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(notas do ciclo de palestras que o autor - escritor de livros didáticos da Editora Saraiva - tem proferido para professores de 1o  e 2o graus nos mais diversos pontos do país. Mantivemos o tom coloquial, próprio da informalidade desses encontros)

 

Elian Alabi Lucci

elian_alabi@yahoo.com.br

Para que serve a escola? Eis uma pergunta de fundamental importância hoje, em tempos de mudanças provocadas pelas alterações políticas, sociais e econômicas a que estamos assistindo.

A meu ver a melhor resposta diante dessa situação é a que ouvi do filósofo Julian Marias em sua casa, em Madri, em 1998, e que coincide com a que li num dos mais recentes livros de outro filósofo, Edgar Morin (Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro): preparar a criança para a vida ou enfim ensiná-la a viver.

Qual a importância dessa visão dos dois conceituados filósofos e também compartilhada por muitos pedagogos? Creio que seja, a triste consideração de que o homem, apesar de toda sua evolução técnica e conhecimento científico, não se lembra mais dos fundamentos básicos do que é viver, principalmente do viver em sociedade, que pressupõe o respeito ao “outro”, a solicitude pelo bem comum, ao compartilhar valores elevados.

Talvez, isso se deva, ao enfoque que a educação passa a ter em face do processo de globalização que parafraseando o saudoso Sérgio Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, o “festival de besteiras que assola o mundo” – preparar as crianças para o ingresso competente na vida econômica. Na visão globalizante de hoje, qualquer atividade escolar que não se destine a promoção desse fim é um ornamento, um desperdício de tempo precioso. Educação, competitividade e produtividade seriam sócias ou cúmplices no entender dessa pedagogia baseada no utilitarismo econômico.

Sabendo-se que a escola pública tem um peso considerável no processo educacional brasileiro, o que seria possível fazer para erradicar (ou ao menos minimizar) a situação de desmotivação em que está mergulhada sua clientela (em todos os níveis), os professores e a violência que a vem impregnando com atos extremos de vandalismo e até atentados contra nossos professores? Um exemplo dessa situação está retratado nos dados abaixo e no artigo de Gilberto Dimenstein – “Ao mestre com porrada”.

Frases do tipo “vamos acertar isso lá fora?” e até tapas já fazem parte do dia-a-dia de professores. Segundo a pesquisa da Unesco, um dos principais motivos das ameaças dos alunos a professores é a desavença causada por notas baixas, pelo nível de exigência e por falhas disciplinares. Em 19 anos de profissão, S.G., de 37, nunca imaginou apanhar de aluno. “Ele tinha 10 anos e começou a agredir um colega na sala de aula. Quando falei que iria mandá-lo para a direção, comecei a receber vários tapas. Gritei e o vigia me salvou. Fiquei com hematomas”, lembra.

As carteiras são empilhadas até o teto da sala de aula. Os alunos divertem-se escalando a torre que, sem capacidade de resistir a tanto peso, desmorona e espalha destroços; na maioria das vezes as paredes são pichadas. Essa cena é comum numa escola estadual do bairro Santa Terezinha, na região metropolitana de São Paulo. É quase uma tradicional brincadeira das sextas-feiras. Resignado o diretor se sente impotente para conter a baderna. Por um simples motivo: “Tenho medo”, reconhece, acostumado a consertar semanalmente as carteiras depredadas. (...)

(“Ao mestre com porrada” G. Dimenstein – Cotidiano – Folha de São Paulo, 03-06-01, p. C10)

[Segue-se gráfico de dados da pesquisa da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação: Percentual de Professores Agredidos por Alunos no País: de 1 a 3 vezes 29,3%; de 4 a 6 vezes 11,6 %; de 7 a 10 vezes 9,7 %. Etc. ]

Tomando-se por base, uma afirmação do professor norte-americano Neil Postman, de que aprender é uma aventura de superação de nossas falhas e a do pedagogo francês Georges Snyders que nos diz, no livro Alunos Felizes, “quanto mais os alunos enfrentam dificuldades – de ordem física e econômica – mais a Escola deve ser um local que lhes traga outras coisas. Essa alegria não pode ser uma alegria que os desvie da luta, mas eles precisam ter o estímulo do prazer. A alegria deve ser prioridade para aqueles que sofrem mais fora da Escola”; a escola pública, muito mais do que a particular precisa adotar urgentemente a Pedagogia Lúdica.

