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Tomás de Aquino Lecionando o Comentário ao Salmo II
Jean Lauand
Fac. de Educ. da USP
jeanlaua@usp.br1. Os comentários de Tomás à Escritura e o In Psalmos [1]
Dentro da imensa obra de Tomás de Aquino, encontram-se diversos comentários à Sagrada Escritura. Esses comentários se dividem em reportationes e ordinationes. Ao contrário da ordinatio - que é uma obra acabada, escrita ou ditada pelo autor -, a reportatio não pretende ser uma redação oficial: são, antes, anotações de aula, feitas por um estudante ou por um secretário.
O In Psalmos é a reportatio correspondente a aulas de Tomás sobre os Salmos 1 a 56, ministradas em 1272-1273, como regente de Teologia em Nápoles. Trata-se, portanto, de uma das últimas obras do Aquinate (como se sabe, ele parou de escrever em dezembro de 1273). Sendo uma reportatio, tem um caráter um tanto truncado: são notas tomadas diretamente de uma exposição do mestre em sala de aula.
No prólogo, Tomás observa que todos conhecem três traduções latinas dos salmos: já nos tempos apostólicos havia uma antiga tradução, corrompida pelos copistas e, por isso, o papa Dâmaso encomendou a São Jerônimo que corrigisse o saltério e desse trabalho resultou o "saltério romano". Mas, prossegue, como essa tradução divergisse do texto grego, Jerônimo empreendeu uma nova tradução latina - coincidindo com o grego palavra por palavra - e Dâmaso ordenou que esta versão fosse cantada na França, tornando-se conhecida como "saltério galicano". Com o tempo, esta versão foi adotada por toda a cristandade latina até converter-se no texto modelo, que é a Vulgata.
2. O salmo II
Embora Tomás não explicite qual versão do saltério ele utiliza como base de seu comentário, fica claro que emprega a galicana (e, quando se refere à romana, esta é designada por "alia littera"). Apresentemos, desde já, o texto do salmo II [2] , que Tomás irá comentar verso a verso (e quase palavra por palavra).
PSALMUS II
Quare fremuerunt gentes
Et populi meditati sunt inania?
Astiterunt reges terrae
Et principes convenerunt in unum
Adversus Dominum et adversus christum eius:
"Dirumpamus vincula eorum
Et proiciamus a nobis iugum ipsorum"
Qui habitat in caelis irridebit eos
Et Dominus subsannabit eos
Tunc loquetur ad eos in ira sua
Et in furore suo conturbabit eos
Ego autem constitutus sum rex ab eo (N. V.: constitui regem meum)
Super Sion montem sanctum eius (N.V.: meum)
Praedicans praeceptum eius (N.V.: Praedicabo)
Dominus dixit ad me: "Filius meus es tu
Ego hodie genui te
Postula a me et dabo tibi gentes hereditatem tuam
Et possessionem tuam terminos terrae
Reges eos in virga ferrea
Et tamquam vas figuli confringes eos".
Et nunc reges intellegite
Erudimini, qui iudicatis terram
Servite Domino in timore
Et exsultate ei cum tremore
Aprehendite disciplinam nequando irascatur
(Dominus) et pereatis de via (iusta)
Cum exarserit in brevi ira eius
Beati omnes qui confidunt in eoSALMO II
Por que bramaram as nações [3]
E os povos tramam vãs conspirações?
Erguem-se os reis da terra
E, unidos, os príncipes se insurgem
Contra o Senhor e contra seu Cristo.
"Quebremos seu jugo", disseram eles,
"E sacudamos para longe de nós seus vínculos que nos atam".
Aquele, porém, que habita nos céus, se ri,
O Senhor faz troça deles.
Dirigindo-se a eles em sua cólera,
Ele os aterra com seu furor:
"Eu, porém, fui constituído rei
Em Sião, meu monte santo.
Vou publicar o preceito do Senhor:
Disse-me o Senhor:
Tu és meu filho, eu hoje te gerei.
Pede-me; dar-te-ei por herança as nações;
Tu possuirás os confins do mundo,
Tu as governarás com cetro de ferro,
Tu as desfarás como um vaso de argila".
