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Gilda Naécia Maciel de Barros

Quando tratamos de cultura grega e educação, invariavelmente observamos  que é impossível  considerar os ideais de formação humana entre os gregos da antiguidade sem  referir um conceito da mais alta importância para eles  - areté  (h( a)reth/).  A razão disso veremos a seguir.

Por que tratar de areté quando devíamos tratar de educação? Para entender essa atitude é preciso considerar com os antigos empregavam esses termos.

 A palavra educação é de origem latina.  O substantivo é feminino  e assim se enuncia: educatio, onis.  Implica, primariamente, a ação de criar e se aplica tanto a animais  como a plantas, o que pode ser conferido em Cícero, de Finibus 5, 39  e  em Pro Sex.  Roscio Amerino 63. Também em Cícero, de Oratore 3, 124 e em  de Legibus 3, 30 encontramos o sentido que usualmente lhe damos, em nosso campo: instrução, formação do espírito.

O próprio verbo educo, aui, atum, are significa criar, nutrir, cuidar de, tratar (pode ser de animais), formar, instruir, produzir.  Para se compreender a abrangência da idéia, diz-se,  em linguagem poética, quando se quer referir o que a terra produz, faz crescer: quod terra educat. [1]

A palavra grega que poderia aspirar à equivalência  relativamente à palavra  latina educação é paideia (h( paide/ia, aj), etimologicamente presa a pais, paidós (o(, h( pai=j, paido/j),  que significa, pura e simplesmente, criança. Já o verbo paideúo (paideu/w - paideu/sw,, e)pai/deusa, pepai/deuka se traduz por criar, instruir, formar e também se aplica a animais com  o sentido de criar, formar. [2]

Werner Jaeger lembra que a palavra paideia só aparece no século V a.C., e dá como registro mais antigo, dele conhecido,  o passo 18 de Sete contra Tebas,  de Ésquilo [3], onde,  a seu ver, a palavra tem o mesmo sentido de trophé (h) Qrofh/, h=j).  Na verdade, no início do século V a  palavra tinha o simples significado de "criação de meninos". Mas é ainda Werner Jaeger quem adverte: o melhor fio condutor para se estudar a educação grega em suas origens não é a palavra paideia:  mais importante do que ela é a palavra areté! [4]

 Por sua vez, tratando da educação grega no período helenístico, portanto a partir de fins do século III a.C., Marrou lembra que os primeiros sete anos de vida da criança são designados por (ana) trophé ( [a)na]  trofh/), que se traduz por criação , período em que a criança é alimentada em casa, entregue aos cuidados da mãe, em primeiro lugar, e, depois, na família de posses, à aia (trofo/j), escrava ou liberta, que não se confunde com a ama-de-leite. Na opinião de Marrou, paideia  propriamente dita refere-se ao período que se inicia após os sete primeiros anos, quando a criança é enviada às escolas. [5] Aliás, o primeiro sentido do verbo trepho (tre/fw) é  tornar compacto, engrossar, nutrir, criar e, por extensão,  instruir, aplicando-se, com o sentido originário, a animais e plantas.

É muito comum traduzir-se a palavra areté por virtude e o seu plural, aretai, por virtudes. No entanto, isso pode induzir a se pensar que o sentido original de areté é de natureza ética. Ora, esse não é o sentido original exclusivo nem de areté, que melhor se traduziria por excelência, nem de uirtus, que se costuma traduzir  por virtude.

A palavra areté  (h( a)reth/, h=j) desígna o mérito ou qualidade pelo qual algo ou alguém se mostra excelente.  Esta qualidade pode referir-se ao corpo e aplicar-se a coisas, como terra, vasos, móveis; pode referir-se à alma. Pode ter o sentido particular de coragem ou atos de coragem ou o sentido moral de virtude. [6] A ela se prende  aristós ( a)risto/j, h/, o/n), superlativo de agathós (a)gaqo/j, h/, o/n).  Ambas as palavras podem ser usadas no mesmo contexto e para a mesma finalidade.

Agathós, palavra extremamante importante para a história da educação grega, pode designar o nobre, o aristocrata, mas, também, o homem de valor, o que tem coragem. Traduzir agathós por bom pode levar à confusão: o sentido básico não é moral. Na poesia heróica, é adequado dizer-se de um homem que ele é agathós se ele tem valor. Valor, aqui, especificado a cada passo, ou referido à coragem guerreira,  ou a uma certa habilidade. 

No livro I da República Platão introduz algumas reflexões acerca do conceito de areté. É verdade que ela vai direcioná-las para o objetivo principal que tem em mente, qual seja, discutir a idéia de justiça: sua natureza, se é vício e ignorância ou sabedoria e virtude; se é mais vantajosa a injustiça do que a justiça. Mas é interessante que, aí, a idéia de areté vem associada a uma outra, também importante, que é a idéia de érgon,  que se pode entender por função.

