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Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Univ. do Porto

“Quando me convidam para um congresso, para uma mesa redonda, para dirigir uma obra colectiva, para escrever um ensaio, para participar num júri e eu respondo não ter tempo, ninguém acredita em mim: “Então, meu amigo – dizem-me – uma pessoa como você encontra sempre tempo.”, Evidentemente, nós os humanistas não somos tidos como profissionais sérios, mas sim por ociosos”
Umberto Eco [1]

 

I. GAL

GAL. É uma expressão que a muitos não diz ainda nada. Mas que é mais que familiar para quem tenha passado algum tempo nos chats da internet. Com razão ou sem ela, nesses grupos informais de pessoas sem rosto, há um ou uma (vai-se lá saber!), mais aborrecido, mais enquistado, ou que foi mais assediado (seja de que forma for) e que pressupõe que um outro é um maníaco do computador, que vive para a máquina, que não tem mais nada que fazer, que investe toda a sua razão, vontade e sentimento no écranzinho. E como o nosso clarividente co-chater (dir-se-á assim?) não quer falar com viciados, nem com pessoas de neurónios de micro-ships, dispara esse anátema terrível: get a life. E já o disse tantas vezes e já o ouviu dizer tantas vezes que nem sequer o exprime por extenso, mas apenas na cifrada gíria da net, toda feita de siglas: GAL – get a life.

Na vida real (RL – real life, no mesmo vocabulário), o nosso filantropo um tanto irado diria: what’s your problem?, ou, nesse português americanizado (o que soa ainda mais agressivo): qual é o teu problema? Mas na net diz apenas: GAL.

Ai Gal Costa...., que injúria! Nada a fazer: Gal é Get a Life.

Já são linhas demais de intróito, e perguntarão os pacientes leitores o que tem isto a ver com recursos humanos no nosso ensino superior.

Devo esclarecer desde já que tem tudo.

A minha tese é a de que no nosso ensino superior se trabalha muito muito, demasiado, em coisas supérfluas, e se trabalha muito pouco, pouquíssimo, nas importantes.

Mais: trabalha-se demasiado e depressa demais. E depressa e bem há pouco quem... (Saíu há poucos anos um livrinho delicioso que deveria calmamente meditado: Du bon usage de la lenteur, de Pierre Sansot - Paris, Payot, 1998).

Perante isto, a solução para a correcta aplicação dos recursos humanos no ensino superior seria, antes de mais...conseguir que os docentes tivessem vida própria e não se andassem a enganar com a vida artificial, fictícia, agitadíssima e ainda por cima aborrecidíssima (ou perigosíssima) das nossas instituições.

II. Trabalho supérfluo

É evidentemente preciso, muito preciso, acabar com o trabalho supérfluo. É urgente, urgentíssimo, fazer o trabalho que é preciso fazer. Mas, na realidade, os docentes só compreenderão a diferença entre um e outro quando tiverem uma vida cá fora. Quando, como fazia um grande professor, responderem às obrigações supérfluas com esta resposta inusitada: “Sabe, eu antes de professor sou Pai. Tenho nove filhos. Pô-los-ei sempre à frente da Universidade”. Excelente professor esse, que sabia as prioridades da vida.

No meu computador tenho uma frase serpenteantemente preguiçosa que é um enigma para muitos dos que o espiam quando o abandono: Lass Dir Zeit. Dá-te tempo.... Devia ser divisa de todo o professor do ensino superior. Mas...é precisamente o contrário.

Todos sabemos quão abnegados são – e sobretudo quão abnegadas são – os professores e as professoras que conseguem conciliar carreira e casa e filhos. Mas até que ponto não deveríamos todos ser mais incisivos em defesa dos nossos filhos, das nossas esposas, dos nossos maridos, dos nossos pais, dos nossos lares, dos nossos – porque não dizê-lo? – dos nossos interesses extra-académicos? Porque somos pessoas. E, curiosamente, as instituições educativas superiores, no seu afã de pseudo-qualidade, pseudo-excelência, pseudo-concorrência, pseudo-dedicação e pseudo-exclusividade nada disso respeitam. Curiosamente, as únicas ocupações que parece ainda respeitarem são as também profissionais.

