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Educação Liberal e Tolerância Intelectual
(notas de uma palestra na FEUSP)
José Sérgio Carvalho
Fac. de Educação da USP
Vimos, em palestras anteriores, que a noção de tolerância, inicialmente vinculada ao plano da tolerância religiosa, constituiu a base em torno da qual se edificaram os ideais do pensamento liberal moderno. E, ainda que em um breve momento, como a educação escolar teve um papel de destaque na formação desse ideário. Isso porque o acesso imediato às escrituras sagradas, propiciada pela expansão da escolaridade básica e da alfabetização aliada às traduções da Bíblia para as línguas nacionais, não só retirou o monopólio dos sacerdotes no acesso e interpretação desses textos, como abriu a possibilidade de múltiplas leituras igualmente legítimas que propiciaram tendências religiosas diversificadas. Tais transformações acabaram por resultar na criação de inúmeras correntes de pensamento que desafiaram a ortodoxia oficial do catolicismo romano.
Mas, evidentemente, a intolerância não se iniciou no momento em que o Cristianismo tornou-se a religião do Estado, nem triunfa definitivamente quando as religiões reformistas solidificam-se como uma alternativa a esse tipo de ortodoxia . Como destaca Popper, comentando o aparecimento e os efeitos das ortodoxias intolerantes posteriores “... mais tarde - sobretudo nos séculos XVII e XVIII - vieram outros fundamentos ideológicos para justificar a perseguição, a crueldade e o terror: nacionalidade, raça, ortodoxias políticas, outras religiões” [1] . A tais fundamentos poderíamos, seguramente, acrescentar as profecias detentoras de "verdades definitivas" pretensamente deduzidas de teorias científicas ou doutrinas filosóficas.
Assim, para que a noção de tolerância permanecesse e permaneça viva foi e é preciso que ela se expanda a outras áreas, que enfrente outras formas de ortodoxias. Analogamente, à escola cabem hoje novos papéis em face dessa luta contra a intolerância. Dentre eles, um que me parece ser sua tarefa específica enquanto instituição social ligada à difusão da cultura formal: a defesa da tolerância intelectual.
Gostaria, a partir dessa perspectiva, de refletir sobre alguns fundamentos que justifiquem a idéia de uma educação liberal enquanto educação para a tolerância intelectual. Eventualmente a conexão entre a idéia de uma educação liberal fundada nos pressupostos da tolerância, e ainda mais especificamente nos da tolerância intelectual, pode ser considerada tão evidente que dispense maiores esclarecimentos ou justificativas. No entanto, o uso tão amplo e a aceitação quase unânime dessa conexão pode também revelar uma concordância mais retórica do que de princípios. A variedade de concepções que tais termos podem encerrar, ou mesmo a ausência de reflexão sobre seus sentidos e conexões, podem transformá-los meros slogans educacionais, em face dos quais nos posicionamos mais em função de paixões e palavras de ordem do que de uma tomada de posição crítica.
No que diz respeito, por exemplo, à relação entre o ensino escolar e a tolerância religiosa, há posições que podem parecer unânimes, pelo menos nos países ocidentais que contam com sistemas de ensino laico. Ainda que haja escolas confessionais e se debata o problema da inserção do ensino religioso nas escolas públicas, parece não haver segmentos sociais que defendam, pelo menos abertamente, a intolerância em face de outras religiões. Mas, esse enfraquecimento da intolerância religiosa não significa necessariamente o desaparecimento de qualquer ensino doutrinário e dogmático.
Ele pode simplesmente significar que, fora das instituições religiosas, o critério de verdade fundado na aceitação da autoridade de um livro sagrado de uma religião ou de determinadas interpretações eclesiásticas não é mais tido como legítimo ou, pelo menos, a legitimidade não é extensiva a outras instituições, como as de ensino. O que não implica a ausência de novas ortodoxias sacralizadas, por vezes até pretensamente fundada em teorias racionais, mas que acabam por desprezar os critérios canonizados historicamente pela crítica racional e se transformam em novas idolatrias profanas. Nesse caso, estaríamos em face do enfraquecimento de um determinado tipo de intolerância - a religiosa -, sem garantias, no entanto, de que outros tipos de intolerância, como a intelectual, por exemplo, subsistam.
A esse respeito, por exemplo, Weber nos alerta contra aqueles intelectuais que "substituem a religião por um sucedâneo com que enfeitam a alma como se enfeita uma capela privada, ornamentando-a com ídolos trazidos de todas as partes do mundo. Ou criam sucedâneos de todas as possíveis formas de experiência, aos quais atribuem a dignidade de santidade mística para trancafiá-los no mercado de livros ". [2] É como se, para usar a metáfora weberiana, os deuses abandonassem suas moradas sagradas e passassem a habitar entre nós, travestidos de intelectuais e gerando novas idolatrias e novas ortodoxias. A intolerância de nossos tempos não se apresenta como tal, mas freqüente - e paradoxalmente - aparece como uma forma derivada do que Popper chamou de relativismo epistemológico, capaz, por sua vez, de gerar novas formas de intolerância e fanatismo.
Essa postura em face dos conhecimentos caracteriza-se, segundo o autor, pelo visão que "...todas as teses intelectuais são mais ou menos justificáveis. Tudo está permitido. Por isso a tese do relativismo freqüentemente conduz à anarquia, à ausência de legalidade e, assim, ao domínio da força". [3] A ela Popper contrapõe a idéia do pluralismo crítico e suas conseqüências éticas.
