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O Comentário de Tomás de Aquino ao Livro V da Ética a Nicómaco de Aristóteles

(conferência no III Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte – Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 25-6-02)

 

Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Univ. do Porto

 

I. Diálogo fingidamente pré-tomista com o Livro V da Ética a Nicómaco

1. Ponto de mira

A nossa leitura pessoal do Livro V da Ética a Nicómaco tem, como é óbvio, uma História. Partiu não do estudo filosófico, ético, ou teológico, mas desde logo de intenções jusfilosóficas. Partiu essencialmente da leitura dos Précis de Philosophie du Droit de Michel Villey e do último livro que este autor publicou em vida, Questions de Saint Thomas sur le Droit et la Politique. Mais tarde, leríamos um passo de Mário Bigotte Chorão, o conhecido jusnaturalista clássico português, que felizmente nos tranquilizou, porque já tínhamos lido este livro. Assinalava este autor realista clássico que a leitura desse texto do Estagirita deveria ser ponto de honra para todo o jurista e estudante de Direito.

Devo acrescentar que se me afigura que deveria ser ponto de honra para todo o que aspira a ser culto, o que, segundo a minha concepção de universidade significa: ponto de honra para todo o estudante universitário, de qualquer curso. Pois, na verdade, a temática da Justiça a todos interessa, e sobremaneira.

Mas valem estas reflexões confessionais sobretudo para explicitar que o nosso interesse foi de início (e em boa parte ainda é primacialmente) jusfilosófico. E é com os óculos desse mesmo interesse que nos permitimos olhar para o texto de Aristóteles, primeiro sozinho, e depois pela mão de Santo Tomás. A razão de metodologicamente seguirmos esta via é simples: devemos voltar aos originais; e não faz sentido debruçarmo-nos sobre um comentário sem, primeiro, ler e comentar, ainda que sumariamente, o comentado.

2. Aristóteles e Santo Tomás: filões para os juristas

Do ponto de vista de um jurista interessado na filosofia do Direito, busca-se muito menos o problema da felicidade humana pelas virtudes (e a sua determinação e explanação, bem como as suas relações, e destas com os vícios) que a questão da determinação do que seja o justo e o injusto jurídicos.

O que sucede com o texto de Aristóteles, como aliás o que virá a ocorrer com Santo Tomás, é, para nós, deveras interessante: é que não sendo nem um nem outro juristas, tendo vivido aliás ambos em períodos de não-Direito, isto é, sendo o primeiro anterior à autonomização epistemológica do saber jurídico, e tendo vivido o segundo em época em que tal especificidade se havia de algum modo perdido, há séculos já, revelam-se um e outro dos principais responsáveis pela teoria do ius redigere in artem, sendo um e outro pais do chamado Isolierung jurídico. Ou seja: se deve ter saído o Direito do caldo de cultura amalgamado de várias racionalidades e várias normatividades – eles contribuíram para que claramente se recortasse das diferentes ordens sociais normativas, da política e de outras formas de comando e organização.

Possuem ambos uma intuição essencial: da necessidade de separar uma área da actividade humana inegavelmente do domínio da função soberana e mágica da trifuncionalidade indo-europeia, apartá-la da álea fugaz e mutável dos ventos políticos, purificá-la das preocupações transcendentes da religião, e determiná-la com uma racionalidade própria (embora não essencialmente contraditória) até frente à ética e à moral.

Ora, apesar de a Ética a Nicómaco ser um livro de éticas (éticas como ethos, maneira de ser de vários tipos-ideais...) – como apesar de a Suma Teológica ser um tratado de teologia -, nem por isso o jurista, com interesse em desvendar filosoficamente os fundamentos da sua arte, deixa de encontrar tesouros que lhe são essenciais, e que não necessitam sequer de “tradução”, “importação”, ou “redescrição” na sua própria linguagem, porque quer o Estagirita quer o Aquinate se exprimiram em termos não só claros como, em certo sentido, suspectíveis ainda de uma leitura técnica. Pena é que a preparação sobretudo filológica de muitos tradutores em muitas línguas vivas, tenha ensurdecido o verbo de um e outro dos autores, que viram sobretudo as expressões “técnicas” subvertidas por formas literárias mais ao sabor dos efeitos de estilo que do rigor denotativo ou conotativo nos domínios da filosofia e da ciência política, quando não mesmo do próprio Direito.