Querem marcar-nos uma reunião em plenas férias, para um assunto de lana caprina, e absolutamente adiável. Há sempre colegas dedicados, sem outras obrigações nem afectos relevantes (normalmente solteiros, divorciados...) e sobretudo sem preocupações exteriores à carreira, sem hobbies, ou então demencialmente sedentos de poder – evidentemente em dedicação exclusiva, normalmente, mas sempre fazendo mil e uma coisas com tal miraculosamente compatíveis - que gostam de mobilizar todos os demais e têm inveja do seu tempo. Para estes entusiastas (e também há funcionários assim – valha-nos Deus!) os colegas são sempre preguiçosos impenitentes, relapsos calaceiros. A sua concepção de dedicação exclusiva é realmente literal: não fazem mais nada. Bem podiam dormir na escola (dizem-nos que no Japão isso chega a acontecer...). Perante esta reunião, sempre importantíssima, sempre caso de vida ou de morte, onde se jogam os altos interesses de uma instituição que, na verdade, se identifica com esses seus paladinos, quem pode escusar-se? Quem tem em mãos um tratado científico com revisão de provas urgente? Que interessa mais um livro! Quem tem uma reunião científica já marcada? Ora, de que vale mais uma palestra ou seminário! Quem tem o filho com sarampo? Um pai entrevado a socorrer? Morra o filho, morra o pai - salve-se a escola! Quem precisa, realmente, de férias? Sacrilégio!!! E a dedicação do docente à “Batalha da Educação”? E o espírito de corpo? E as cores da camisola?

Mas se se é advogado, ou médico, ou economista, ou arquitecto, ou não sei o quê com consultório ou gabinete, ou atelier ou o que seja cá fora, então sim, qualquer escusa profissional é tida como limite inultrapassável. E se se for político, isso nem se fala: são os superiores interesses da nação que clamam...

E sabem por que é que isto sucede? Porque, na sua imensa nesciência, o mundo mental subliminar do ensino superior compreende que esses que são profissionais liberais ou políticos ou o que quer que seja profissionalmente, não vivem imersos no aquário da escola: têm uma vida. E isso dá-lhes o direito de só fazerem na escola coisas realmente úteis. E no fundo eles sabem que a reunião era inútil...

Aos demais, como não têm vida, encarrega-se a escola de lha inventar, como uma espécie de terapia ocupacional. Sobretudo inventando-lhes trabalho, intrigas, guerras...

Funciona muito bem para muitos dos que se entregaram de alma e coração à escola e nunca dela saíram... E não conhecem o mundo lá fora...

Mas não só cria um profundo autismo como o real, como provoca sérios problemas à verdadeira qualidade do ensino superior, e a uns tantos que sabem que a sua função não é ocupar-se, mas fazer.

III. Pulverização orgânica, perda da memória, legalismo

Estamos perante um problema muito sério. As instituições de ensino superior têm-se estilhaçado em departamentos, secções, centros, institutos, laboratórios, comissões, presidências, direcções, avaliações, conselhos... E os docentes que podem estatutariamente pertencer a muitos desses órgãos de forma alguma cresceram ao mesmo ritmo. Muitos dos mais experientes e sábios catedráticos se aposentaram ou jubilaram nos últimos tempos. As instituições estão, em muitos casos, num déficit de experiência e perante um fosso, um abismo de memória. As tradições, essas práticas e experimentadas regras não escritas que tornavam tudo mais fácil, até pelo eventual “não-dito” e “não-ousado”, nem sequer são conhecidas de muitos. E os que as conheceram como que têm já pudor em transmiti-las. Também na universidade (o que é gravíssimo) o direito consuetudinário cede totalmente à mais estrita e legalista interpretação literal de leis hoje volvidas necessariamente lacunosas, porque contavam com o lastro dessa tradição.

IV. Industrialização e proletarização docentes

E no contexto desta desertificação dos freios e contrapesos naturais de instituições multisseculares, crê-se que a solução está na industrialização do trabalho, que implica, obviamente a proletarização dos docentes.

