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 A Humildade  [1]

 

Josef Pieper

 

Um dos bens em que o homem, segundo a natureza, procura a plena realização da sua existência, é a excellentia, a superioridade, a primazia, o fazer-se valer [2] . A virtude da temperança, da disciplina e da medida, enquanto vincula esse impulso natural à ordenação da razão, chama-se humildade. A humildade consiste em avaliar-se da maneira que corresponde à realidade [3] . Com isso está quase tudo dito.

Partindo dessa definição, dificilmente se compreende como é que o conceito de humildade pôde transformar-se num objecto de luta. Se prescindíssemos das potências demoníacas, dirigidas contra o bem, e especialmente contra este aspecto da fisionomia cristã do homem, só seria possível essa transformação se o conceito de humildade se tivesse extinguido na própria consciência cristã. Em todo o tratado de São Tomás sobre a humildade e o orgulho, não se encontra uma só frase que possa dar azo a sugerir que uma atitude de constante autodiminuição, de inferiorização do próprio ser ou das próprias possibilidades, tenha, em princípio, alguma coisa a ver com a humildade ou com qualquer outra virtude cristã.

Magnanimidade

Nada há que indique um caminho mais claro para a verdadeira compreensão da humildade que este princípio: a humildade e a magnanimidade (magnanimitas) não são antitéticas, não se excluem uma à outra [4] , mas são pelo contrário afins e complementares, contrapondo-se ambas ao mesmo tempo ao orgulho e à pusilanimidade [5] .

E na verdade, que significa magnanimidade? Magnanimidade é o vôo, a tendência do espírito para os grandes feitos [6] . É magnânimo quem exige grandes coisas do seu coração e se torna digno delas. O magnânimo é em certo sentido “difícil de contentar”; não estabelece contacto com tudo o que lhe surge no caminho, mas apenas com o que é grande [7] . Mais que tudo, a magnanimidade deseja as grandes honras; “o magnânimo lança-se para as acções que são dignas da maior honra” [8] . Na Summa Theologica lê-se: “É reprovável desprezar as honras, de modo a descurar aquilo que as merece” [9] . Por outro lado, o magnânimo não se sente atingido pela desonra; ele despreza-a como não sendo digna da sua atenção [10] . O magnânimo olha com desprezo para tudo o que é mesquinho. Nunca actuará de modo reprovável, só para evitar o desagrado de alguns [11] . As palavras do Salmo XIV: “Aos seus olhos, o perverso nada vale” [12] , segundo São Tomás referem-se ao magnânimo “desprezo pelos homens” do justo. Sinceridade destemida é a marca da magnanimidade: nada há que mais odeie do que ocultar, por medo, a verdade [13] . O magnânimo evita peremptòriamente as palavras aduladoras e as dissimulações, pois ambas são fruto de um coração mesquinho [14] . O magnânimo não se queixa, porque o seu coração não se deixa vencer por qualquer mal externo [15] . O magnânimo traz consigo a indestrutível firmeza da sua esperança, uma confiança desmedida, quase temerária [16] , e no seu coração sem medo reina uma paz imperecedoira [17] . O magnânimo não cede ao aperto das preocupações, nem aos homens, nem aos acontecimentos: só perante Deus se inclina [18] .

É com pasmo que reconhecemos que esta imagem da magnanimidade se encontra passo a passo desenhada na Summa Theologica de São Tomás de Aquino. Tornava-se necessário recordar isto. Porque no tratado sobre a humildade diz-se diversas vezes: a humildade não contradiz a magnanimidade. Agora poder-se-á medir o que esta frase, expressa como aviso e prevenção contra fáceis erros, quer na verdade dizer. Nada mais do que isto: que uma “humildade” demasiado mesquinha e débil para saber suportar a tensão interior da sua convivência com a magnanimidade, não pode ser humildade autêntica.

Soberba

A mentalidade ordinária das pessoas inclina-se a descobrir no magnânimo um soberbo, e, portanto, do mesmo modo, a enganar-se acerca da verdadeira essência da humildade. “É um soberbo”, proclama-se depressa e facilmente. Mas muito poucas vezes essa locução coincide, na realidade, com a verdadeira soberba (superbia). Antes de mais nada, a soberba não é um modo de comportamento ordinário nas relações entre as pessoas. A soberba refere-se às relações do homem com Deus: é a negação, contrária à realidade, da relação de dependência da criatura para com o Criador: é um desconhecimento da criaturalidade do homem, da sua condição de criatura. Em todos os pecados há este duplo aspecto: a aversio, aversão a Deus, e a conversio, a conversão, o apegamento aos bens efêmeros. O elemento formal determinante é o primeiro: a aversão a Deus. E esse, em nenhum outro pecado é tão explícito e formal como na soberba. “Todos os outros pecados fogem de Deus, e só a soberba se opõe a Deus” [19] . É só dos soberbos que a Sagrada Escritura diz que Deus lhes resiste (Tiago 4, 6).