Platão parte da verificação de que cada coisa tem sua função (Rep. 353 a) e uma areté própria a preencher.(Rep. 353 b)  Vejamos o exemplo referente ao cavalo. Como qualquer outro animal, ele  tem uma função (érgon) que lhe é própria. Que função é essa? Aquela que  apenas ele pode fazer, ou, pelo menos, que apenas ele pode fazer do modo mais perfeito ( árista).  A saber, mostrar força, velocidade, firmeza na batalha etc.

Assim também ocorre com os olhos, com os ouvidos. A função do primeiro é ver, a do segundo é ouvir.  Ver, ouvir são funções  (erga)  deles, olhos e ouvidos. (Rep. 353 b e seguintes). Em certas condições em que o exercício da visão se opera bem, mal, com maior ou menor grau de perfeição. Assim,  areté dos olhos é a visão, o seu contrário (kakían), a cegueira. E ouvidos desprovidos de  sua areté não poderão  ouvir bem!

Mas nesse diálogo Platão está interessado em uma areté, a justiça (h( dikaiosu/nh, hj), que ele procura definir. Assim, no mesmo livro I, mais adiante, aplicando esses  ensinamentos ao conhecimento do homem, raciocina de novo com cavalos e cães e suas excelências (aretai), com vistas a chegar à areté do homem.

 Platão quer saber se é possível prejudicar a um homem em sua excelência ( e)ij th\n a)nqrwpei/an a)reth\n ...).  Para isso é preciso saber em que o homem e só o homem é excelente, isto é, qual a sua areté. O que permite ao homem cumprir o seu érgon no mais alto grau de perfeição?

Para conhecer a areté humana, ensina Platão, é preciso saber o que é o homem. Embora não trate especificamente desse ponto  no livro I,  Platão pensa o homem como um ser de corpo e alma, sendo à alma destinada a função de  governar, deliberar, dirigir o corpo. E considerando que  o homem vive na polis, isto é,  de forma associada,  Platão considera a justiça  a maior de todas as aretai, porque é a mais social, como diria Aristóteles. Assim, se a areté do homem é a justiça, todo ideal educativo deverá ser alcançar essa perfeição.  Em contraponto, um homem injusto age em sentido contrário à excelência.

Como vemos, no século IV a. C., com Platão, ainda encontramos uma idéia de areté empregada no sentido amplo, não restritamente moral, mesmo  que a preocupação do autor de A República seja de ordem moral.

Voltando, agora, à tese de W. Jaeger, segundo a qual é a palavra areté que dá o fio condutor para o estudo da educação grega antiga, com ele lembramos que, na Grécia antiga,  areté (excelência) está ligada a um modo de pensar a educação pelo qual se aspira a realizar a verdadeira forma do Homem, o seu autêntico ser. Ora, esse ideal, a  palavra latina humanitas irá traduzir. [7]

Mas, o que é a humanitas, para os gregos? Em outras palavras: como e quando o homem atinge a sua areté? Qual é  a areté ideal?

É a própria história da palavra areté que pode mostrar a importância que teve, na Grécia, para a definição do que devia ser humanitas, o contexto social de cada época.

Assim, no período helênico, a areté será pensada com vistas à formação do cidadão, o polites; no helenístico,  visar-se-á à excelência do homem cosmopolita e, na época cristã, à formação do servo de Deus. Polis, cosmopolis e theopolis são as referências e, aqui, vamos ater-nos à  formação do homem na polis (VIII a.c. - IV a.c.)

Pouco preocupada com a criança ou com métodos de aprendizagem, a educação grega (e, até certo ponto, a romana) está direcionada para a questão dos fins. Importa menos saber como chegar aos fins e, muito mais, determinar precisamente esses fins e realizá-los. Esses fins supõem a preocupacão com o homem adulto excelente, no qual a criança deve tornar-se.

Ao longo do período helênico da cultura grega, que vai de suas origens heróicas até a conquista da Grécia por Felipe da Macedônia, portanto até fins do século III a.C., a idéia de areté foi pensada e valorizada em função de algumas referências importantes, que, ao longo daqueles séculos, alteraram o próprio conceito. Entre essas referências vamos destacar as que  apontam para mudanças de valor e de visão do mundo.