Pode pois o jurista procurar, e encontra.

Foi o que fizemos.

3. Fio expositivo e teses principais do livro V

Na nossa modestíssima perspectiva jusfilosófica, este livro é fulcral decerto por razões diversas das que podem entusiasmar eticistas, filósofos, pedagogos, teólogos e outros.

No nosso entender, este livro é, se não o primeiro, pelo menos dos primeiros a fornecer a chave para alguns dos mais importantes problemas do Direito de sempre. E certamente foi neste livro que os Romanos se teriam ido inspirar para cunhar com rigor teórico a sua arte jurídica autónoma.

Estes achados pouco têm a ver com a sistematização encontrada pelo Estagirita, o qual não tinha em mente tão afortunado resultado. É assim de forma esparsa que encontramos essas preciosidades.

Sigamos, porém, o fio expositivo de Aristóteles, sublinhando as passagens mais relevantes para esta revolução coperniciana no domínio da concepção da normatividade.

Fá-lo-emos do nosso ponto de mira, e por isso de forma muito sucinta...

a) Justiça e Virtude. A Virtude no Meio

O livro V insere-se num estudo sobre a virtudes. Tendo Aristóteles concebido a virtude como um termo médio, um estar no meio, entre exagerados vícios, mister era de indagar, logo à partida, de que extremados vícios seria a justiça o meio, constituindo, assim, uma virtude. O Estagirita não responde imediatamente à questão, brindando-nos com um longo mas esclarecedor percurso. O nosso autor explica, no final de 1133 b, numa aplicação da sua teoria geral da virtude que pode parecer excessivamente formal, que a justiça é o termo médio entre o cometer a injustiça e o ser vítima dela... Talvez possa haver outra relação, outra tríade: no mundo de hoje é muito mais claro que a Justiça está entre dois exageros. Por exemplo (e permitam-me exemplos que, embora os creia objectivos, poderão, no nosso mundo ideologizado, parecer pro domo): a justiça é não acepção de pessoas, como ensina Santo Tomás, o que representa o termo médio (e ética e juridicamente superior) quer à discriminação negativa, quer à discriminação positiva.

Mas voltemos ao nosso livro. Aristóteles, tal como nós, depara-se com a ambiguidade e polissemia da palavra justiça, apercebendo-se de que a homonímia esconde distinções mais ou menos subtis. Ainda se se referisse com o mesmo significante significados muito diversos, como a palavra kleís, a significar tanto “clavícula” como chave...! Mas não: justiça pode significar coisas parecidas, do mesmo campo semântico, mas realmente com significados bem diferentes.

b) Justiça e Hábito

Ao situar a sua análise no plano das virtudes, certamente este contexto lhe inspirou uma fórmula muito fecunda: a que considera ser a Justiça o hábito ou costume que habilita os homens a fazer coisas justas. E estamos em crer que é aqui que reside mais remotamente a fonte dessa imortal síntese da Justiça, cunhada por Ulpiano e que o Digesto imortalizou: Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi (D. 1, 1, 1, pr.). A concepção da justiça como uma constante e perpétua vontade pode ser, no plano filogenético ou da civilização ou da espécie, o que o habitus é no plano ontogenético, da pessoa ou do indivíduo.

c) A Justiça e o Justo. Ao Justo pelo Injusto

Mas o Estagirita não se fica por aqui. Num intuito de concretização, desce Aristóteles do justo (to dikaion) para o homem justo (ó dikaios), porque assim mais facilmente somos levados a aperceber-nos do que está em causa – a abstracção poderia obnubilar-nos. E então de que pessoas dizemos que são justas? Essas praticarão o justo... Mas Aristóteles sabe que definir coisas positivas, valores, ideais, é complicado e sujeito a demasiada doxa, excessiva opinião... Não há, para tirar dúvidas, como fazer o teste da negação dessas coisas positivas, desses valores.