Agora, ó reis, compreendei isto
Instruí-vos, ó vós que julgais a terra.
Servi ao Senhor com temor
E exultai em sua presença com tremor;
Acolhei a disciplina para que não se irrite
E não pereçais fora do caminho justo.
Pois, quando, em breve, se acender sua cólera
Bem-aventurados todos os que nele confiam.
Em seu comentário, Tomás explica que o salmo II trata da realeza de Cristo. O reinado de Cristo, prefigurado pelo de Davi, encontra oposições: por parte do povo escolhido e dos gentios.
O comentário do Aquinate desenvolve-se ao longo dos dez breves capítulos que traduzimos e manifesta o assombroso conhecimento que Tomás tinha da Bíblia: sua incrível capacidade de relacionar, de modo pertinente, passagens da Escritura [4] , para a compreensão de um conceito: como um moderno programa de hipertexto, Tomás tem prontamente na memória todas as incidências de uma palavra e, além disso, as de suas sinônimas e correlatas!
É o caso, por exemplo, das metáforas "cetro de ferro" e "vaso de argila". Evidentemente, "cetro" indica poder (no caso, o poder de Cristo Rei), mas Tomás leva a análise mais longe: o "cetro de ferro" é o cetro da retidão (de que fala outro salmo); é pelo cetro que os reis impõem a disciplina, pois, por ele, punem os delinqüentes. O cetro de ferro é também a inflexibilidade da disciplina da justiça; seu caráter férreo indica, além do mais, a irreversibilidade da submissão da totalidade das nações a Cristo - e nesse sentido, Tomás interpreta a passagem do Apocalipse: "A mulher deu à luz um filho, que deve reger as nações com cetro de ferro" (Apo 12, 5).
Também múltipla e variada é a análise da expressão "vaso de argila". Para comentar essa passagem, Tomás evoca o oleiro a que se refere o profeta: "Desci à casa do oleiro e o encontrei ocupado a trabalhar no torno. Quando o vaso que estava a modelar se desfez , pôs-se a fazer outro vaso etc." (Jer 18, 3-5). Assim, o vaso que são os pagãos estava mal formado e, como a argila ainda era fresca, será desfeito e receberá nova forma, dada por Cristo Rei.
Desse modo, unindo o conhecimento da Bíblia à sua reflexão, Tomás dá a aula, associando, a cada verso do salmo, aspectos do reinado de Cristo: no mundo e nas almas.
Comentário ao Salmo II [5]
Tomás de Aquino
CAPÍTULO I
O salmo II é um salmo de Davi: foi por ele composto e trata de seu reinado - imagem do reinado de Cristo. Pois Cristo é adequadamente prefigurado por Davi: dele se diz ser mão forte; de Cristo, força de Deus (I Cor 1, 24). Davi tinha um aspecto agradável; Cristo, o esplendor da glória (Hbr 1, 3), "a quem os anjos desejam contemplar" (I Pe 1, 12).
"Por que bramaram as nações e os povos tramam vãs conspirações?". O salmo II divide-se em duas partes. Na primeira, descrevem-se as maquinações dos que conspiram contra o reino de Davi e de Cristo; na segunda, o desbaratamento dos insurretos: "Aquele, porém, que habita nos céus, se ri".
Na primeira parte, há três pontos: os planos de rebelião, contra quem se dirigem esses planos (contra o Senhor) e o objetivo da revolta: a ruptura dos vínculos do Senhor.
Quanto ao primeiro, sabe-se, pela história, que uma rebelião começa pelo surgimento de um murmúrio entre o povo e, depois, se recorre ao auxílio de um poderoso para perfazê-la. Daí que se fala primeiro do murmúrio do povo e, depois, do auxílio dos poderosos: "Erguem-se os reis da terra e, unidos, os príncipes se insurgem".
No meio do povo, porém, há alguns menos dotados de razão, impetuosos, enquanto os mais ajuizados são mais cautelosos. Aqueles, ao se rebelarem, não se movem pela inteligência, mas mais pelo ímpeto e por isto se diz "bramaram", o que é próprio dos animais: "Como o bramido do leão é a ira do rei" (Pro 19, 12).