Destacamos estes pontos: a oposição entre o mundo feminino e o mundo masculino com a respectiva exclusão da mulher da educação; o valor do sangue (physis), isto é, o fato de se vincular ou não a excelência e, pois, o ideal educativo, à origem,a uma classe social, a aristocracia, e ao favor dos deuses; a posse de riquezas, isto é, o fato de se associar a plena realização do homem ao poder material e seus correlatos, como honra, respeito etc.; o culto à força física e à coragem,  ao corpo belo e bem formado, e a respectiva valorização da vitória na guerra (a grande façanha) e nas competições (agones); a importância da polis como categoria existencial; interiorização da consciência moral. Vejamos como isso se dá.

Originalmente, o sentido de areté nos é dado pela poesia heróica, de que Ilíada e Odisseia são dois grandes paradígmas.  Se analisamos esses dois grandes poemas, vemos que o sentido básico de areté, como ensina W. Jaeger, é o de constituir uma força, uma capacidade, por vezes diretamente definida, como ocore quando se diz que vigor e saúde são a arete do corpo; sagacidade e penetração a areté do espírito. A conotação ética não é a principal. [8]

Nessa primeira face a educação grega é cavalheiresca e aristocrática. Mostra-nos uma sociedade guerreira, de homens corajosos, que sonha exibir  valor (areté), por atos e palavras.

Na Ilíada, quando Fênix, o preceptor de Aquiles, quer convencê-lo a voltar à guerra aceitando as desculpas de Agamenão,  lembra ao jovem que seu papel educativo era fazer dele um guerreiro e um orador excelentes. Ficaram famosas estas palavras:

"A ti me enviou o velho escudeiro Peleu, no dia em que, para Agamenon, te mandou de Ftia, menino ainda, sem experiência da guerra igual para todos, nem das assembléias em que se fazem notar os homens. Enviou-me para ensinar-te tudo isso, para tornar-te apto a falar e capaz de agir". [9]

 Na guerra, combatendo  inimigo, que também é um nobre, ou em tempos de paz,  entre seus iguais, no conselho, nas assembléias  ou nas provas atléticas, o nobre busca realizar-se como herói, alcançar honrah( timh/) e glória , superando as façanhas de seus antepassados.

Eis esse espírito bem traduzido nas palavras do herói Glauco, que luta ao lado dos troianos,  a Diomedes. que luta ao lado dos gregos:

"Mandou-me para Tróia, recomendando-me com insistência que fosse sempre valente [aristeúein] e superior aos outros, a fim de não envergonhar a linhagem paterna, a mais conceituada [áristos] em Éfira e na vasta Lícia". [10]

O nobre grego, que busca avidamente a excelência, recebeu formação ética e técnica junto a um preceptor mais velho e nobre, mas sabe que depende também da proteção dos deuses:

"Mas Zeus acrescenta ou diminui o valor dos homens, conforme lhe apraz, pois ele é o mais poderoso de todos". [11]

Esse aspecto religioso, que faz o êxito do herói depender dos deuses, será posteriormente bem ressaltado  pelo poeta Píndaro de Tebas  (VI-Va.C.), cujas odes celebram os vencedores nas provas atléticas, e dão conta dessa fé na participação divina na manifestação do valor (areté).

Nesse contexto de uma vida e valores aristocráticos os homens nobres  têm estirpe como os cães têm pedigree; o homem do povo não tem valor, não tem areté.

Irá esse ideal de excelência manter-se sempre assim,  aplicando-se apenas aos nobres, que tinham boa origem e possuíam bens, que se exercitavam a vida toda para o bom desempenho atlético e guerreiro?

Na verdade, não.  Haverá, ao longo de todo o período helênico, algumas posições dissonantes ou algumas reinterpretações desse valor.

Do ponto de vista de práticas educativas , essa vinculação do conceito de excelência (areté) aos valores da aristocracia não durará para sempre. Haverá, sim, algumas permanências de matiz claramente aristocrático, por exemplo, na educação ateniense clássica.  Veja-se o que vai ocorrer com os jogos atléticos, prática bem do gosto da nobreza, desde Homero. Dá-se, progressivamente, uma democratização dessas práticas, que passarão a ser também realizadas pelo cidadão comum, que não tem estirpe.  Contudo, duas delas, a cinegética e o hipismo,  não se popularizam, permanecendo típicas da elite nobre. [12]

Por outro lado, com o tempo, a polis afirma-se como categoria existencial predominante para o homem grego. A ética individualista de Homero vai ser superada por éticas centradas em valores cívicos.  De fato, ficará para trás, cada vez mais, no período arcaico grego (a partir do séc. VIII a.C.),  comportamentos como o do herói Aquiles, que acarretam tantos desastres aos gregos.