O lúdico se faz necessário ao mesmo tempo em que é preciso também demolir o que o geógrafo Milton Santos, em vida, tanto condenou, juntamente com o filósofo Ricardo Yepes - o pensamento único que domina nossos jovens estudantes - e que interessa muito aos gestores e grandes beneficiados pelo processo de globalização. Nessa conjuntura, quem tem o filho numa escola particular, talvez até se sinta protegido. Ledo engano, embora com diferentes tonalidades a violência está disseminada em ambientes ricos e pobres.

O não pensar ou a adoção do pensamento único, objetivo maior dos mass media e que conduz a alienação intelectual e cultural – pode ser representada pela nova visão cartesiana/globalista: "penso, logo existo; compro, logo sou”.

Algumas considerações histórico-filosóficas sobre o lúdico [1]

A afirmação central da valorização do brincar encontra-se em Santo Tomás de Aquino: Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae - O brincar é necessário para a vida humana

Tomás afirma que, assim como o ser humano precisa de repouso corporal para restabelecer-se, pois, sendo suas forças físicas limitadas, não pode trabalhar continuamente, também precisa de repouso para a alma, o que é proporcionado pela brincadeira. É interessante observar que, assim como a palavra refeição indica "re-fazer-se" das forças físicas, também pelo recreio há uma "re-criação" das forças da alma.

Esta recreação pelo brincar - e a afirmação de Tomás pode parecer surpreendente à primeira vista - é tanto mais necessária para o intelectual, que é por assim dizer, quem mais desgasta as forças da alma, arrancando-a do sensível. E sendo os bens sensíveis naturais ao ser humano, "as atividades racionais são as que mais querem o brincar". Daí decorrem importantes conseqüências para a Filosofia da Educação: o ensino não pode ser aborrecido e enfadonho: o fastidium é um grave obstáculo para a aprendizagem.

A tristeza e o fastio produzem um estreitamento, um bloqueio, ou, para usar a metáfora de Tomás, um peso (aggravatio animi), também para a aprendizagem. E, tratando do relacionamento humano, Tomás declarou " Ninguém agüenta, um dia sequer, uma pessoa aborrecida e desagradável".

O lúdico na pedagogia medieval

As atividades lúdicas não são uma novidade no processo educacional. Carlos Magno (cerca de 742 - 814) criou um centro de ensino em seu palácio, entregando sua direção ao filósofo e pedagogo Alcuíno, o homem mais erudito de seu tempo. Em Alcuíno encontramos diálogos repletos de enigmas, brincadeiras e piadas, pois sua norma pedagógica era: deve-se ensinar divertindo.

O homem medieval brincava porque acreditava vivamente na maravilhosa sentença que associa a Sabedoria divina à obra da Criação: quando Deus criou o mundo e fez brotar as águas das fontes, assentou os montes, fez a terra e os campos, traçou o horizonte, firmou as nuvens no alto, impôs regras ao mar e assentou os fundamentos da terra "ali estava eu (a sabedoria divina) com Ele como artífice, brincando (ludens) sobre o globo terrestre, e minhas delícias são estar com os filhos dos homens". (Provérbios 8, 30-31)

Sobretudo na chamada Primeira Idade Média, os mais sábios mestres dirigiam-se a seus alunos de modo informal e lúdico (aliás, um dos sentidos derivados de ludus é escola; fenômeno paralelo ao da derivação de escola de scholé, lazer).

Alcuíno e muitos outros mestres de sua época ensinavam aos alunos por meio de alguns enigmas e brincadeiras como as que seguem:

"Um boi que está arando todo dia, quantas pegadas deixa ao fazer o último  sulco?"

Resposta: Nenhuma, em absoluto: As pegadas do boi a arado apaga".

"Um homem devia passar, de uma a outra margem de um rio, um lobo, uma cabra e um maço de couves. E não pôde encontrar outra embarcação a não ser uma que só comportava dois entes de cada vez, e ele tinha  recebido ordens de transportar ilesa toda a carga. Diga, quem puder, como fez ele a travessia?" R: Todos estavam na margem direita do rio. O homem leva primeiro a cabra e a deixa na margem esquerda. Volta para a margem direita e pega a couve, e volta para a margem esquerda. Deixa a couve e volta para a margem direita com a cabra, deixando-a e voltando para margem esquerda com o lobo. O lobo ficará com a couve na margem esquerda e o homem voltará para pegar a cabra na margem direita.