Há outros, porém, que se movem por deliberação e deles se diz: "tramaram vãs conspirações", pois "vãs são as cogitações dos homens" (Sl 93).
"Povo" é multidão de homens, em sociedade, sob o consenso da lei. Assim, os judeus são chamados "povo" por estarem com a lei e sob a lei de Deus. Já "nações" designa os gentios, que não estão sob a lei de Deus. No reino de Davi, havia nações subjugadas e judeus sob a lei. Uns e outros maquinavam contra ele, daí que diz o salmo: "Por que bramaram as nações e os povos tramaram vãs conspirações?". Não se trata aqui de uma autêntica pergunta, mas de uma repreensão (como é o caso de outras passagens da Bíblia, como: "Que proveito tiramos da soberba? A arrogância das riquezas, de que nos serve?" - Sab 5,8).
O povo miúdo, por si só, nada pode fazer, se não contar com os poderosos, daí que o salmo diga que estes oferecem auxílio, em primeiro lugar, por seu poder: "Erguem-se os reis da terra e, unidos, os príncipes se insurgem contra o Senhor e contra seu Cristo", como que dizendo: uns bramaram e outros ergueram-se, isto é, empreenderam esse mal. Alguns cooperaram com seu saber, aconselhando, daí que se diga: "unidos, os príncipes se insurgem", isto é, uniram-se em seus juízos ou - como diz outra tradução - "confabulavam".
É uma situação semelhante à apresentada em Jeremias: "'Recorrerei aos grandes e falarei com eles, pois eles conhecem o caminho do Senhor e os juízos de seu Deus'. Mas, todos se uniram, unânimes, em sacudir o jugo do Senhor etc." (Jer 5,5).
Mostra-se que a rebelião é contra o Senhor e seu rei, ao dizer: "contra o Senhor e contra seu Cristo" que "sofrem a rebelião", pois cristo, o ungido, significa rei, como se vê no salmo (104, 15): "Não toqueis em meus cristos (ungidos)". Quem, pois, se rebela contra o rei instituído por Deus, rebela-se também contra Deus: "Quem resiste à autoridade, resiste à ordenação de Deus" (Rom 13, 2). Daí que o salmo diga: "contra o Senhor e contra seu Cristo". E (I Sam 8, 7) [6] : "Desprezaram não a ti, mas a mim".
Simbolicamente, fala-se de Cristo em Davi: "Senhor, tu disseste pela boca de nosso pai Davi, teu filho 'Por que bramaram as nações etc.' e, de fato, uniram-se todos nesta cidade contra o teu santo Filho Jesus, a quem ungiste etc." (At 4, 25 e ss.). Este discurso deve ser entendido assim: as nações, ou seja, os soldados, uniram-se ao povo, isto é, os judeus, contra Cristo: "tramaram vãs conspirações", pensando em matá-lo totalmente, de modo que não ressuscitasse. Os reis da terra (isto é Herodes Ascalonita, que matou as crianças e, depois, Herodes Antipas, seu filho, que concordou com Pilatos), os príncipes - isto é, Pilatos (o plural pelo singular é por sinédoque) - e os príncipes dos sacerdotes que "se uniram" numa única má vontade "contra o Senhor e contra seu cristo".
CAPÍTULO II
A seguir, declara o propósito dos conspiradores: "Quebremos seu jugo e sacudamos para longe de nós seus vínculos". Isto está dito em sentido próprio, pois o poder do rei se diz "jugo". Em 1 Re 12, 4, diz-se a Roboão que torne mais leve o jugo imposto por Salomão. Pois, assim como o boi pelo jugo é jungido a sua faina, assim também os homens pelo poder do rei.
Não se pode arrojar o jugo sem antes romper os vínculos. Ora, num reino, os vínculos são aquilo que impõe a autoridade do rei, tal como soldados, exércitos, armas etc. É necessário, portanto, antes de mais nada, desfazer estes vínculos e, então, remover o jugo.