Por outro lado, vai se delineando uma constelação de excelências como objetivo formador do ser humano: à coragem (h( a)ndrei/a, aj), tão importante para aquela sociedade de guerreiros homéricos, irão se somando a temperança (h( sofrosu/nh, hj), a piedade (h( eu)se/beia, aj) [13] , a justiça (h( dikaiosu/nh, hj), a sabedoria  ( h( sofi/a, aj)

Ocorrem, então, algumas  divergências quanto à questão de se saber qual areté é mais importante na formação do homem ideal. Em alguns lugares, como em Esparta, a coragem é considerada a maior de todas. Tirteu (VII a.C.), o poeta preferido dos espartanos, traduz essa superioridade com muita clareza:

"Eu não lembraria nem celebraria um homem
            pela sua excelência na corrida ou na luta,
nem que tivesse dos Ciclopes a estatura e a força
            e vencesse na corrida o trácido Bóreas,
nem que tivesse figura mais graciosa que Titono,
            ou fosse mais rico do que Midas e Ciniras,
ou mais poderoso que Pélops, filho de Tântalo,
            ou tivesse a eloqüência dulcíssima de Adrasto
ou possuísse toda a glória - se lhe faltasse a coragem valorosa. [14]

Mas haverá quem se revolte com a valorização da força física e do ideal atlético.

Xenófanes de Cólofon (VI-V a.C.)  critica a cidade que despreza o sábio para coroar   corpos musculosos, mas vazios de razão, como dirá, depois,  algum personagem de Eurípides:

"Mas se alguém alcançar a vitória com a velocidade
            dos pés, ou do pentatlo, - onde fica o santuário de Zeus,
junto das águas de Pisa, em Olímpia - ou na luta,
            ou porque sabe a arte dolorosa do pugilato,
ou ainda num concurso terrível, chamado o pancrácio,
            será mais ilustre à vista dos seus concidadãos,
terá o lugar de honra mais aparatoso nos jogos
            e alimentação a expensas públicas
da sua cidade, e uma dádiva, que será para ele um tesouro.
            E, se ganhar com cavalos, tudo isto ele obterá,
sem ser tão digno como eu. Pois melhor do que a força
            de homens e corcéis é a nossa sabedoria/ sophé (át. sophía)
pois nem que vivesse entre o povo um valente pugilista,
            ou um homem hábil no pentatlo ou na luta,
ou na corrida, que tem ainda a preferência,
            e tantos actos de força demonstrasse no combate,
nem por isso a cidade estaria em melhor ordem eunomíe (át. eunomía)
            Pequeno prazer seria para a urbe
que alguém vencesse nas provas da margens do pisa.
            Pois não é isso que enche os cofres da cidade".
[15]

 

Também se chegará a perguntar se a riqueza, a posse de bens materiais é tão importante para chegar-se à excelência. Dentro da própria aristocracia grega vai haver divergência: um radical conservador como Teógnis de Megara adverte o seu dileto aluno (vv. 149-50):

“A riqueza, a divindade dá também
ao homem mau, o’ Cirno; mas a parte
do valor a poucos acompanha”

Mas outro aristocrata, não conservador, Sólon de Atenas (VI a.C.), vai noutra direção:

"Muitos maus são ricos, e bons, pobres; mas nós com eles não trocaremos o valor pela riqueza; o primeiro é sempre sólido, mas a riqueza, dos homens, ora um ora outro a possui" [16] .

À parte da corrente aristocrática, isolado na tradição grega, está Hesíodo, poeta da Beócia (VII a.C.). Além de valorizar a justiça, valoriza, o que é excepcional naquela sociedade, o trabalho. Tendo recebido uma herança, que dividira com o irmão Perses, Hesíodo se vê levado aos tribunais pelo irmão, que deseja mais. Mas Perses não gosta de trabalhar, ao que parece. E os juízes do tempo do poeta gostam de presentes. São venais (dwrofa/goi) e dão sentenças "torcidas" (skolio/j, a, o/n ), contrariando a justiça. Assim, a partir da querela com o irmão, Hesíodo compõe um poema exortativo, parenético, em que louva a justiça e o trabalho. A injustiça é amiga do ócio, da preguiça.  Perses deve abandonar o caminho mais fácil (ganhar mais corrompendo juízes) e trabalhar, porque o trabalho é o destino do homem.

"Trabalho não é vileza, vileza é não trabalhar.
Se trabalhares, em breve o indolente te inveja a prosperidade.
Da riqueza é companheira o mérito e a glória. [17]

 Uma sociedade em que as pessoas vivem como Perses a injustiça grassa e o castigo de Zeus vem de qualquer maneira. Ela degenera.