Dale Carnegie, um clássico da teoria das relações humanas, afirmava que todos poderiam ser eloquentes depois de injustamente haverem sido esbofeteados. E Rafael Gomez Perez, na sua deontologia jurídica, aplica com sabedoria a máxima “não faças aos outros...” para explicar como mesmo um teórico nefelibata, defensor da abolição da propriedade entra em contradição se lhe não pagarem os direitos de autor do livro em que professe o seu credo. Passe o anedótico destes exemplos modernos, o facto é que Aristóteles fez algo de semelhante: e em lugar de perguntar pelos justos, pergunta pelos injustos. Assim tudo se torna muito mais fácil. Pois bem: Consideramos geralmente como sendo injustos os indivíduos que fazem uma de três coisas, diferentes mas próximas.

d) Três tipos de pessoas injustas

Primeiro, é dito injusto o que viola a lei. Hoje não é um uso muito frequente, nesta formulação linguística, mas temos fórmulas análogas. Podemos dizer que é um infractor, ou alguém que comete ilegalidade... Digamos que, nesse sentido, os nosso usos linguísticos evoluíram porque, embora violar a lei (o decreto, ou o acto administrativo, enfim, o ditame do poder ou da justiça...) seja normalmente sinónimo de injustiça, nem sempre o será... E Antígona é disso o grande exemplo e símbolo...

Em segundo lugar, é apelidado de injusto o que se atribui a si mesmo mais do que é seu.

E finalmente também se diz injusto o anisos. Quem é esta figura? Estaríamos tentado a dizer que este é o que foge à equidade, o iníquo. Ora, realmente, o tomar para si parte do mal geral, na proporção que lhe cabe, será uma aplicação da equidade... E quem toma menos nos males do que lhe compete é anisos, é injusto. Por iníquo...

e) Três tipos de pessoas justas

Daqui, a contrario, se deduz que o justo é (grosso modo, claro: estamos a falar de usos do termo, usos apenas...): o que obedece às leis, o que se atribui estritamente o que é seu (e aqui poderá estar a remota origem do suum cuique tribuere), e o que age com equidade: numa formulação consabida, mas elucidativa, o que trata o igual igualmente e o desigual desigualmente, na medida da sua desigualdade.

Como as duas últimas categorias talvez se possam aproximar (pois a primeira versa, afinal, sobre um justo político, positivo, e a segunda sobre um justo mais profundo, a que se poderá chamar natural, pelo menos em parte), Aristóteles sintetiza dizendo que o justo (e já não o homem justo: sobe agora os degraus da abstracção) é o que “está conforme à lei e o que respeita a equidade ((preferimos esta palavra a igualdade, que hoje se encontra tão corrompida)), e o injusto é o que é contrário à lei e que não observa a equidade”.

f) Teoria

Sintetizemos, pois, aqui chegados, esta importante démarche metodológica de Aristóteles: nada de teorias abstractas, grandes formalismos, posições originárias ou véus de ignorância à la Rawls, nada de consensos ou comunicações à la Luhmann ou Habermas. A teoria da Justiça de Aristóteles parte do senso comum e da voz corrente: diz-se que este, aquele e aqueloutro (pessoas, todos) são injustos, por isto, aquilo e aqueloutro (acções injustas), logo, estes últimos hábitos (propensões continuadas, vícios) configuram a injustiça, e o seu contrário será a justiça. Simplex, sigillum vero.

g) Justiça Moral e Justiça Jurídica

Aristóteles já nos disse o que eram, em termos gerais, a justiça e a injustiça.

Mais ainda Aristóteles concorda com os que pensam que a Justiça é a mais plena virtude de todas, porque é uma virtude que a todas as demais pode convocar, dirigindo-se para os outros, o que é mais que ser virtuoso apenas para si próprio.

Simplesmente, esta Justiça virtude das virtudes (embora haja quem lhe dispute o lugar para a Prudência, como sabemos), está muito no alto. Muito no tecto da Stanza della Segnatura de Rafael. Os homens e os juristas precisam de uma justiça menos sufocante, mais humana... menos virtuosa, talvez, mas mais prática.

E essa justiça existe.

Digamos que partindo do amalgamar de tantas qualidades das três acepções de justiça referidas se cunha uma Justiça no céu estrelado.