Humildade como comportamento social

A humildade também não é, em primeiro lugar, uma atitude externa nas relações da convivência humana. A humildade é, sobretudo, uma atitude do homem perante a Deus. Aquilo que a soberba nega e destrói, a humildade reafirma e consolida: a condição de criatura do homem. Esta condição constitui a essência mais profunda do homem. Portanto, a humildade, como “sujeição do homem a Deus” [20] , é a adesão, o sim de assentimento a esta condição originária e essencial.

Em segundo lugar, a humildade não consiste num comportamento exterior, mas numa atitude interior, nascida da decisão da vontade [21] . Consiste naquela atitude que, fixa em Deus e consciente da sua condição de criatura, reconhece a realidade graças à vontade divina. É principalmente a simples aceitação disto: que o homem e a humanidade não são Deus, nem “como Deus”. E é aqui que aflora a ligação escondida que une a humildade, virtude cristã, com o Dom - talvez também cristão - do humor [22] .

Será possível evitar dizer agora - em terceiro lugar -, por fim e francamente, que a humildade, para além de tudo quanto já se disse, também é uma atitude do homem para com o homem, e principalmente atitude de humilhação voluntária e recíproca? Vejamos.

São Tomás de Aquino levantou a questão da atitude de humildade dos homens para com os homens, e respondeu da seguinte maneira: “Observa-se nos homens uma dupla realidade: aquilo que é de Deus, e aquilo que é do homem... A humildade, no entanto, no sentido mais próprio, é a reverência do homem submetido a Deus. É por isso que o homem, olhando para aquilo que lhe é próprio, tem que submeter-se ao seu próximo, olhando para aquilo que esse tem de Deus em si. Mas a humildade não exige que alguém submeta aquilo que nele há de Deus, àquilo que parece haver de Deus no próximo... Do mesmo modo, a humildade não exige que alguém submeta aquilo que tem em si de próprio, ao que nos outros é próprio dos homens” [23] .

No âmbito vasto, de muitos degraus, embora bastante bem delimitado, desta resposta, há espaço tanto para o “desprezo pelo homem” do magnânimo, como também para a humilhação voluntária de São Francisco de Assis, que largou o hábito para se apresentar ao povo com um baraço em volta do pescoço [24] . Aqui também se demonstra que a ética cristã não dá grande valor a medidas e regras estreitas e carriladas. Esta opinião, mais, esta opinião negativa, é expressa por Santo Agostinho sobre outra questão também ligada com a presente, na seguinte frase: “Quando alguém diz que não se deve receber diariamente a Comunhão e outrem diz o contrário, então cada um faça aquilo que julgar mais conforme à sua fé e devoção. Também não se contradisseram Zaqueu e o centurião, ainda que um tenha recebido o Senhor com alegria (Lucas 19, 6), e o outro tenha dito: ‘Não sou digno de que entreis na minha casa’ (Lucas 7, 6). Ambos honraram o Salvador, cada qual a seu modo” [25] .



[1] Reproduzimos aqui esta clássica página de Pieper, extraída de Virtudes Fundamentais, Lisboa Aster, 1960. Trad. de Narino e Silva & Beckert da Assumpção.

[2] Mal., 8, 2. Ex omnibus bonis nostris aliquam excellentiam quaerimus, I, II, 47 2.

[3] II, II, 161, 6; 162, 3 ad 2.

[4] II, II, 161, 1 ad 3; 129, 3 ad 4.

[5] II, II, 162, 1 ad 3.

[6] II, II, 129, 1.

[7] II, II, 129, 3 ad 5.

[8] II, II, 129, 2.

[9] II, II, 129, 1 ad 3.

[10] II, II, 129, 2 ad 3.

[11] II, II, 129, 3 ad 4.

[12] Salmo XIV, 4.

[13] II, II, 129, 4 ad 2.

[14] II, II, 129, 3 ad 5.

[15] II, II, 129, 4 ad 2.

[16] II, II, 129, 6.

[17] II, II, 129, 7.

[18] II, II, 129, 7 sed contra.

[19] Johannes Cassianus, De coenob. Instit., 12, 7.

[20] II, II, 162, 5; 161, 1 ad 5; 161, 2 ad 3; 161, 6.

[21] II, II, 161, 3 ad 3.

[22] Theodor Haecker (Dialog übor Christentum und Kultur, Hellerau, 1930, pág. 78; e agora também em Opuscula, München, 1948, pág  372) denominou o humor como uma espécie de “humildade natural”. E também são de considerar aqui as seguintes passagens de Fr. Th. Vischer (Ästhetik, Parte I, Reutlingen und Leipzig 1846, pág 449 e seg.): “O humorista reconhece-se a si próprio como um louco; e isto acontece quando ele, partindo do verdadeiro espírito que o enche, se reconhece assim no que há de inferior e inconsciente em si. Porém, agindo deste modo, considera-se louco e sábio simultaneamente; de facto, é o mesmo quem se considera e quem é assim considerado, e precisamente neste acto consiste a autoliberação”. Esta ciração deve-se ao belo artigo de Heineich Lützeler Philosophie des Humors (“Zeitschrift für deutsche Geisteswissenschaft” ; Ano 1938).

[23] II, II, 161, 3.

[24] Cfr. Fr. Leone, Speculum perfectionis, cap. LXI-LXII.

[25] Epist. Ad Januarium, 54, 4.