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Ruy Afonso da Costa Nunes
Fac. de educação da USP

Resumo: A filosofia moderna não procede de Descartes, mas surgiu no século XIII. Nessa centúria trepidante, com a recuperação, a assimilação, e a inovação da filosofia aristotética – obra consagrada de S. Tomás de Aquino – um dos mestres acatados de teologia na Universidade de Paris, foi São Boaventura que estudou e utilizou a doutrina de Aristóteles, por imposição curricular e exigência dos cursos, mas que nunca teve apreço especial por Aristóteles nem tentou ou sonhou em lhe atualizar a doutrina. O filósofo grego mais o assombrava que o deleitava,através da face doutrinária de Averróis.

Palavras-chave: Teologia; franciscanismo; mística; averroísmo.

Na história da filosofia medieval, o nome de São Boaventura reponta como o de um filósofo franciscano, êmulo de seu amigo dominicano, Santo Tomás de Aquino. No entanto, esses dois frades mendicantes foram, sem dúvida, luzeiros da Teologia cristã no século XIII, e mestres na Faculdade de Teologia da Universidade de Paris. A trajetória doutrinal deles, todavia, foi bem distinta pois, considerados à distância de tantos séculos, na configuração de seu tempo e da cultura de sua época, eles nos aparecem como representantes do pensamento cristão, de um lado aferrado à tradição agostiniana e neoplatônica, São Boaventura, e de outro, S. Tomás, fiel à tradição teológica, mas inovador no método e na conversão da Teologia em ciência rigorosa, mercê da descoberta e da utilização da filosofia aristotélica na elaboração da sua própria doutrina, sobre ter sido o Aquinate um autêntico filósofo que, na constituição da Teologia escolástica, aprimorou o legado de Santo Anselmo e Abelardo, e logrou estabelecer um sistema filosófico, mesclado com a sua Teologia, mas dela perfeitamente distinta e destacável. Tudo isso se deduz da leitura e do estudo das obras dos dois santos doutores, e no que tange a Boaventura, é o que resulta claro do livro clássico de Etienne Gilson, La philosophie de Saint Bonaventure (1924). Desde a publicação dessa obra, pouco se acrescentou ao conhecimento das concepções bonaventurianas, embora as negaças e críticas de Van Steenberghen, e os fraternos e seráficos esforços de autores como J. Guy Bougerol e Efrem Bettoni, entre vários outros estudiosos franciscanos.

Hoje não se discute mais, se a filosofia é obra da razão humana. Do ponto de vista religioso, estamos com a posição fixada por Santo Tomás de Aquino: a Teologia é a ciência que organiza, estuda e aprofunda, com o auxílio da Filosofia, a matéria fornecida pela revelação, e os dados revelados por Jesus Cristo servem de primeiros princípios para a Teologia e são aceitos pela fé. Já a Filosofia é a ciência da realidade, dos seus primeiros princípios e dos últimos fins, alcançados e propostos pelo intelecto ativo, pela razão especulativa e prática do homem. Por isso, Gilson é peremptório: Si philosophie égale raison pure, il n’y a pas de philosophie bonaventurienne (La philosophie de Saint Bonaventure, p. 387). Logo mais, porém, em notável cabriola dialética, Gilson assere que São Boaventura foi filósofo, e foi mesmo um grande filósofo já que, tendo sido essencialmente um místico, “concebeu o projeto de sistematizar o saber e as coisas em função da mística” (Ibid., p. 390). Quanto a essa questão, Van Steenberghen logra ser categórico e esclarecedor: “São Boaventura, diz ele, não escreveu nenhuma obra filosófica, nunca ensinou filosofia. As suas obras teológicas, no entanto, contêm noções e dados provenientes da filosofia” (Steenberghen, Fernand Van. La Philosophie au XIIIe siècle. Louvain: 1966, p. 242-3).

São Boaventura, grande místico e vero teólogo, nunca alimentou veleidades filosóficas. Tendo recebido o doutoramento e o mestrado em Teologia, junto com Santo Tomás de Aquino, em 27 de outubro de 1257, não pôde exercer o magistério universitário como o seu êmulo dominicano, pois, desde o dia 2 de fevereiro do mesmo ano, fôra eleito Ministro Geral da Ordem Franciscana para substituir João de Parma, quando contava apenas 36 anos de idade. Portanto, se São Boaventura não escreveu especificamente sobre Filosofia, muito menos a lecionou ou utilizou no ensino universitário da Teologia. Ele o fez durante o seu aprendizado teológico nos Comentários às sentenças de Pedro Lombardo, tarefa acadêmica obrigatória e no fim da vida, em algumas conferências para estudantes de Teologia em Paris.