Mas agora, olhando o mundo sublunar, vai-se cunhar teoricamente uma outra justiça, a justiça especificamente jurídica, ou justiça particular: e isso é de importância vital. A distinção da Ética, em termos teóricos, parece, apesar de tudo, bastante clara, e de novo os exemplos vão da injustiça para a justiça: ficando claro que uma injustiça, mais vasta, é sobretudo moral, e outra, mais estrita, especialmente jurídica. Um comentário do tradutor castelhano Pedro Simón Abril ao Capitulo II do Livro V é muito eloquente. E embora não seja de Santo Tomás, permitimo-nos uma citação: “Porque todo hombre vicioso hace agravio o a sí mismo o a outro, y el que hace agravio es injusto. Pero porque esta justicia, tan por sus numeros y remates puesta, es rara de hallar entre los hombres, y no es la que comúnmente se pide en el contrato de las gentes (porque no se podría tratar, tanta falta hay de ella), trata agora de la justicia particular, que consiste en dar a cada uno lo suyo, y muestra lo que se requiere de ella y en qué se peca” (http://cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/ 45797399763483862935568/p0000003.htm#I_52_)

Diz, com efeito, Aristóteles, depois de haver exemplificado diversas formas de se ser injusto, umas mais próprias do cobiçoso e outras mais privativas do dissoluto (sendo que o que caracteriza a injustiça particular é o exercer-se em vista do ganho): “De forma que fica mostrado claramente haver outra particular injustiça além da universal, que é uma parte da primeira e tem o mesmo nome que aquela (...)”, acrescentando: “mas enquanto a injustiça no sentido particular (ou parcial, se preferirmos tal tradução, embora menos técnica) se relaciona com a honra ou com o dinheiro ou com a segurança (...) e tem por motivo o prazer proveniente do ganho, a injustiça tomada na sua totalidade relaciona-se com todas as coisas sem excepção que entram na esfera de acção do homem virtuoso”.

h) Justiça e Direito

Esclarecidas a noção de Justiça e de injustiça, e apartada a virtude da Justiça geral ou universal da Justiça jurídica, virtude de tipo muito especial, fácil é passar à ideia de Direito como objecto da Justiça particular. Ius est quod justum est. Ius est ipsa res iusta… O direito é o que é justo, o direito é a própria coisa justa.

Mais ainda que a ideia de justiça como proporção e as analogias com a igualdade geométrica e aritmética, que dariam magnífico ensejo a um excursozinho interdisciplinar – mas em que não ousarei embrenhar-me porque o meu caríssimo amigo Jean Lauand é (além do muito mais) um temível matemático - estão para nós os problemas do direito natural e da equidade (ou, se preferirmos, da equidade propriamente dita, a epikeia por contraposição ao simples isos).

i) Direito natural e direito positivo

O filósofo está muito advertido de que o objecto da sua investigação tinha dois elementos: a justiça em termos absolutos e a justiça a que chama política, social, ou cívica. No fundo, a mesma justiça particular, vista sob o prisma da Pólis. E assim, Aristóteles explicitamente divide esta Justiça, que é a nossa justiça jurídica, em natural e legal. É a distinção entre direito natural e direito positivo. Natural é o que tem universalidade e está acima da opinião, legal o que originalmente pode até ser indiferente, mas que uma vez posto, se impõe – afirma-se 1134 b.

Ensinamentos lacónicos mas de grande agudeza dizem o fundamental sobre essa entidade, o direito natural, que ainda hoje faz correr rios de tinta. Para Aristóteles só entre os deuses o direito natural será imutável; entre os homens, existindo uma certa justiça natural também, ela encontra-se em parte sujeita a mudança. E, é claro, o direito positivo é mutável e vário.