Outro aspecto pouco lembrado e que guarda relação com o lúdico é o fato - específico da época - de a Idade Média ser, em diversos sentidos, jovem. A juventude e a velhice não se predicam só das pessoas singulares, mas também das épocas e regiões. Pieper faz notar que a média de idade dos grandes autores da época, está entre 20 e 30 anos: "Nada mais inexato do que imaginar monges de barba branca, afastados do mundo em sua cela, caligrafando sutis tratados em pergaminhos". É também por esse caráter jovem dos novos povos que a Idade Média cultiva o lúdico. Embora referindo - se ao lúdico em sentido muito mais amplo de que o nosso brincar, cabe aqui a conclusão de Huizinga em seu clássico Homo Ludens: "A medida que uma civilização vai se tornando mais complexa e vai se ampliando e revestindo-se de formas mais variadas e que as técnicas de produção e a própria vida social vão se organizando de maneira mais perfeita, o velho solo cultural vai sendo gradualmente coberto por uma nova camada de idéias, sistemas de pensamento e conhecimento; doutrinas, regras e regulamentos; normas morais e convenções que perderam já toda e qualquer relação direta com o [lúdico] jogo [Spiel]"

Não faltavam também versinhos mnemônicos, como os que circulam ainda hoje nas escolas. Quando o aluno de trigonometria hoje, para lembrar a fórmula do seno e do cosseno, diz: Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá; seno a cosseno b, seno b cosseno a", ele não imagina que está pagando um tributo ao método didático dos monges medievais.

Em Geografia, nos dias de hoje, são muitos os professores que, para ajudar os alunos a gravarem quais são as eras geológicas, usam a fórmula Arqueopropamece, que significa Arqueozóica - Proterozóica - Paleozóica- Mesazóica - Cenozóica.

O lúdico na pedagogia atual

Sabendo através de estatísticas bastante confiáveis que no ensino médio brasileiro 68% dos alunos dos cursos vespertino e noturno são da rede pública mais ainda faz sentido, para tornar menos árida e mais agradável a tarefa docente, o lúdico, o brincar, a informalidade do ensino.

Sendo a educação lúdica via de regra dada quase que em 90% através de trabalhos em grupo, apesar da competitividade que algumas atividades trazem no seu bojo, elas estimulam a agregação, o pensar compartilhado, o que vai plenamente ao encontro que diz Neil Postman em seu livro O Fim da Educação: nada supera a velha e boa escola. Se pública, tanto melhor. Só na escola que os indivíduos aprendem, entre outras coisas, que as necessidades individuais estão subordinadas a interesses do grupo. A escola civiliza e socializa. “A sala de aula destina-se a domar o ego, a ligar os indivíduos a outros, a demonstrar o valor e a necessidade da coesão do grupo”.

Quatro educadores medievais [2]

Vejamos alguns exemplos de quatro educadores medievais e que podem perfeitamente serem resgatados hoje pela escola pública.

1-      Alcuíno

Como dissemos, Alcuíno, o homem mais erudito de seu tempo, ensinava por meio de adivinhas, charadas e anedotas. E consubstancia formalmente seu princípio pedagógico numa carta dirigida ao Imperador Carlos Magno: "Deve-se ensinar divertindo!"

Antológico, nesse sentido, é o diálogo entre Alcuíno e Pepino, então um garoto de 12 anos. Junto com a discussão dos temas existenciais - o que são a vida e a morte; o que é homem etc. - o mestre propõe divertidas charadas ao aprendiz: "psst, não conta para ninguém, quero ver se você sabe qual é a caçada, na qual o que apanhamos não trouxemos conosco e o que não podemos caçar, sim, trouxemos conosco". O menino, prontamente, responde - mostrando que sabe - que é caçada feita pelo caipira ( os piolhos: os piolhos que "caçamos" não os trazemos conosco; o que não conseguimos caçar, sim, trazemos conosco!)