O valor dos curricula é, para alguns, medido pelo número de publicações, não em geral, mas com referees ou até blind referees. Como se o conteúdo (até as citações) de um artigo ou de um livro não denunciem (pelo menos nas Artes, nas Letras, nas Ciências sociais e humanas, no Direito, na Filosofia) a corrente ou pelo menos a grande família de pensamento ou de método a que se pertence, ou com que se tem maior proximidade. Nestas matérias nenhum árbitro, nenhum juiz é cego. E a qualidade das publicações, quem a mede? Claro que há já áreas em que a convenção e a tradição tornou certas publicações sacrossantas. Mas um ignoto e probo estudioso, sem contactos, sem amigos influentes, que não ensina numa universidade de uma grande capital nem na Ivy League pode publicar no jornal da associação de estudantes ou em edição do autor um trabalho bem melhor que a dos sábios institucionais e dos génios promovidos pelo marketing. Ninguém dará por isso...

As regras de seriação da qualidade de investigadores e grupos de investigadores não são neutras. E sobretudo não é neutra a ideia de que a nossa Casa, o nosso Centro, o nosso Curso, ou nós estamos irremediavelmente encostados à parede pela espada acusadora de sempre cada vez mais cegos juizes. Julgam-nos os estudantes, julgam-nos comissões de avaliação internas e externas, e em fogo cruzado, por cursos, por centros, por projectos... Vivemos na trituradora máquina da avaliação sem fim... E para justificarmos que somos bons, ou menos maus, massacramo-nos uns aos outros com relatórios, como projectos, com planos, com estatísticas, com avaliações, e com imensas, inúmeras, intermináveis... e normalmente infrutíferas reuniões...

V. Que é do ensinar e do investigar?

Enquanto multiplicamos as nossas actividades, em mais congressos, mais colóquios, mais seminários, mais cursos de graduação e pós-graduação, mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos, em cursos de férias e para estrangeiros, em mini-cursos, em macro-cursos, num cirandar demencial...enquanto isto, que é feito do básico, do essencial?

Estamos a licenciar estudantes mais competentes? Não. Estamos a dignificar os mestrados? De modo nenhum. O doutoramento ainda é um grau de se lhe tirar o chapéu? Está a degradar-se a olhos vistos.

E as nossas publicações? Muitas, muitas, inumeráveis... Mas a qualidade? Bem... Muito desigual...

Aliás, quem tem verdadeiramente tempo para investigar se tem de ser presidente deste órgão, director de outro, secretário de mais um, membro de mais cinco, e é compelido a participar em cursos de tudo, a proferir conferências aqui e acolá... E tem mesmo de fazê-lo porque os colegas o fazem, e os lugares são escassos... e quando vier o concurso ou a decisão sobre a nomeação definitiva... aí, pelo menos assim se calcula... quem não tem quilos de currículo fica para trás.

Ainda aqui, preferência do ter, do acumular (ainda que sejam linhas no currículo) face ao ser.

Devia indagar-se se o docente gosta de o ser, se dá aulas e investiga com prazer, se comunica o seu júbilo aos estudantes, se os entusiasma (ou, pelo menos, se o tenta: porque há hoje, infelizmente, estudantes insusceptíveis de entusiasmo...). Devia indagar-se se o que esse docente escreve é para a pilha do currículo ou por exigência do seu espírito. E sobretudo se lecciona e se investiga e escreve... bem. Isso é que é importante. Claro que num tempo de demissão de valores como o nosso o que procuram todos é refugiar-se em álibis formais: porque é muito aborrecido dizer que este presta e aquele não vale.

E depois, é claro, é muito delicado saber quem é competente para julgar os demais... Por isso, toda a avaliação dos docentes é muito delicada.

Mas o nosso ponto de hoje é outro.

VI. Hipertrofia da Gestão e da Administração escolares

Perdemos o nosso rico tempinho em burocracias, em tarefas rotineiras, administrativas, que realmente nada têm a ver com a nossa função. E tarefas todas a realizar de afogadilho, com prazos que são - nessa nova gíria saborosíssima que nos reduz sempre à nossa insignificância de irremediáveis culpados, faltosos e preguiçosos – sempre “para ontem”.