j) Justiça e Equidade

Além da justiça há a equidade. Ainda aqui Aristóteles faz apelo ao uso comum dos termos, que é favorável à equidade, embora nem sempre seja muito rigoroso. No fundo, e ao contrário do que pensam alguns positivistas, que das suas convicções fizeram lei (designadamente em Código Civil) a equidade não é uma espécie de válvula de escape do dura lex, sed lex de uma justiça apenas legalmente concebida. A equidade - diz o filósofo – “sendo superior a uma certa justiça, é ela mesma justiça, e não é como pertencente a um género diferente ((do justo)) que ela é superior ao justo. Há pois identidade do justo e do equitativo, e todos os dois são bons, apesar de o equitativo ser o melhor dos dois”. A explicação prende-se de novo com o direito legal, voluntário, positivo. Continua o nosso autor: “O que torna as coisas difíceis é que o équo, sendo absolutamente justo, não é o justo segundo a lei, mas um correctivo da justiça legal”, para a especialidade do caso. Decerto foi nesta formulação que se fundou a interpretação da equidade como o jarro de água que deveria dissolver o concentrado intoxicante de demasiado direito positivo...

k) Itinerário

Depois destas considerações, o Livro V passa a diversas aporias da Justiça, sem dúvida apaixonantes, mas todavia insusceptíveis de, por si mesmas e pela sua natureza, fundar uma ars.

Em síntese, o fundador do Liceu deixou-nos uma teoria da Justiça muito clara, e com suficiente elasticidade para se tornar perene: partiu da injustiça para a justiça, do homem injusto para o justo, do justo geral para o particular, separou, neste, o direito natural do positivo, e a este fez moderar pela equidade, que ressalta, afinal, como a grande e superior forma de justiça. De algum modo recordando, no mundo sublunar, a excelência da justiça universal, a justiça virtude das virtudes, que fora abandonada a meio caminho. Mas agora é retomada depois de muito caminho percorrido.

II. O Comentário de Santo Tomás

1. Brevíssima análise externa

Já tarda falarmos em Santo Tomás!

Mas, sem o nomearmos, na verdade quase não temos senão falado por ele.

Passemos, pois, a atribuir-lhe o que é seu, não sem que antes nos detenhamos nalgumas questões prévias. Na verdade, alguns aspectos da intenção e da circunstância de Tomás de Aquino ao elaborar os seus comentários à Ética a Nicómaco de Aristóteles nos parecem relevantes, e significativos para o nosso presente propósito. Sumariá-los-emos, sem quaisquer pretensões eruditas.

Tomás de Aquino não visa captar apenas nem sequer principalmente a letra do texto de Aristóteles (que aliás lhe era de algum modo inexpugnável, pois trabalhava a partir de traduções, dado não saber grego). Não faz, nesse sentido, uma expositio, mas antes uma sententia. Visa, na verdade, ir pelo texto mas mais além do texto, realmente captar o espírito ou intenção do autor (intentio auctoris), sem se deter ante as várias consequências lógicas dos postulados explícitos. O objectivo, como assinalam F. Cheneval e R. Imbach, não é apenas o de explicar (desdobrar – ex-plicare) o Estagirita, mas de procurar a verdade.

O intuito é, pois, heurístico.

E é-o até pelo facto de que este comentário terá funcionado como uma espécie de exercício ou guia para uso pessoal, e não destinado directamente aos estudantes. Uma imagem inveterada faz-nos ver o mestre comentando, de sua cátedra, os grandes livros. Ora neste caso o comentário é um monólogo pessoal (tanto quanto o método aquinatense do ditado das suas obras o permita), e a crermos nas mais recentes interpretações, sobretudo de Gauthier – baseadas em lugares paralelos - tratar-se-ia de uma espécie de estudo preparatório para a redacção da II IIae da Summa Theologiae. Tal dataria este escrito entre 1271 e 1272, colocando-o no conjunto de inúmeros estudos produzidos pelo autor nessa sua segunda estadia parisiense.

Estudo preparatório, indagador, escrito para si mesmo, terá por isso características de não cedência pedagógica e didáctica. E todavia, paradoxalmente, aí se revelam, sem que o autor queira (sempre assim sucede, para o bem e para o mal) as grandes capacidades de ensino, de magistério, do Anjo das escolas.