Nas escolas monásticas, o lúdico e o jocoso tinham, além do caráter motivacional uma outra função pedagógica: aguçar a inteligência dos jovens. Ad acuendos iuvenes é o título de diversas coletâneas de exercícios de Aritmética.

2-      Petrus Alfonsus

Se, a propósito de Alcuíno, vimos o lúdico no ensino das escolas monásticas e da escola palatina, Petrus Alfonsus, por volta de 1.100 inclui em sua Disciplina Clericalis - obra escrita para formação do clero! - uma coleção de anedotas para servir de exemplo na pregação. O personagem principal é Maimundus Nigrus, o preto Maimundo, um servo preguiço e espertalhão (uma espécie de Macunaíma ou de Pedro Malazartes) que sempre se sai bem. Um exemplo: O senhor de Maimundo ordenou-lhe, certa noite, que fosse fechar a porta. Maimundo - que oprimido pela preguiça, nem podia se levantar - respondeu que a porta já estava fechada.

Ao alvorecer, disse-lhe o senhor:
- Maimundo, vai abrir a porta.
- Como eu sabia que o senhor havia de querê-la aberta hoje, nem cheguei a fechá-la ontem.
O senhor, percebendo que, por preguiça, não a tinha fechado, disse-lhe:
- Levanta-te e faz o que tens de fazer, pois é dia e o sol já está a pino.
- Se o sol já está a pino, então dá-me de comer - respondeu Maimundo.
- Servo mau, nem amanheceu e já queres comer?
- Bom, se não amanheceu, então deixa-me continuar dormindo.

 

3-      Rosvita de Gandersheim

No mosteiro beneditino de Gandersheim - na época dessa nossa educadora (em torno do ano 1000) um importante centro cultural, onde havia monjas de cultura esplendorosa - Rosvita, após um hiato de séculos, re-inventa o teatro, re-introduz a composição teatral no Ocidente. E compõem 6 peças de caráter educativo (Sapientia, por exemplo, traz embutida toda uma aula de matemática!) - que combinam drama e comédia. Entre inúmeras outras situações cômicas, destacamos aqui a hilariante sequência de cenas IV a VII da peça Dulcício.

O governador pagão, Dulcício, está encarregado da impossível tarefa de demover 3 virgens cristãs – Àgape, Quiônia e Irene - de sua fé. Confiante em seu poder de sedução e atraído pela beleza das moças, manda trancafiá-las na dispensa ao lado da cozinha do palácio, e, de noite - enquanto elas cantam hinos a seu Deus -, Dulcício vai invadir a dispensa, mas tomada de súbita loucura, equivocasse e entra na cozinha e acaba, sofregamente, abraçando e beijando os caldeirões e panelas, tomando-as pelas prisioneiras que o espiam pelas frestas e veêm-no cobrir-se de fuligem etc. Só quem ignora o papel do lúdico na pedagogia medieval pode-se surpreender que uma mulher, uma monja, numa composição devota, para ser encenada no mosteiro, inclua uma cena "escabrosa" como essa.

4- D. Alfonso X o Sábio

O Libro del Acedrex, o primeiro tratado de xadrez do Ocidente composto em 1283 por Alfonso o Sábio, começa pela rotunda afirmação: "Deus quis que os homens naturalmente tivessem todas as formas de alegria para que pudessem suportar os desgostos e tribulações quando lhes sobreviessem. Por isso os homens procuraram muitos modos de realizar com plenitude tal alegria e criaram diversos jogos que os divertissem (...) E esses jogos são muito bons etc."

Há algo em comum nessas destacadas figuras medievais; cada um deles situa-se como um dos mestres mais eruditos de seu tempo (e com uma pedagogia de caráter acentuadamente popular). Além do mais, são pioneiros: Alcuíno é quem inicia a palatina; Petrus Alfonsus introduz a fábula na literatura medieval; Rosvita, reimplanta o teatro; e é de D. Alfonso o primeiro tratado de xadrez no Ocidente.



[1] Neste tópico e no seguinte, recolho, sintetizando, diversas considerações sobre o lúdico e a educação expressas nas pesquisas de Jean Lauand, neste mesmo site.

[2] Também neste tópico recolho pesquisas de Jean Lauand, neste mesmo site.