São Boaventura foi um guardião zeloso da mundividência teológica agostiniana, engrossada pelas contribuições de Santo Anselmo, São Bernardo, os Vitorinos e pelo seu “mestre e pai”, Alexandre de Hales. Além disso, notabilizou-se como o segundo fundador da Ordem dos Frades Menores pois, fiel ao carisma de São Francisco, enfrentou a realidade, determinando como os frades, sem embargo da pobreza, deveriam estudar e lidar com os livros, para bem se desencumbirem das obrigações do ministério sacerdotal, máxime da pregação e do ensino. Por fim, a preocupação essencial de São Boaventura, no seio da família franciscana, era manter-se unido a Deus, fiel a Jesus Cristo e à sua doutrina e, com essa intenção, ele reduz num livro as artes liberais à Teologia e traça com mão de mestre o itinerário da mente para Deus. Foi, desse modo, um consumado místico, e um dos maiores mestres da sabedoria cristã.

O futuro São Boaventura nasceu na pequena cidade de Bagnorea, na Toscana, no ano de 1221 – em 1217 dizem alguns. Recebeu o mesmo nome do pai, o médico João de Fidanza. Sua mãe era Maria de Ritelli. Com quatro anos de idade ficou gravemente enfermo, e recobrou a saúde depois que sua mãe implorou fervorosamente a sua cura a São Francisco. O menino freqüentava o convento dos franciscanos, e com eles aprendeu a língua latina. Sabedor das disposições do filho para os estudos, o médico Fidanza enviou-o a Paris para cursar a Faculdade de Artes, ali pelo ano de 1234. A essa altura dos acontecimentos, a Universidade de Paris já se assinalara por várias crises, e os estudos universitários de Artes e Teologia já estavam devidamente regulamentados.

A primeira universidade européia surgiu e organizou-se em Bolonha, tendo por centro a Faculdade de Direito. A universidade de Paris consagrou-se como o maior centro de estudos religiosos com a sua Faculdade de Teologia. Em Salerno, no sul da Itália, e em Montpellier, na França, os estudos superiores concentravam-se na Faculdade de Medicina. Para cursar qualquer uma dessas três faculdades, o aluno devia estar formado pela Faculdade de Artes, centro superior de estudo das tradicionais sete artes liberais: Gramática, Retórica e Dialética (Trivium); Aritmética, Geometria, Astronomia e Música (Quadrivium).

Devido ao acúmulo das novas fontes de conhecimento, das traduções das obras dos antigos autores gregos, dos árabes e dos judeus da Idade Média, particularmente do século XII, o acervo do saber filosófico e científico crescera de modo extraordinário, e levara à constituição da Faculdade de Artes. Em ondas sucessivas, observa Van Steenberghen, uma abundante literatura filosófica e científica, da metade do século XII ao fim do século XIII, penetrou no Ocidente, fato histórico capital para a cultura cristã. Depois de quase um milênio, os pensadores cristãos se viram diante da obra completa de Aristóteles, e a concepção puramente naturalista do universo defrontou-se com a visão cristã da existência.

Na diocese de Paris, por duas vezes, em 1210 e em 1215, sob o papa Inocêncio III, foi proibida a explicação em classes da universidade dos libri naturales de Aristóteles, nas traduções árabe-latina e greco-latina, e da Metafísica na tradução greco-latina. Os promotores do estudo desses livros eram os médicos e os artistas, isto é, os professores da Faculdade de Artes. Em agosto de 1215, o cardeal Roberto de Courçon, legado papal, regulamentou os estudos da faculdade dos artistas e da faculdade de Teologia. Aos 7 de julho de 1228, o papa Gregório IX dirigiu uma carta aos professores de Teologia de Paris sobre o uso da Filosofia no estudo e no ensino da Teologia. De 1229 a 1231 lavrou a gravíssima crise da Universidade de Paris, desencadeada pela violência da polícia contra os estudantes, fato que ocasionou a greve, e até mesmo a transferência dos cursos para fora de Paris. Essa crise terminou com a bula, Parens scientiarum, do papa Gregório IX, de 13 de abril de 1231, endereçada aos professores e estudantes da Universidade de Paris. Essa carta, diz Grabmann no seu clássico estudo I divieti ecclesiastici di Aristotele sotto Innocenzo III e Gregorio IX (Roma, 1941), pode ser definida, com plena razão, como a magna charta da Universidade de Paris. Foi durante essa crise universitária que a Ordem Dominicana foi introduzida no corpo docente da Universidade de Paris, em 1229, e nisso ela foi prontamente acompanhada pela Ordem Franciscana em 1231, quando o mestre universitário, Alexandre de Hales, se tornou franciscano, conservando a sua cátedra de Teologia.