Em sentido espiritual, em Cristo há o jugo da lei da caridade: "Meu jugo é suave etc." (Mt 11, 30) e os vínculos são as virtudes (esperança, fé, caridade): "pondo empenho em conservar a unidade de espírito no vínculo da paz" (Ef 4, 3). E diz o Eclesiástico: "seus vínculos são os laços da salvação" (6, 29).
Não pode pois a consciência do homem subtrair-se ao jugo da lei de Cristo, sem antes romper os vínculos. É o que fazem aqueles que dizem a Deus: "Aparta-te de nós. Não queremos conhecer os teus caminhos" (Jó 21, 14) [7] . Ou daquele de quem se diz em Jeremias: "Desde o início arrojaste o jugo e quebraste os vínculos e disseste: 'Não servirei'" (Jer 2, 20).
CAPÍTULO III
Ao dizer: "Aquele que habita nos Céus, se ri", o salmo trata da agressão dos conspiradores ao reino de Davi: primeiramente, de como agridem ao Senhor e, em segundo lugar, a seu Cristo ("Eu, porém, fui constituído...").
Quanto ao primeiro caso, há quatro incidências: zombaria, desprezo, fala irada e confusão (irrisionem, subsannationem, iratam locutionem, et conturbationem).
Pois, assim como um menino, desprovido de forças, que luta contra um gigante, é objeto da zombaria do gigante, assim também aquele que habita nos céus ri-se dos impotentes que querem conspirar contra ele. Diz o livro de Jó: "Contempla os céus e vê, observa como as nuvens são mais altas do que tu. Se pecares, que mal lhe fazes?" (Jó 35, 5 e ss.). E se o impotente insiste, o poderoso o castiga e o despreza. O desprezo da irrisão faz-se com a boca [8] , enquanto o desprezo da subsannatio dá-se pela contração do nariz. O livro dos Provérbios (1, 26) fala nestes termos: "Vou rir de vossa desgraça e zombar (subsannabo) quando fordes atingidos pelo que temeis". E o salmo: "Dirigindo-se a eles em sua cólera", isto é, proferirá a sentença de condenação deles, pois Deus não incorre em ira (por vezes, atribui-se ao criador por antropospatos o que é da criatura, como uma paixão humana). Também outro salmo (Sl 6, 2) fala da ira nesse mesmo sentido: "Senhor, não me castigues com tua ira...".
E, por fim, passa à execução da sentença. Assim o salmo diz que, em seu furor, aterrá-los-á, no coração e na alma, com a condenação eterna, castigá-los-á com seu poder. Também diz o livro de Jó: "Sabe o que lhe está preparado, não escapará do dia das trevas, será aterrorizado pela tribulação e será invadido pela angústia" (Jó 15, 23).
Estas quatro coisas ocorrerão no juízo: escarnecerá (irridebit) [9] ao dizer "Tive fome..."; zombará (subsannabit) deles, situando-os a sua esquerda (Mt 25, 33); falará enfurecido (loquetur in ira), sentenciando "Ide, malditos, ao fogo eterno..." e aterrorizá-los-á (conturbabit), executando a sentença "E serão lançados no suplício eterno...".
CAPÍTULO IV
Mostra-se a seguir como serão reprimidos pelo seu Cristo: "Eu, porém...". Pois, o povo, nações e princípes insurgiram-se contra Cristo/Davi. Primeiramente mostra como o Cristo age em relação ao povo; em segundo lugar, em relação às nações ("Disse-me o Senhor...") e, em terceiro lugar, em relação aos reis ("Agora, ó reis, compreendei..."). E diz: "Eu, porém, fui constituído rei em Sião, seu monte santo...". Deve-se saber que há um rei constituído por Deus em Jerusalém e sua pregação restabelece a ordem sobre o povo. Como que dizendo: "Estes fazem rebelião, mas não podem alcançar seu intento, porque eu fui constituído e firmemente estabelecido rei sobre Sião, isto é, sobre o povo dos judeus, cuja cidadela é Sião".