Hesíodo emprega uma linda imagem para exortar o  irmão a deixar o mau caminho e buscar a areté. A areté mora num lugar escarpado, de difícil acesso. Mas quando ela é alcançada, é a glória! [18]

Mal, podes ganhar quanto queiras e em abundância;
fácil é o caminho e mora perto de nós.
Mas ante o mérito, puseram os deuses o suor; (arete)
longo e escarpado é o caminho que conduz até lá, e áspero a princípio; mas depois de chegar ao cimo, em fácil se volve, por difícil que seja.

  Vida fácil e às custas das desgraças alheias é ruim para todos. Não há mal que escape ao castigo: se não houvesse o olho de Zeus em tudo, haveria  30.000 vigias de Zeus, que observam nossa conduta na terra  e tudo lhe contam; a própria Dike (justiça)  também participa dessa corte. E se o castigo não alcança o autor, alcança seus descendentes. Sempre vem, insiste o poeta: [19]

Ó Perses, escuta a justiça, não deixes crescer a insolência

a insolência é uma desgraça para o mísero mortal; nem mesmo o nobre a suporta fàcilmente; vergam ao seu peso, caindo na desgraça. Melhor é o caminho para a justiça, que passa do outro lado. A Justiça, por último, domina a insolência. Tolo que já sofreu passa logo a ser sensato.

Num dado momento da época arcaica, aproximadamente no século VI a.C., ocorre uma canalização dos valores em direção à excelência cívica, a justiça. Assim é que lemos em Focílides de Mileto fr. 10 e em Teógnis de Megara, v. 147:

“Na justiça estão reunidos todos os valores.”

Também a idéia de que a vida deve ser vivida com risco, tão do gosto do herói de Homero, passa a ser revista; se o risco é essencial à grande façanha, no  transcorrer do dia a dia é necessário valorizar o caminho do meio. O ideal de excelência passa, então, a contar com este outro contraponto: a medida. Evitar o excesso, a violência, a desmedida, que os gregos chamam de hybris (h)  u((brij, ewj), é essencial ao homem que aspira à justiça, à temperança, à sabedoria. Aliás, desde  a idade arcaica os gregos aprendem a valorizar o comedimento, que passa a integrar fortemente a sua visão do mundo e da vida.

Mas é Eurípides que nos oferece um verdadeiro arsenal crítico relativamente aos usos, costumes e valores gregos. Eurípides é um poeta trágico que espelha em suas obras a crise de sentido do tempo em que viveu. Além disso, inspirado na orientação espiritual dos sofistas, tudo examina pela razão, sem aceitar de imediato os valores e práticas da tradição. E utiliza seus personagens para tudo contestar, às vezes até o niilismo. Assim, um mesmo tema é por ele tratado sob vários ângulos em mais de uma peça de teatro, com argumentos por vezes contrários entre si, mas postos na boca de personagens diferentes.

Em relação ao tema da excelência, se ela pode ser ensinada, se o bom já nasce feito, se o valor do sangue e a força física são importantes, também quanto a isso ele levantou algumas discussões. [20]

Vejam-se os excertos que se seguem. Onde e com quem está a arete?  "Não há sinal certo da virtude: tudo é confusão na natureza humana. Já vi filho de um pai generoso mostrar-se homem vil e filhos excelentes nascerem de celerados. Já vi a lama no coração de um rico e a grandeza de alma no corpo de um pobre. Como, então, fazer a distinção e bem julgar? Pela riqueza? Mau juiz a consultar. Pela ausência de bens? Mas a pobreza tem suas taras: a necessidade ensina o mal ao homem. Reportar-me-ei às armas? Mas quem, pondo os olhos em uma lança, poderia atestar que o que a leva é um bravo? (...) [Referindo-se ao camponês] Este homem, que não é um grande entre os Argivos e que não incha de orgulho a glória de sua casa, mas que pertence ao povo, mostra-se um coração excelente. Não vos convertereis ao bom senso, vós que estais carregados de vãos prejuízos, que vos cegam? É por sua convivência e por seu caráter que se distingue entre os mortais a nobreza. Eis os homens que governam bem sua cidade e sua família. Os corpos musculosos, mas vazios de razão, são as estátuas que ornam a ágora. Um braço forte, em verdade, não espera melhor o assalto da lança do que um braço sem força. Então contam somente o caráter e a qualidade da alma." [21]

Origem nobre não garante areté: "O homem de bem, eis para mim o nobre. O homem injusto, ainda que fosse nascido de um pai superior a Zeus, não é nobre a meus olhos." [22]

Importância do sábio: "chefes de exército nascem aos milhares, mas, quanto aos sábios, num longo tempo não nascem talvez senão um ou dois" [23]

O homem comedido: "Que nenhum acontecimento, tão grande seja, exalte teu orgulho além do conveniente e se, ao contrário, sofres um revés, que ele não te escravize. Permanece sempre o mesmo; guarda tua alma tão inalterável quanto o ouro no fogo." [24]