Desde logo, neste trabalho se coloca o problema da objectividade e da subjectividade do comentador-intérprete. Têm sido dadas muitas respostas para o problema. Todavia, como assinala Celina Lértola Mendoza, seguindo uma posição que reúne de algum modo já Grabmann, Chenu e Gilson, parece poder conseguir-se um grande consenso em torno daquilo a que chamaríamos o rigor pedagógico-didáctico de São Tomás, presente em todo o Comentário: por um lado, esforça-se por ser fiel a Aristóteles, e procura expô-lo rigorosamente; por outro, quando dele diverge (o que em matéria de Justiça é coisa que quase não vimos), di-lo claramente. Ora uma das grandes virtudes do Mestre é a de saber distinguir o que é seu do que é alheio, não fazer passar como seu o que é dos outros, e não querer fazer passar como sendo de lavra alheia o que é de sua.

Estas ideias, que hoje ganham força, não estiveram claras nas dúvidas surgidas entre os estudiosos a propósito do valor exegético ou doutrinal (mais aristotélico, no primeiro caso, ou mais tomista, no segundo) deste texto. E decerto por essa razão o uso que deste comentário foi feito no estudo da Moral de São Tomás foi escassíssimo. Até aqui se pode ver um fumus de um lei de bronze da pedagogia: os que ensinam depois (mesmo não sendo simples epígonos) não conseguem facilmente utilizar os métodos e os materiais dos primeiros pedagogos. E, para mais, São Tomás laborava, no caso, para si mesmo... Cada método é o método de um docente, e talvez não haja pedagogias, mas apenas problemas, temas, estudantes e professores.

2. As grandes teses jusfilosóficas do Livro V à luz de Tomás de Aquino

a) Exterioridade do Direito e Justiça como virtude da acção e não da paixão

É absolutamente certo, mas adjuvante do entendimento de diferentes distinções já feitas, compreender, como assinala Santo Tomás logo no início do seu comentário (626), que enquanto as virtudes anteriormente tratadas na Ética eram morais, e portanto referidas às paixões, a virtude da justiça (que é intelectual) refere-se às acções. O carácter sobretudo não interior, mas exterior, da justiça, assinalado pelo Aquinatense, terá o maior interesse para um rigoroso estabelecimento do suum cuique, pela diligência honesta (mas não mais que isso) de um bonus paterfamilias. Esta ideia é também, certamente, um germe (ou já uma manifestação?) do laicismo da concepção de Direito de Santo Tomás.

Ao contrário do sucedido com as anteriores virtudes, a Justiça não está entre dois vícios (627), embora tenhamos pessoalmente supra avançado uma ousada proposta nesse sentido: mas que não queremos fazer passar como interpretação...

Além disso, o Doutor Universal considera que, embora a Justiça seja princípio de actos, foi dada a conhecer pela vontade, em que não há paixões. Conclui, assim (629) que “a vontade é o sujeito próprio da Justiça, que não se refere a paixões”. De novo não podemos deixar de pensar no brocardo de Ulpianus: constans et perpetua voluntas. A Justiça não é uma paixão, e muito menos um apetite ou um rompante passageiro, é uma constante e perpétua vontade.

b) Da Justiça e da injustiça

Tomás, uma vez percorrido o caminho algo “inverso” (do negativo para o positivo) pelo filósofo, trata quase ao princípio do seu comentário, de clarificar e pôr em ordem (sistematizar) num sentido positivo, afirmativo. Assim, por exemplo, parece muito relevante que afirme (629): “(...) todos parecem querer dizer que a justiça é aquele hábito pelo qual no homem se provocam ((ou se causam)):

-    primeiro, uma inclinação para os actos de justiça, segundo a qual dizemos que o homem é executor do justo.

-    Segundo, a acção justa ((ou operação justa, diram outros)).

-    Terceiro, que o homem queira fazer o justo ((ou agir justamente)). O mesmo se há-de dizer da injustiça, que é um hábito pelo qual os homens são executores do injusto.”