Assim, seu poder advém de Deus, como diz o salmo: "O Senhor é meu auxílio e não temo o que pode fazer contra mim o homem" (Sl 117, 6). E o livro de Jó: "Põe-me, Senhor, a teu lado e mão alguma se levanta contra mim" (Jó 17,3).
"Fui constituído rei em Sião, seu monte santo": não para mim mesmo, mas para reger o povo segundo a lei de Deus e, por isso, prossegue: "Vou publicar o preceito do Senhor". Prefigurando a Cristo, fala-se desse rei, segundo a profecia: "Virão dias em que suscitarei a Davi um descendente justo, reinará e será sábio, praticará o direito e a justiça sobre a terra" (Jer 23, 5).
Sião, a igreja dos judeus, é chamado de monte santo, pois recebe antes os raios do Sol. Diz o Senhor: "Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 15, 24) [10] . E lê-se nas Escrituras: "Acaso ignoro que hoje me tornei rei de Israel?" (II Sam 19, 23).
"Vou publicar o preceito do Senhor", o preceito do Evangelho ou aquele preceito especial de Jo 13, 34: "Um mandamento novo eu vos dou: que vos ameis uns aos outros" e "Este é o meu preceito: que vos ameis uns aos outros" (Jo 15, 12). Este preceito, ele o pregou pessoalmente, por sua própria pessoa: "Jesus percorria toda a Galiléia ensinando nas sinagogas deles e pregando o evangelho do reino" (Mt 4, 23).
CAPÍTULO V
"Disse-me o Senhor...". A própria história mostra como ele se relaciona com as nações. E há aí dois pontos. O primeiro evidencia como convinha que Cristo tivesse potestade sobre as nações; o segundo, o uso desse poder: "Tu as governarás".
No primeiro, há dois aspectos: por que direito tem ele poder sobre as nações e a aceitação desse poder: "Dar-te-ei por herança as nações...". Isto não se realizou plenamente em Davi e, portanto, refere-se a Cristo, a quem compete domínio sobre as nações, a duplo título de direito: hereditário e meritório.
Em primeiro lugar, seu direito como herdeiro; em segundo, pelo mérito "Pede-me e eu te darei...".
Ora, Cristo é o rei do universo, como diz Hebreus 1, 8: "Compete a Ele porque é o Filho...". E "se filho, também herdeiro por vontade de Deus" (Gal 4, 7). Aqui se trata da geração eterna de Cristo, na qual há três pontos a observar: o modo de geração, a propriedade da filiação e a eterna geração de Cristo.
Na sentença "Disse-me o Senhor...", o modo de geração se manifesta como processão por modo de intelecto. O modo da natureza divina não é carnal, mas intelectual e o próprio pensar (intelligere). A geração é uma processão segundo a origem que se encontra na coisa inteligível, segundo a concepção do verbo [11] que procede do intelecto: o verbo na mente. Assim, "Disse-me o Senhor" é como dizer "gerou-me", pois o Filho é o Verbo que o Pai disse, isto é produziu gerando.
Já a propriedade se manifesta em: "Tu és meu filho", filho meu, não adotivo, como aqueles de que fala João (1, 12): "Deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus...", mas como propriedade de sua natureza: "Tu és meu filho", tu és meu filho por natureza, singular, consubstancial: "Este é meu filho amado" (Mt 17, 5).
A eternidade se mostra ao ajuntar: "Eu hoje te gerei", isto é, eternamente. Não é uma geração nova, mas eterna, daí que diga: "hoje", pois "hoje" indica presença e o que é eterno sempre é. Emprega também o perfeito "gerei" (e não "gero") para indicar a perfeição da geração: sendo a geração sem mudança, são simultâneos o gerar e o ser gerado.
Diz também "hoje" para designar o presente com glória [12] de Cristo, que habita em luz inacessível (I Tim 6, 16) e que é verdadeiro: nele não há pretérito, nem futuro, nem escuridão, mas só claridade.
CAPÍTULO VI
Discutimos acima o privilégio da geração eterna pelo qual compete a Cristo o domínio das nações por direito hereditário. Mostraremos, agora, como adquiriu esse direito por seu mérito.