Na bula Parens scientiarum, tida por Denifle, “quasi totius Universitatis constitutio”, Gregório IX trata do estudo de Aristóteles na Faculdade de Artes e do método conveniente no ensino da Teologia. Os regulamentos do papa sobre os libri naturales de Aristóteles são aplicáveis aos professores de Artes. Eles podem ser lidos fora das classes, e a proibição do seu ensino público vale só para a Universidade de Paris, até que uma comissão de especialistas procedesse ao exame, à emenda, à correção dos escritos aristotélicos, freqüentemente maculados pelas interpretações dos filósofos muçulmanos, máxime de Averróis, e até que ficassem livres da suspeita de heresia. A bula Parens scientiarum determina o método de ensino da Teologia, vedando o emprego excessivo da filosofia aristotélica nas exposições, interpretações e debates da sagrada Teologia. “Os mestres e os alunos de Teologia”, reza a bula, “não se preocupem em aparecer como filósofos, mas esforçem-se para se tornarem teodoctos, e só discutam questões baseadas nos livros teológicos, nas obras dos Santos Padres.”

São Boaventura deve ter cursado a Faculdade de Artes de 1234 a 1240. Ingressou na Ordem Franciscana em 1243, estudou Teologia sob a regência de Alexandre de Hales até à morte deste em 1245, e sob a regência dos franciscanos Odão Rigaud, João de Parma e Ricardo de Cornualha. Iniciou o magistério curricular, como bacharel bíblico em 1248 e, dois anos depois, como bacharel sentenciário. Licenciou-se em 1253, e exerceu o magistério teológico no Estudo Geral da sua Ordem, tendo assimilado nas leituras e investigações a Teologia essencialmente agostianiana. Pois bem, na Universidade de Paris – onde os escritos de Aristóteles foram postos sob reserva, onde o método do estudo e do ensino fora estatuído por Gregório IX, com nítida e justificável prevenção contra o naturalismo da filosofia aristotélica – São Boaventura teve desenhado o seu definitivo perfil de teólogo-guardião do patrimônio antigo, da tradição agostiniana e neoplatônica. Em 1256, participou em Anagni da defesa das ordens mendicantes, contestadas pelos mestres seculares da Universidade de Paris, e avultou, junto com Santo Tomás de Aquino, na redação de livro apologético contra os ataques dos seculares. Em 1257, feito ministro geral da Ordem Franciscana, abandonou a vida universitária, e dedicou-se à reorganização da Ordem dos Frades Menores, passando a apontar a nova orientação dos estudos, e o espírito com que deviam ser seguidos. Não é de admirar ou espantar o apego de São Boaventura à defesa do caráter específico dos estudos teológicos, rejeitando as profanas novidades do aristotelismo, particularmente do heterodoxo, representado pelos averroístas, capitaneados por Sigério de Brabant. O significado da filosofia aristotélica não estava, ainda, devidamente esclarecido, tarefa que seria realizada, com decisão, descortínio e valor inexcedível, por Santo Tomás de Aquino. Entre os próprios dominicanos, pertencentes a uma nova Ordem religiosa, fundada com o objetivo da dedicação ao estudo, à verdade e à pregação, pulularam no século XIII prevenções, suspeitas e condenações contra as obras de Aristóteles, principalmente devido à difusão do averroísmo que defendia a autonomia da Filosofia – coisa até então impensável para a maioria dos estudiosos.