Todos estamos mobilizados para tarefas que só a muito poucos de nós deveriam dizer respeito, para que pudéssemos fazer o que nos compete. Se eu quisesse gerir, tinha tirado o curso de Gestão. E não ia gerir (sem sequer ganhar, antes deixando de ganhar) uma Universidade. Ia gerir uma multinacional. E não nos digam que se trata não de administrar mas de governar. Se eu quisesse governar, não me candidataria a órgãos de mando de uma secção, ou de um departamento, ou mesmo de uma Faculdade ou Escola: creio que tentaria a minha sorte na política nacional. Que péssima afectação de recursos! Porque se insiste em contrariar vocações e em obrigar à tarimba administrativa (ou ao trono doirado do princípio de Peter) quem não tem propensão nenhuma para a administração? Deixem portanto as tarefas de gestão o mais possível a funcionários de carreira, sem dúvida enquadrados por um conselho professores, e vigiados por inspecções técnicas. Obviamente não para os pôr a decidir de forma economicista sobre a ciência (isso será vetado pelos professores, e muito mais à vontade do que se estiverem submergidos pela administração), mas para não obrigar o cientista a perder de vista a sua obrigação: estudar e ensinar. Pois não é sádico pôr quem odeia contas a fazer contas e depois virem inspectores muito economistas e contabilistas vigiar e punir? Ou obrigar a tomar decisões jurídicas quem nunca teve tal formação, e depois ver tudo anulado pelos tribunais? Sejamos racionais:  não façamos perder valores da ciência, da investigação, da arte, para as tarefas da administração ou gestão. Nem se argumente que tal é ónus de quem quer subir na carreira, ou retorno aos demais de quem já atingiu o topo, e agora deve servir quem tem ainda que investigar. Grande incentivo para subir, este; bela recomendação para a promoção científica, aquela. Nem se prova competência académica gerindo bem, nem nenhum verdadeiro investigador e docente quererá chegar ao topo da carreira se souber que o que o espera são papeladas e o afastamento da vida de estudo e ensino que abraçou.

Há porém casos de vocações duplas e até triplas – dir-nos-ão. É verdade. Ergam as mãos aos céus as Casas que têm tais professores. Com capacidade de investigar, leccionar, e gerir: e com gosto pelas três. Acarinhem tais docentes. Mas não os ponham a competir com os que não foram bafejados por tantos dons. Apenas a esses deveria ser dado ocupar os cargos administrativos. Incentivem-se e acarinhem-se esses professores polivalentes. Não se contrariem as vocações dos demais. Não se promova a funcionalização obrigatória, roubando a vida a quem ainda a tem. Porque não tenhamos dúvidas: é roubar vida a um artista tirar-lhe a arte e dar-lhe a papelada, é roubar vida a um cientista privá-lo do laboratório e impor-lhe o regulamento, é roubar vida a um professor, que todos somos, tirar-lhe o tempo para leccionar, preparar suas aulas, estar com seus estudantes e seus livros e ocupá-lo em inspecções, reuniões, dossiês administrativos. Disso gostam apenas uns tantos por vocação polivalente, dedicação, abnegação e uns outros tantos por sede de mando, que nem sempre vem junta com a competência dos primeiros. E é fácil ver quais são uns e outros...

VII. Preservar a Personalidade na Escola concentracionária de massas

Os que têm vida terão de lutar ferozmente pela sua vida. E as instituições deveriam obrigar os que não têm vida a tê-la. Um professor que saiba pescar é infinitamente melhor que um professor que saiba a cor dos impressos de ingresso. Uma professora que a horas regulares amamente o seu filho é muitíssimo mais competente que uma que dê aulas de recuperação aos sábados e domingos. Um professor que saiba contemplar um pôr-do-sol não se compara ao que se disponha a pertencer a todas as comissões.

Não há lei nem temor reverencial universitário que nos possa impor deixarmos de ter vida. Viver para corrigir exames, fazer orais, organizar colóquios, participar em conselhos, fazer actas, apreciar pesadas teses, escrever artigos e livros pode preencher a vida de criaturas cumpridoras, sisudas, importantes, mas não faz espíritos livres, criativos, não faz pessoas, e muito menos propicia que esses formem pessoas. Por favor, arranjem uma vida. E deixem-nos viver a nossa.

Mas atenção: numa escola de pessoas, que vivem uma vida, é impossível o laxismo hoje imperante. Precisamente porque todos têm mais que fazer, gerem bem o seu tempo, e não estão para contemplações com a incompetência: venha de onde vier. Para bom entendedor... Mas esse já é outro problema.



[1] Umberto Eco, “Comment employer son temps”, Comment voyager avec un saumon, trad. fr. do original it., Paris, Grasset, 1997, p. 208 (trad. nossa).