Deve-se considerar que, assim como as formas são infundidas nos entes naturais de acordo com as disposições da matéria, assim também é a distribuição por Deus dos dons da graça. "Deus é quem opera em nós o querer e o agir" (Fil 2, 13) e quer que recebamos os dons pela petição e pela oração. E quis mostrar-nos este exemplo por Cristo, pois Ele quis o que pediu: o que por direito hereditário lhe competia.
Esta petição pelas nações pode ser entendida de dois modos. Primeiramente, pela oração, pois orou por eles: "Não rogo por estes apenas, mas por aqueles que crerão em mim por sua palavra" (Jo 17, 20). E também pela paixão: "Para que, por intercessão de sua morte para remissão das transgressões dos que estavam sob a primeira Aliança, os que foram chamados recebam a herança eterna prometida" (Hbr 9, 15).
E sua petição não ficou frustrada, pois foi ouvido por causa de sua atitude reverente (cfr. Hbr 5,7) [13] e foram-lhe concedidas as nações: "Dar-te-ei as nações...".
Note-se que ninguém vem a Cristo senão como dom do Pai: "Ninguém pode vir a mim a não ser atraído pelo Pai que me enviou" (Jo 6, 44). A doação das nações é puro dom, já os judeus eram-lhe como que restituídos, pois já lhe tinham sido dados, como se lê em Romanos: "Cristo se fez ministro da circuncisão para honrar a fidelidade de Deus, no cumprimento das promessas feitas aos pais; ao passo que os gentios glorificam a Deus, pondo em realce a sua misericórdia" (Rom 15, 8).
E, assim, diz o salmo: "Dar-te-ei as nações", para que se submetam a ti e sejam tua herança: "A fim de que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra" (Fil 2, 10). E diz o salmo: "Sim, é magnífica a minha herança" (Sl 15, 6) [14] . Ele não possui a herança das nações como ministro, como Pedro ou Paulo, mas como Senhor: "Moisés foi fiel em toda sua casa, como servo; Cristo, porém, como filho em sua casa. Esta casa somos nós" (Hbr 3, 5-6) [15] . Por isso diz: "Possuirás os confins do mundo". Lê-se em Isaías: "Para que possuas as herdades desoladas, para que digas aos cativos: 'Saí' e aos que estão nas trevas: 'Mostrai-vos'" (Is 49, 8-9).
"Os confins do mundo", pois por todo o mundo foi edificada a Igreja. Mas, em seguida, por Nicolau, o herege, e por Maomé, houve uma volta à infidelidade. De modo que a Igreja está edificada ou para ser fundada: "Não basta que sejas meu servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os fugitivos de Israel; vou fazer de ti luz das nações para que sejas minha salvação até os confins do mundo" (Is 49, 4). Por Ele, "que foi constituído herdeiro de tudo" (Hbr 1,2).
CAPÍTULO VII
A seguir, fala do exercício do poder. Segundo a história, aquele que estava constituído rei dos judeus, dominava também algumas nações subjugadas, prefigurando o domínio universal de Cristo.
Sendo diferentes os modos de governar a cidade e as hostes subjugadas - pois a cidade é governada com misericórdia e as hostes subjugadas, em regime de severa justiça -, o salmo diz: "Com cetro de ferro".
Mas o melhor é aplicar isto ao domínio espiritual de Cristo. É necessário que aquele que reina tenha cetro. Diz o salmo (44, 7): "O cetro da retidão, o cetro de teu reino". O cetro é necessário aos reis para impor a disciplina pela qual punem os delinqüentes. E como Cristo foi constituído rei por Deus para reger o povo, então se diz: "Governa com cetro de ferro". E diz "de ferro" para indicar a inflexibilidade da disciplina da justiça.
Pois o cetro com o qual se governavam os judeus não era de ferro: freqüentemente se subtraíam a ele adorando ídolos. Mas é férreo este cetro com que governa as nações, pois quando a plenitude das nações se acolher ao poder de Cristo não se subtrairão mais a ele: "A mulher deu à luz um filho, que deve reger as nações com cetro de ferro" (Apo 12, 5).