Por sua vez, em especial  nas poleis democráticas, os sofistas (V a.C.) reforçaram uma ruptura nos padrões tradicionais de areté. Eram homens de pensamento voltados para a vida prática, a cidade, suas leis e sua política. Ensinavam em especial uma arte, a de bem argumentar e a de expressar-se com beleza. Alguns ficaram notáveis pela habilidade em fortalecer as teses fracas. Exigiam de seus alunos talento: boa memória, inteligência, vivacidade, mas não origem nobre. Desde que pudessem pagar, aceitavam como aluno gente que não era da elite. E com eles a idéia de areté passou a ser associada a desempenho nas assembléias e tribunais, com vistas ao êxito na vida política.

Embora alguns sofistas e retóricos sejam associados a práticas charlatãs e criticados por seu oportunismo, acusados de não terem compromisso com a verdade moral ou com a tradição religiosa e cívica - algumas dessas restrições aparecem em Platão, Isócrates e Aristóteles, o certo é que eles valorizaram a arte de bem falar. Se antes o herói de Homero devia ser capaz de proferir palavras e realizar ações, agora, na idade clássica grega (V-IV a.C.),  o ideal de formação é o do homem que sabe falar e convencer buscando o acordo na cidade. Essa areté, contudo, é política ( h( politikh/ a)rete/ ): define-se na e para a vida na polis.

Então, no domínio da arte dialética e retórica vão estar reunidas todas as excelências. Protágoras de Abdera e Górgias de Leôncio, no século V a.C, foram respectivamente os grandes mestres dessas artes, como no século seguinte Isócrates  se distinguiria na retórica.

Deixando de lado as severas críticas contra os sofistas, as quais injustamente  submetem todos ao mesmo clichê, destacamos aqui o grande Isócrates, notável mestre de eloquência no século IV a. C., com seu elogio do logos, cujo valor ético é transparente:

"Em verdade, de todos os nossos outros caracteres, nenhum nos distingue dos animais. Somos mesmo inferiores a muito deles sob o ponto de vista da rapidez, da força e de outras facilidades de ação. Mas, porque recebemos o poder de convencer-nos mutuamente e de fazer aparecer a nós próprios o objeto de nossas decisões, não só nos desembaraçamos da vida selvagem, mas nos reunimos para construir cidades. Fixamos leis, descobrimos as artes e foi a palavra que nos permitiu conduzir a bom fim quase todos os nossos inventos. Foi a palavra que fixou os limites legais entre a justiça e injustiça, entre o mal e o bem e se essa separação não fora estabelecida, seríamos incapazes de habitar uns perto do outros. É graças à palavra que confundimos as pessoas desonestas e fazemos o elogio dos homens de bem; é graças a ela que formamos os espíritos incultos e pomos à prova as inteligências, porque fazemos da palavra precisa o mais seguro testemunho do pensamento justo; uma palavra verdadeira, conforme a lei e a justiça, é a imagem de uma alma sã e leal. É com o auxílio da palavra que discutimos os negócios contestados e prosseguimos nossas investigações nos domínios desconhecidos. Os argumentos pelos quais convencemos os outros ao falar são os mesmos que utilizamos quando refletimos; ... Em resumo, para caracterizar este poder, veremos que nada do que se faz com inteligência pode existir sem o concurso da palavra: a palavra é o guia de todas as nossas ações como de todos os nossos pensamentos; recorre-se tanto mais a ela quanto mais inteligência se tem" (...) [25]

Um outro aspecto a se ressaltar na evolução da idéia de areté prende-se ao processo de interiorização da consciência moral que vemos tão claramente representado em Platão e, mais específicamente, por meio da figura de Sócrates por ele caracterizada. Há vários diálogos importantes a esse respeito, mas destacamos um deles, Górgias. Nesse texto, Sócrates platônico, tantos século depois, dá um grande passo adiante de Hesíodo.

Hesíodo ensinara que o injusto prejudica o outro, mas prejudica em primeiro lugar a si próprio. Zeus alcança o seu crime e o pune, senão em sua pessoa na de seus filhos. Também toda a sociedade sofre quando há uma pessoa cometendo injustiças  e, indiretamente, o mal retorna àquele que o praticou:

"Isso observando, alinhai as palavras, o'reis!
comedores-de-presentes, esquecei de vez tortas sentenças!
A si mesmo o homem faz mal, a um outro o mal fazendo;
para quem a intenta a má intenção malíssima é. " [26]

 

O Sócrates de Platão, contudo, vai  muito além. Ele aprofunda a idéia de que a maldade se volta contra o malfeitor, associando esse efeito a danos à alma mesma, independentemente do castigo divino.

