.com.br/collat5/amthal.htm

Ajunto aqui uma breve nota, de interesse para os estudiosos da Bíblia. Para além dos semitismos de linguagem, há também os de pensamento. Por exemplo, freqüentemente na Bíblia vale o dito "nomen, omen", o nome indica o destino ou a missão de seu portador. Certamente, os cristãos de hoje não dão muita importância a isto (por que um nome, convencional, teria que ver com o que a pessoa é?), mas, seja como for, a Bíblia está repleta de passagens em que Deus faz questão do nome ("E por-lhe-ás o nome de Jesus porque..." "E por-lhe-ás o nome João" etc. etc.).

É tal a presença de semitismos nos evangelhos que um estudioso como Jean Carmignac chega a supor que os originais não foram escritos em grego (há jogos de linguagem que só funcionam em aramaico e demais línguas semitas). Quando, por exemplo, Zacarias diz: "Fez misericórdia a nossos pais, lembrando-se de Sua santa aliança, do juramento que fez a Abraão" (Lc 1, 71 e ss.), há no “original” semita um jogo de linguagem referente aos três personagens envolvidos na cena: João (hanan, fazer misericórdia), Zacarias (zakar, lembrar) e Isabel (shaba, jurar). Essa passagem faz supor que realmente se trata de uma narrativa em aramaico (de Maria para Lucas), por causa dos trocadilhos inexistentes no texto grego. Trata-se de um jogo de palavras semelhante aos dos versos de nossas canções: "Sou caipira Pirapora Nossa Senhora de Aparecida, ilumina a mina escura etc."; ou: "Pedro pedreiro penseiro esperando trem" (claro que em outra língua não teria graça: em espanhol, por exemplo, ficaria "Pedro, el albañil viene temprano esperando por el tren..."). Ou ainda: "Deve sê legal sê negão no Senegal"...

O neutro: gramática e metafisica

O neutro do latim e do grego, desaparecido no português e em outras línguas modernas, ressurge na gíria brasileira, como procuramos indicar no artigo: http://www.hottopos.com/geral/neutrum.htm



[1] . Abertura para o Todo: a Chance da Universidade, http://www.hottopos.com.br/mirand9/abertu.htm

[2] . Ibidem.

[3] . Heidegger, Martin Ensaios e Conferências, Petrópolis, Vozes, 2001, p. 126. E respondendo à acusação de reduzir a análise filosófica à etimológica, diz também: “Não é verdade que nosso pensamento viva de etimologias. Vive, antes, de pensar a atitude vigorosa dquilo que as palavras, como palavras, nomeiam de forma concentrada. A etimologia, junto com os dicionários, ainda pensa pouco demais” (p. 152).

[4] . Ibidem, p. 126.

[5] . Livro do desassossego, São Paulo, Cia. das Letras, 2002, #259. “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto (...) a página mal escrita, como pessoa própria...”.