Boa comprovação dessa mentalidade, patente na bula Parens scientiarum, na orientação bonaventuriana e franciscana, acha-se na carta que um dominicano, o Bem-aventurado Venturino de Bérgamo escreveu a frei Egnouf de Ehenhein, residente em Bâle, em setembro de 1339 (note-se a data), sobre A boa vontade, a disciplina e a ciência. Narra Venturino que o santo confrade, Roberto de Uzès, da província da Provença, se achava um dia à mesa, em Paris, quando a mão do Senhor desceu sobre ele, que viu um homem revestido com o hábito dos Pregadores e que parecia faminto. Ele trazia suspensos ao pescoço pão e vinho excelentes, mas roía penosamente uma pedra oblonga, como um esfomeado o faz com o pão, mas nada conseguia e continuava com fome, porque deixava de lado o pão e o vinho. De cada lado da pedra saíam duas cabeças de serpentes. Então, o Espírito de Deus lhe diz: “O pão e o vinho representam a sagrada Teologia, que a tua Ordem negligencia para se ocupar em vão da pedra da filosofia. Os nomes das serpentes são vanglória e destruição do espírito religioso. Por isso, diz Venturino, parece-me bom que um irmão, ocupado no estudo da Teologia, procure antes de tudo a própria salvação e Deus, e só depois aquilo com que possa atrair o próximo ao amor de Deus, deixando de lado as sutilezas da filosofia, embora eu saiba que certos confrades andam em dia com tais estudos. Pois então que o façam, guardando a reserva e a humildade que nosso grande e venerável doutor de Teologia e filosofia soube observar (Santo Tomás de Aquino) (Bx. Venturin de Bergame. Directoire spirituel. Paris: Desclés et Cie Éditions de La Vie Spirituelle, 1926, p. 27-9). Bem ponderados os conselhos, percebe-se que Venturino de Bérgamo pensa como Gregório IX, e recomenda aos teólogos que não queiram parecer filósofos, mas sejam, de fato, teodoctos, recomendação importante, pois se agora não se temia mais Aristóteles, vivia-se uma época de preciosismo e sutilezas filosóficas, típicas da escolástica decadente. O que parece danoso a Venturino é roer a pedra da Filosofia para só se gozar da vanglória, e concorrer para a destruição do espírito religioso, pois ao teólogo compete sobretudo a sólida nutrição do pão e vinho.

São Boaventura abraçou a doutrina filosófica e teológica de Santo Agostinho, o mestre inconteste de sucessivas gerações de estudiosos durante várias centúrias, de 430 d.C., quando morreu, até ao século XIII, quando a sua autoridade passou a ser compartilhada com a de Aristóteles, mercê das investigações e traduções das suas obras gregas, das obras e comentários dos filósofos árabes, e do trabalho exegético-filosófico, levado a cabo por Santo Alberto Magno e por Santo Tomás de Aquino. O Doutor Angélico, em oposição ao Doutor Seráfico ou Devoto, foi o máximo artífice da assimilação da filosofia de Aristóteles, assim como o pensador que arrematou a herança aristotélica que, em sábia e inspirada sistematização, associou à medula do pensamento agostiniano e neoplatônico, ressalvado o corte das arestas inadmissíveis.

Já se disse, e se escreveu a valer, que São Boaventura foi um dos maiores representantes do augustinismo filosófico e teológico, que permanece como sinal típico da escola franciscana. Embora as vociferações eruditas, em contrário, de Fernand Van Steenberghen, houve, sem dúvida esse augustinismo caracterizado, principalmente, pelas seguintes teses:

– a Filosofia está subordinada à Teologia;

– além do conhecimento sensorial, o homem é dotado de inteligência que recebe um influxo especial de Deus, uma luz que lhe permite conhecer as verdades eternas. É a teoria da Iluminação;

–             o Bem precede a Verdade, e a Vontade antecede a Inteligência;

–             no homem, a alma e o corpo são duas substâncias completas, unidas apenas acidentalmente, como o cavalo está ligado ao cavaleiro;

–             num ente composto e, portanto, no homem, não existe só uma forma substancial, mas uma pluralidade de formas, e nisso não vai a mão de Agostinho, mas o influxo de Avicena, como o demonstrou Gilson (particularmente nos estudos: Les Sources Greco-arabes de L’augus-tinisme Avicennisant, Paris, Vrin, 1981, e Avicenne en occident au Moyen Age, in Études Médiévales, Paris: Vrin, 1983);

– ao criar o mundo material, Deus nele colocou as formas seminais de todas as coisas, rationes seminales;

– os próprios entes imateriais criados, os anjos, são compostos de matéria e forma.