Ora, isso era notável. Inteiramente contrário ao entendimento grego,   eticamente particularista, que se traduz nesta máxima: ser doce para com os amigos, amargo para com os inimigos.

O Sócrates platônico amplia os horizontes da ética grega, argumentando, naquele diálogo, que a justiça é o maior bem, para si próprio e para a comunidade e que é preferível  sofrer uma injustiça a cometê-la. Pois aquele que a pratica comete uma violência contra sua própria alma em primeiro lugar, antes de cometê-la contra terceiros. A alma injusta, doente e desarmônica, não pode ser feliz.

A idéia de que a justiça tem valor em si, que vale independentemente das vantagens que acarreta, na terra e no além,  é o grande tema da República.

Todo esforço de Platão nesse notável diálogo é provar que a justiça deve ser praticada sempre e a injustiça sempre evitada, ainda que não haja testemunha alguma disso.  Os desdobramento ético desse imperativo é magnificamente tratado por Platão em um mito, o do anel de Giges. Giges era um pastor que, tendo encontrado um anel que tinha o poder de o tornar invisível, quando descobriu isso matou o rei, usurpou o trono, casando-se com a rainha.

O que Platão ou o Sócrates platônico nos leva a perguntar é eticamente crucial: Se V. tivesse um anel que lhe permitisse ficar invisível e não ser alcançado pelo castigo, V. seria sempre justo ou se entregaria  a atos injustos?

Ora, nesse nível, de nenhum outro pensador grego o tema da areté recebeu um desdobramento ético tão denso e complexo.

Platão também merece um destaque por sua criação de uma teoria da areté, em razão da qual o tema recebeu o mais profundo tratamento ético.

Platão põe uma questão simples mas devastadora: pode um homem excelente ser excelente em uma areté e não o ser relativamente a outra? Quem possui uma possui todas? Como pode alguém ser justo e ímpio, ou corajoso e intemperante? Ou sábio e injusto?

Diante da tradição dos poetas que valorizavam a justiça, a temperança, a coragem, a justiça, a piedade, a sabedoria,  diante dos usos e costumes que submetiam a juventude grega a códigos de conduta estribados em valores nunca discutidos, Platão (ou o Sócrates platônico) quer saber se a excelência pode ser ensinada ou é um dom natural, ou uma graça divina. Essa questão - pode a excelência ser ensinada ou o bom já nasce feito,  acompanha a cultura grega desde Homero e antes de Platão os personagens de Eurípides já se perguntam a esse respeito. Mas Platão é quem  elabora uma reflexão filosófica sistemática e cerrada acerca do tema, desde os primeiros diálogos. A seu ver, tudo se resume em saber se aquelas aretai são conhecimento, pois só nessa hipótese poderiam ser aprendidas. Apesar de na idade madura, com a República, parecer ter chegado a uma "doutrina" da areté que a identifica com conhecimento, em sua última obra, as Leis, voltará a se perguntar: Pode a areté ser ensinada? Prudência, sabedoria, justiça, coragem são uma e mesma coisa, e, pois, em se tendo uma se terá todas as demais, ou não? É a areté múltipla ou una? 

Se, como Platão  parece crer apenas o sábio filósofo tem o conhecimento e, no que toca à areté,  pode legislar a respeito do que deve ser procurado ou evitado em matéria de prazeres e penas, então todos os demais, na polis - o povo em  geral,  é capaz apenas de imitar o sábio.

Com outros fundamentos, um discípulo de Platão que se tornou  tão grande quanto ele, Aristóteles, chegou a  mesmos resultados até certo ponto semelhantes. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles apresenta a sua teoria das aretai, distinguindo dois tipos de aretai: as qualidades de inteligência ( h( dianohtikh/ e as de caráter (h( h)qikh/ ). Aquelas se desenvolvem no sábio, cujo objeto de investigação são os objetos imutáveis, acerca dos quais se pode gerar um conhecimento epistêmico, passível de  juízos de verdade e de erro e de ensino.

Alcançar essas aretai é o auge da vida contemplativa.

As disciplinas do espírito que as cultivam não se voltam para a vida prática nem são produtivas.  As aretai referentes ao caráter são acessíveis à grande maioria das pessoas, desenvolvem-se em torno de objetos mutáveis, opináveis, que supõem decisões  voltadas para a ação, tomadas após deliberação com cálculo e reflexão. Se tiverem mérito, isto é, obedecerem a retas tendências (desejos), essas decisões revelarão o homem prudente  (h( fro/nhsij, ewj).  O que alcançar essas aretai terá  uma vida ativa plena. [27]

Diferindo de Platão, Aristóteles ressalta que tais decisões voltam -se para a vida prática, a saber, para a vida na polis, a vida política. Elas formam o caráter do homem e são filhas do hábito. Logo, não comportam verdade/falsidade, mas valores: mais úteis, mais convenientes.