Ainda que os termos relativismo e pluralismo possam, a primeira vista, parecer próximos, há diferenças fundamentais entre tais visões do conhecimento: "O relativismo é a postura segundo a qual se pode afirmar tudo, ou quase tudo e, portanto, nada. A verdade é algo sem significado. O pluralismo crítico é a postura segundo a qual, no interesse da busca da verdade, toda teoria - quanto mais teorias melhor - deve admitir-se em competição com outras teorias. Tal competição consiste na discussão racional da teoria e em sua eliminação crítica". [4]
Assim, aquilo que Popper denomina pluralismo crítico filia-se a uma longa tradição crítica que, como ele destaca, tem raízes no pensamento grego. De forma sucinta, poderíamos dizer que tal tradição, em suas mais variadas formas, sustenta que nosso saber é sempre hipotético, que as reiteradas confrontações dos enunciados em que ele se constitui com as experiências empíricas o reformula constantemente, não havendo, portanto, garantias ou métodos infalíveis para a construção de enunciados definitivamente verdadeiros.
Dessa forma Popper parece apontar para a existência de certos princípios éticos na constituição do conhecimento racional. Em primeiro lugar, o compromisso com a busca da verdade como um princípio regulador. O caráter constante de tal compromisso, por outro lado, assegura-nos que não a temos, e que ainda se a tivéssemos, jamais poderíamos ter certeza de sua posse. Nesse sentido tal compromisso diferencia-se da certeza subjetiva que freqüentemente anima as ortodoxias e fanatismos de toda sorte. O escrutínio público a que se submete a ciência, em face das teorias rivais contemporâneas e subseqüentes, é tão capaz de estabelecer consensos interpessoais, como de nos mostrar a impossibilidade de se evitar todo e qualquer erro na construção dos enunciados científicos, posto que o debate sempre apontará erros e imperfeições, assim como tentativas de aperfeiçoamento. Nesse sentido, é da consciência da falibilidade humana que derivam os princípios da tolerância em geral, e da tolerância como responsabilidade intelectual.
Tais princípios, justamente por serem derivados de uma análise sobre a racionalidade crítica do saber científico - cuja transmissão é em grande parte tarefa escolar - têm, a meu ver, papel fundamental para a questão da tolerância intelectual nas instituições de ensino. Nesse sentido, a tolerância intelectual não é meramente um imperativo ético consensual, mas constitutivo da própria dinâmica histórica do desenvolvimento das ciências.
Mas, ainda que indubitavelmente a transmissão do saber científico e racional integre de forma substancial os currículos escolares - o que faz com que esse posicionamento ético seja de especial relevância em nossa profissão -, é preciso apontar que os conteúdos escolares não se resumem a essa área específica do saber humano que é a ciência. Desse modo, seria interessante pensarmos em que medida tais princípios éticos que constituem, segundo Popper, princípios subjacentes às ciências, teriam ou não um papel análogo em outros domínios do conhecimento humano presentes no currículo escolar, como, por exemplo, o estético ou o lingüístico.
Hirst, por exemplo, ao comentar os conteúdos escolares fala em quatro modos de pensamento ou formas de compreensão que comporiam as disciplinas escolares: o lógico, o empírico, o moral e o estético. Tais modos de pensamento, que incluem, mas ultrapassam as ciências, distinguem-se uns dos outros não só por seus conceitos e expressões particulares, como também por seus critérios de distinção entre o falso e o verdadeiro, o bom e o mau, enfim, pelo fato de terem critérios de seleção e hierarquia próprios a cada um.
Mas, o que parece ser algo comum a tais critérios e que é especialmente relevante para a discussão do tema em pauta é sua afirmação que "sejam quais forem as formas privadas de consciência que possam existir, é por meio de símbolos, particularmente na linguagem, que a articulação conceitual torna-se objetivada, pois os símbolos dão um corpo público aos conceitos... A objetivação da compreensão é possível porque os critérios comumente aceitos para o uso dos termos são reconhecidos, mesmo que nunca tenham sido explicitamente expressos. E, além disso, como os símbolos derivados da experiência podem ser usados para examinar a experiência ulterior, as asserções são possíveis, podendo ser verificadas.... Portanto, também existem critérios públicos pelos quais certas formas de expressão são avaliáveis em comparação com a experiência". [5]
Nesse sentido, tal como a ciência, os outros modos de pensamento que integram a cultura escolar estruturam sua linguagem, suas práticas avaliativas e se constituem como tradições do saber a partir de sua existência pública e não de certezas subjetivas. Enquanto integrantes de uma linguagem pública, também estão sujeitos ao escrutínio e à revisão constante. Também nestes campos caminhamos sem certezas de verdade, a não ser a velha certeza socrática que nos convoca à mesma responsabilidade em face da tolerância intelectual.
Tal responsabilidade se concretiza não na transmissão de um simples conjunto de conteúdos, sejam eles quais forem, mas na iniciação dos indivíduos nas tradições públicas, através desses conteúdos e das práticas sociais que os geraram. Como nos lembra Peters, em relação a essa questão "o professor não é um operador desinteressado que está promovendo algum tipo de resultado em outra pessoa que lhe é exterior. Sua tarefa é a de tentar levar os outros para uma forma pública de vida da qual ele participa e considera valiosa." [6] . E essa forma de vida, por ser pública, não deve prescindir, parece-me, da tolerância intelectual, possibilitadora e constitutiva da racionalidade crítica.
[1] Karl R. Popper.Sociedade Abierta, universo Abierto.Madrid, Tecnos,1984. p. 141.
[2] Max Weber. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo, Cultrix, 1967. p.50.
[3] Karl R. Popper. Op. cit.p. 143 (grifos do autor).
[4] ibidem, p.143.
[5] Paul H. Hirst. A Educação Liberal e a natureza do conhecimento. in Educação e Análise Filosófica. Archambault (org.). São Paulo, Saraiva, 1979. (grifos meus).
[6] Richard Peters. Educação como Iniciação. in. Archambault (org.). Op. Cit. p. 123.