São Boaventura desenvolveu-se intelectualmente, desde o aprendizado das primeiras letras, à luz e sob o afeto de Jesus Cristo, o único Mestre verdadeiro. Fez os seus estudos universitários em Paris e leu, por injunção dos programas, obras ou excertos dos escritos de Aristóteles. É preciso levar em conta que o conhecimento da doutrina aristotélica era haurido por muitos estudiosos em antologias ou Auctoritates. Assim, a propósito de São Boaventura, diz Bougerol: “Nas 1.015 citações ou referências a Aristóteles que deparei na obra de Boaventura, 630 correspondem a 244 textos tomados dos Auctoritates. Lembro que nessas 1.015 referências, pude identificar 593 textos em Aristóteles” (Bougerol, Jacques Guy. Dossier pour l’étude des repports entre Saint Bonaventure et Aristote, in Archives d’histoire Doctrinale et littéraire du moyen age, t. 40, Paris, Vrin, 1974, p. 219). Boaventura conhecia bastante Aristóteles, mas nunca o comentou, não só por falta de oportunidade didática, como pela razão fundamental a que alude Bougerol: “Entre os Menores não se comentava Aristóteles. Pelo menos em Paris [...]. Entre os Menores só se fez Teologia. E Boaventura não escapou à regra. Esse é o princípio fundamental em nome do qual é preciso julgar Boaventura”. (Ibid., p. 221).

Segundo Van Steenberghen, em La philosophie au XIIIe. siècle (p. 234-7), “Boaventura possuía extenso conhecimento da obra de Aristóteles, e sua atitude para com o Estagirita, nos Comentários às sentenças, não respira desconfiança, hostilidade, nem reprovação, mas é feita de estímulo, de respeito e de simpatia.” Só no fim de sua carreira, nas três séries de Collationes, em que denuncia o racionalismo, é que a sua atitude se modifica, e Boaventura manifesta hostilidade, mais aos discípulos cristãos do filósofo do que ao próprio Aristóteles. Frei Efrem Bettoni, no livro S. Bonaventura da Bagnoregio. Gli aspetti filosofici del suo pensiero (Milano, Biblioteca Francescana, 1973, p. 25), afirma que a especulação de São Boaventura apresenta-se como uma interpretação pessoal do neoplatonismo cristão, e que, “a despeito de muitos importantes empréstimos feitos a Aristóteles, São Boaventura é, e permanece, na história da filosofia medieval, como um pensador que decididamente recusou alinhar-se nas posições aristotélicas”.

De fato, parece-me que São Boaventura nunca nutriu simpatia ou benevolência para com Aristóteles, embora algumas alusões de boa civilidade, dirigidas ao filósofo, ao Príncipe dos filósofos. Como ele próprio o declara na Segunda dos Collationes de decem praeceptis, experimentou o maior desagrado pela doutrina de Aristóteles, desde os primeiros estudos no curso de artes em Paris, ao saber que para o Filósofo o mundo é eterno, então: “Incoepit concuti cor meum et incoepit cogitare quomodo potest hoc esse?”

Boaventura chega ao tom de caçoada para esvurmar Aristóteles, ao dizer na 17ª Conferência, collatio, sobre o Hexaêmeron: “Na Escritura há muitos objetivos de deleite espiritual, e só nela in hoc sola scientia est delectatio. O Filósofo assegura que magno deleite é saber que o diâmetro é assimétrico com a circunferência (Tradução do B.A.C., Obras, T.3, p. 497), diameter est asymeter costae. Pois este que seja, então, o seu deleite, se de fato o saboreia, “modo comedat illam”.