E "Tu as desfarás como a um vaso de argila". Isto se compreende pela sentença: "Desci à casa do oleiro e o encontrei ocupado a trabalhar no torno. Quando o vaso que estava a modelar se desfez , pôs-se a fazer outro vaso (...) O que é a argila em mão do oleiro, sois vós em minha mão" (Jer 18, 3-5). Quando o vaso de argila é recente, desfaz-se sua má forma e impõe-se-lhe boa forma. Os judeus já eram convertidos e não precisavam ser desfeitos: sua fé é a mesma que a nossa. Já os gentios eram idólatras e, por isso, precisavam ser desfeitos para receber outra forma: a da fé verdadeira.
Ou, interpretando de outro modo, regerá os bons e acabará por desfazer os maus que se lhe opõem: "Ele está constituído para a ruína e para a elevação de muitos" (Lc 2, 34).
E lê-se em Isaías: "De improviso, e, num instante, sobrevém o desabamento; quebra-se como um vaso despedaçado sem piedade, de modo que os destroços não ofereçam sequer um caco etc." (Is 30, 13-14).
E no Apocalipse (epílogo, 11): "O que é justo, justifique-se mais; o que é impuro, pratique ainda as impurezas".
CAPÍTULO VIII
Ao dizer "Agora, ó reis...", mostra como age em relação aos reis. Reprime-os, admoestando-os e atraindo-os ao serviço de Deus.
Há aí dois pontos. No primeiro admoesta; no segundo, mostra a razão da admoestação: "Para que não se irrite...". E aconselha três pontos: o conhecimento da doutrina da verdade, o obséquio da humildade e a aceitação da correção.
A verdade pode ser conhecida de dois modos: por descoberta - é o caso dos que pensam bem - ou por aprendizagem - é o caso dos que aprendem bem.
Também o governo admite dois graus: há os reis, que têm domínio geral, e os juízes, cuja autoridade versa sobre matérias especiais. Os primeiros são exortados a entender: "o homem inteligente possuirá o leme" (Pro 1, 5) e os segundos, a aprender, a receber de outros a forma do juízo. E assim diz: "Compreendei..." e "Instruí-vos...". E no livro da Sabedoria (6, 1): "Ouvi, ó reis, e compreendei; aprendei, ó vós que julgais a terra".
CAPÍTULO IX
A seguir diz: "Servi...". À compreensão, segue-se convenientemente o serviço, pois o servir a Deus, que é a latria, é profissão de fé. E, assim, só quem antes creu, pode confessar a fé e servir. "É crendo de coração que se obtém a justiça e é professando com palavras que se chega à salvação"(Rom 10, 10).
E o Senhor diz que, para servir ao homem, basta uma sujeição exterior de obediência, mas para servir a Deus é necessário uma sujeição interior, da alma que lhe tem afeto. Diz o salmo 61: "Minha alma está sujeita a Deus...".
"Servi ao Senhor com temor..." refere-se ao temor que o santo tem de cometer pecado: "o que julga estar de pé, cuide de não cair" (I Cor 10, 12) [16] . Agostinho faz notar que o rei, enquanto homem, serve a Deus vivendo sua vida de modo justo e, enquanto rei, promulgando leis contra o que agride a justiça de Deus. Daí que este salmo prefigure a Igreja: pois, no princípio, os reis da terra faziam leis contra Cristo e os cristãos, mas depois pautaram suas leis por Cristo. Por isso, se diz antes "Ergueram-se... contra..." e, depois, "Servi ao Senhor...". E para que este servir não seja confundido com desgraça ajunta: "Exultai em sua presença", pois o temor do Senhor não é infortúnio, mas alegria. Por isso, diz Aarão a Moisés: "Como se pode agradar a Deus com a mente triste?" (Lev 10, 19). E para que esta alegria não seja tomada como presunção ou negligência, o salmo ajunta "com tremor", que é o medo súbito: "Trabalhai em vossa salvação com temor e tremor" (Fil 2, 12).
A seguir, aconselha o acolhimento: "Acolhei a disciplina", que ninguém viva como bem entende, mas como convém, de acordo com a disciplina, preceitos e bons costumes. O mesmo salmo 17, que fala de Deus como cidadela e fortaleza, diz: "a tua disciplina me corrigiu e ensinou".