Aristóteles estabelece que o bem é o alvo da vida feliz, que esse bem se alcança com a prática das excelências, que ninguém nasce virtuoso e nem aprende teoricamente o que a virtude é. Mas que o ser humano vai incorporando em sua natureza uma disposição para a areté, e, com o treino e o tempo, a constância e disciplina, pode torna-se um homem de bem. 

 Quanto aos fundamentos de suas idéias acerca da areté,  afasta-se de Platão, para o qual tanto a vida moral como a vida propriamente científica desenvolvem-se em torno de objetos cuja representação sensível encontra uma correspondência ontológica transcendental no plano do imutável e do eterno.

Como vemos, o tema da areté é extremamente instigante e merece um tratamento mais aprofundado. Contudo, deixando o contexto histórico em que até agora nos temos movido, o que se deve ressaltar é a grande importância filosófica do tema. Pois os gregos perceberam que o  homem é educável porque é modificável. E entenderam essa modificabilidade como um projeto rumo à perfeição. A essa perfeição  chamaram areté, à qual deram, a cada tempo, uma forma humana, que consideraram  ideal porque excelente.

Estudando os gregos, mais uma vez percebemos a historicidade dos ideais educativos, que o homem pensa sempre como perenes, mas que se revelam transitórios, no fluxo da vida e no curso transformador  dos acontecimentos.



[1] Cf. Felix Gaffiot - Dictionnaire Illustré  Latin Francais. Paris: Hachette.

[2] Cf. A. Bailly - Abrégé du Dictionnire Grec Français. Paris: Hachette

[3] "...h(\ ga\r ne/oj e(rpontaj eu)menei= pe/d%, a(/panta pandokousa paidei/aj  o)/tlon, e)qre/yat/ oi)khth=raj a)spidehfo/rouj pistou\j o(pwj ge/noisqen pro\j xre/oj to/de. (w18-20

[4] Cf. Werner Jaeger - Paideia. A formação do homem grego. S.Paulo:Herder, Introdução e livro I.  Trad. de Artur A. Parreira.

[5] Cf. H.-I. Marrou - História da Educação na Antiguidade. E.P.U.-EDUSP, 1973.  Trad. de Mário Leônidas  Casanova, p. 225.

[6] Cf. A. Bailly - Abrégé du Dictionnire Grec Français Paris: Hachette.

[7] Cf. W. Jaeger, op. cit., Introdução.

[8] f. W. Jaeger, op. cit., livro I.

[9] Ilíada, IX, 439-443. Trad. Octávio Mendes Cajado, Difel, 1961

[10] Ilíada, VI, 207-210 - Hélade

[11] Ilíada, XX, 242-243, Hélade

[12]   Cf. H.-I. Marrou, op. cit., I parte.

[13]   Também   o/(sioj, a; os, on , que significa primeiramente o que é ordenado, permitido pela lei divina; sagrado. E, também,  consagrado; piedoso, religioso, justo, puro.  Lembre-se que    o(si/a, aj ; o(si/h, hj é a lei divina.

[14] Fr. 9 Diehl, Hélade

[15] fr. 2 Diels. Hélade.

[16] fr. 4 Trad. de Gilda Naécia Maciel de Barros

[17] Trabalhos e Dias, 311-313. In Hélade, trad. de Maria Helena da Rocha Pereira.

[18] Trabalhos e Dias, 287-292. Id., ib.

[19] Trabalhos e Dias, 213-218. Id. ib.

[20] Textos da Garnier, tradução de  Roque Spencer Maciel de Barros

[21] Eletra, palavras de Orestes, vv. 367-390. As traduções de Eurípides são de Roque Spencer Maciel de Barros.

[22] Dictys, fr. 345, G. IV, p. 294.

[23] Palamedes, fr. 585, G.IV, p. 305.

[24] Peça não localizada, fr. 955, G. IV, p. 387

[25] Nícolas §§ 5/9. In: Isócrates e a Filosofia. Rev. FEUSP, v. 2, nº 1, 1976. Trad. de Roque Spencer Maciel de Barros.

[26] Erga, vv. 263-5 In  Hesíodo Os trabalhos e os dias, S.Paulo:Iluminuras, 1990. Trad. de Mary de Camargo Neves Lafer

[27] Aristóteles define a areté moral como uma perfeição, um estado natural do caráter. Examinando a areté do cavalo e do olho é que ele chega à do homem, e a define como o estado que nos torna bons e nos permite concluir a tarefa que nos é própria.