Para São Boaventura o exemplarismo é uma verdade sagrada. Na mente divina existem as idéias exemplares, isto é, os modelos de todas as coisas que aprouve a Deus criar. Clara adoção de exemplarismo platônico. Na 6ª Conferência sobre o Hexaêmeron, diz Boaventura que Aristóteles, na Metafísica e noutros passos de suas obras, execratur ideas Platonis, abomina a teoria das idéias de Platão, e seus argumentos não têm valor algum, et nihil valent rationes suae. Além disso, prossegue o menorita, Aristóteles negou a divina Providência e a disposição do mundo segundo penas e glórias, por não admitir nem o inferno, nem o demônio, nem o céu, após esta vida. Além disso, ensinou a eternidade do mundo, assim como a unidade do intelecto para o gênero humano. Esses ensinamentos são as trevas do Egito, que impedem a percepção da luz da verdade. Por isso, já que Aristóteles representaria a razão pura, eivada de erros, não admira seja, de fato, execrado por Boaventura, que chega a lembrar na 19ª Conferência sobre o Hexaêmeron que, na Igreja Primitiva, os livros de filosofia eram queimados, in Ecclesia etiam primitiva libros philosophiae comburebant. Por outro lado, se Boaventura sabia distinguir a fé da razão, a filosofia da Teologia, ele não deixava por menos, ao declarar: Philosophica scientia via est ad alias scientias, sed qui ibi vult stare cadit in tenebras, ou seja, a ciência filosófica é caminho para outras ciências, mas quem permanecer nela cai nas trevas. O que vale mesmo é o estudo da ciência teológica (Quarta conferência sôbre os Sete Dons do Espírito Santo).

A Filosofia deve estar sujeita à Teologia (Sententiarum Lib. III, Dist. XXIV, Art. II, Quaestio III, 4). No Prólogo ao Brevilóquio, São Boaventura assevera que a filosofia trata das coisas como existem na natureza ou na alma pelo conhecimento naturalmente dado ou adquirido, enquanto a Teologia baseada na fé, e relevada pelo Espírito Santo, trata das coisas que se referem à graça, à glória e à Sabedoria eterna, ipsa substernens sibi philosophicam cognitionem. Assim, a Teologia sujeita o conhecimento filosófico, pondo-o a seu serviço.

Em suma, São Boaventura é sobretudo teólogo e pensador cristocêntrico. Jesus Cristo para ele é o mestre de todos, o meio de todas as ciências. E como os filósofos pagãos não conheceram Jesus Cristo, a porta da verdade está fechada para eles, ostium est eis clausum (3ª Conferência sobre o Hexaêmeron, 4). Estou com A.D. Sertillanges, em sua genial obra Le christianisme et les philosophies. (2e. Édition, T.I, Paris, Aubier, p. 360-5). São Boaventura foi um grande filósofo, pessoalmente, por ter construído um monumento doutrinal completo e notável, a partir dos princípios de ser e do saber, tal como ele os compreendia, isto é, em ligação com o sobrenatural e em função da fé. Soube unificar o saber e interpretar o real. Todavia, a “filosofia bonaventuriana não é, no sentido próprio do termo, uma filosofia. Antes, é uma sabedoria teológica e mística.”

Sertillanges observa com acuidade que, ao se terminar a leitura do Itinerarium de São Boaventura, e se retomar a de alguns capítulos do Contra Gentes ou de alguns artigos da Suma, tem-se um pouco a impressão que se experimentaria, ao se passar duma página de Bernardin de Saint-Pierre para um tratado de Claude Bernard.

Na verdade, o próprio São Boaventura dá-nos a chave para a avaliação do seu papel como teólogo, e como teólogo filosofante. Ele confessa no início de seu Comentário ao Segundo Livro das Sentenças: Não cuido de descobrir opiniões novas, mas só de repetir as que são comuns e aprovadas. Não pretendo ser autor de novas doutrinas: Nec quisquan aestimet, quod novi scripti velim esse fabricator; hoc enim sentio et fateor quod sum pauper et tenuis compilator  (Sententiarum Liber II, Praelocutio. S. Bonaventurae Opera Theologica Selecta. Editio Minor, Tomus II. Quaracchi, Florença, 1938). São Boaventura estava, portanto, nos antípodas de Santo Tomás de Aquino de quem afirma Guilherme de Tocco, o seu primeiro biógrafo, ao salientar a sua notável originalidade: Erat enim novus in sua lectione, era novo nas suas aulas, propunha problemas novos, descobria novos métodos, empregava novas argumentações, explicava nova doutrina, pois Deus lhe concedera o dom de uma nova doutrina, através de uma nova luz e de nova inspiração (G. De Tocco, Vita Sancti Thomae, c. 3, n. 15, in Acta Sanctorum, Martii, I 7, 1865, p. 661-662). Nessa novidade do pensamento, o Doutor Angélico descobriu, assimilou, corrigiu e enriqueceu a filosofia de Aristóteles.



[1] Artigo gentilmente cedido pelos “Cadernos de História e Filosofia da Educação”, FEUSP. (publ. orig. no Vol. IV (2001), No. 6, dos Cadernos).