O salmo II indica, a seguir, a razão da advertência: "Para que não se irrite". A razão é dúplice: para evitar a pena e para atingir a glória.
"Bem-aventurados todos os que nele confiam". Afirma esta bem-aventurança, mas diz também: "Para que não se irrite" - por causa da paciência de Deus, que neste mundo é duradoura: "ele é lento para a cólera, mas é Deus que ameaça cada dia, caso não se convertam" (Sl 7, 12), como que dizendo: atendei ao conselho, não sobrevenha o tempo do castigo.
"Não pereçais fora do caminho justo", isto é, da justiça e da companhia dos bons, o que é muito penoso para os que saborearam a doçura da justiça.
Uma outra tradução diz apenas "caminho" (e não "caminho justo"). O homem neste mundo está como num caminho e, se cai, dentro do caminho, pode se levantar. Mas se sai do caminho, então a situação é irreparável: "Porque não entendem, perecem para sempre" (Jó 4, 20) [17] .
CAPÍTULO X
E aponta outra razão: a obtenção da glória. Como que dizendo: "Acolhei a disciplina pois quando se acender sua cólera... Bem-aventurados todos os que nele confiam". "Pois, quando, em breve, se acender sua cólera, bem-aventurados todos os que nele confiam". E diz bem: "Quando se acender", pois, de momento, não queima e corrige como pai, mas, no futuro, queimará e consumirá, quando punir com a pena eterna: "É o nome do Senhor que vem de longe, sua cólera é ardente e pesada, seus lábios respiram furor e sua língua como fogo devorador" (Is 30, 27).
E diz "em breve" porque não vai tratar de cada pecado separadamente, mas de todos em conjunto.
Daí que aquele juízo será breve: não durará mil anos (como pretende Lactâncio), mas "num momento, num piscar de olhos, ao som da última trombeta, os bons revestir-se-ão da glória da imortalidade" (I Cor 15, 52-53). E, portanto, bem-aventurados os que confiam, não já porque não serão castigados, mas porque atingirão o reino, cuja bem-aventurança e glória ressaltarão ainda mais em contraste com o castigo dos maus. "Bem-aventurado o homem que confia no Senhor e cuja esperança é o Senhor etc."(Jer 17, 7).
[1] . Para os dados deste estudo, cfr. Weisheipl, James A. Tomás de Aquino - Vida, obra y doctrinas, Pamplona, Eunsa, 1994. Valemo-nos do original latino do In Psalmos apresentado por Roberto Busa Thomae Aquinatis Opera Omnia cum hypertextibus in CD-ROM. Milano, Editoria Elettronica Editel, 1992, que, por sua vez, reproduz a ed. Parmensis t. XIV, 1863.
[2] . Acrescentamos, entre parênteses, as diferenças introduzidas pela recente tradução da Nova Vulgata.
[3] . Algumas vezes traduzimos "gentes", "gentios", por "nações" (as nações pagãs, em oposição a Israel).
[4] . No caso, mais de sessenta!
[5] . In Psalmos II, 2, 1 a 10.
[6] . O original erradamente diz Rom 8.
[7] . O original erradamente diz Jó 12.
[8] . A irrisio é o desprezo que se faz com a boca (palavras ou riso...), ao contrário da subsannatio, que se dá por expressão facial.
[9] . Alteramos as explicações de irridebit e subsannabit, invertidas no original.
[10] . O original erradamente diz Mt 14.
[11] . Verbum, em latim, significa palavra ou conceito.
[12] . In claritate. O conceito de claritas integra a própria definição de glória: clara notitia cum laude (p. ex., em I-II, 2, 3, Tomás diz: "gloria nihil aliud est quam clara notitia cum laude, ut Ambrosius dicit").
[13] . O original erradamente diz Hbr 6.
[14] . O original erradamente diz Sl 115.
[15] . O original erradamente diz Hbr 5.
[16] . O original erradamente diz Rom 10.
[17] . O original erradamente diz Jó 5.