Nestes sentidos de justiça ainda parece ver-se pouco do objectivismo jurídico romano, embora Tomás fosse um bom conhecedor do Direito Romano. O segundo sentido é ainda a acção justa (ou é já a acção justa) e não a própria coisa justa (ipsa res justa). Porquê? Talvez porque ainda se está sobretudo a falar da justiça no sentido moral ou universal, não no sentido jurídico. O que parece corroborar-se pela definição, muito moral também, que se dá do injusto.

c) Os três tipos de homem injusto

O problema da tradução contextualizada desse tipo de injusto que é o anisos é superado com uma concordia (não explícita, mas efectiva). Assim, considera-se que ele é tanto o iníquo (que falta, por isso, à equidade), como o desigual. E Tomás explicita, retomando o rigor da lição aristotélica, que tal pessoa é a que quer menor parte nos males (634). Assim, a equidade é também uma questão de suum cuique, e a igualdade em causa não é pura identidade, mas, de novo, uma proporção.

Assim, na multiplicidade de pessoas injustas, sinal da multiplicidade de pessoas justas e de “justiças”, temos três casos, como sabíamos, mas compreendemos agora melhor:

-      o injusto trangressor da lei ou ilegal – ou seja, o infractor. A fórmula do aquinatense é muito mais próxima dos nossos usos linguísticos correntes. O comentário também sublinha ser o não cumprimento da lei uma forma de desigualdade (637);

-      o avaro, que deseja possuir mais bens, ou mais nos ou dos bens - portanto o que pretende possuir mais do que o que é seu;

-      o iníquo ou desigual – anisos – que quer ter menor parte nos males que lhe devem cabe – o que quer ter “menos” do que o que é seu, hoc sensu.

Note-se que o ter mais nos bens e o ter menos nos males do que o que é devido são dois exageros, encontrando-se a virtude num meio (embora um meio particular, atenta a duplicidade de bens e males): no suum cuique. Também o gentleman dá um pouquinho mais do que devia e pode receber um tudo-nada menos do que lhe é cabido, assim como o caritativo, o herói, o mártir têm com a justiça rigorosamente jurídica uma relação mais complexa. Mas não é este o lugar para o desenvolver.

Em todo o caso, sublinha também o comentário (636) que a expressão desigual engloba ambos os casos de querer mais e querer menos: mais dos bens e menos dos males. Com o que podemos nós concluir que as injustiças afinal são de dois tipos: a do tipo da infracção legal (que tem como critério a desconformidade com a lei ou a ordem jurídica em geral) e a infracção à igualdade, no fundo ao suum cuique, mas agora visto numa perspectiva não estritamente legal. Esta dualidade vai de algum modo ter uma nova afloração na distinção subsequente entre a justiça e a equidade.

d) O legal é apenas “de algum modo” justo

Santo Tomás esclarece-nos melhor sobre o que poderia parecer um excessivo legalismo de Aristóteles. De facto, o justo legal (o que se estabelece pela lei positiva, e incumbe aos legisladores – como precisa o comentário, para não restarem dúvidas - 638, in fine) não se pode identificar com o justo em sentido absoluto. O que está em conformidade com a lei é apenas “de alguma forma justo” (638).

Tendo presente a Política do Estagirita (III, 9 /1280 a 7 ss.), esclarece Tomás que, como toda a lei se refere a uma específica comunidade política, numas comunidades o justo só de alguma forma se manifesta. Com efeito, nesse passo, Aristóteles relaciona a justiça com formas de governo, designadamente o democrático e o oligárquico, nos quais, evidentemente, se considera haver justiça, mas de modo diverso.

Santo Tomás toma da Política apenas o exemplo democrático, em que os cidadãos são iguais segundo a liberdade, donde a justiça democrática, para o aquinatense, é apenas justa de uma certa forma...

Acrescenta mais adiante que a feitura das leis atende sempre ao que é mais útil para a parte principal da comunidade política em causa.

e) Conteúdo da lei: impor virtudes e proscrever vícios. Lei recta e lei tonta

Sem ilusões, e sabendo que a lei pode servir poderosos, reis, tiranos, ou oligarquias (639), todavia considera Tomás o seu conteúdo. Com as categorias da época, centradas sobre as virtudes (e não, como sucedeu depois, sobre direitos e deveres, interesses, valores...), a lei é assim apresentada como impondo virtudes (fortaleza, temperança, etc.) e proibindo vícios.

Pode parecer que esta perspectiva colide com a autonomização do jurídico. Mas atentemos a que essa apenas impõe o non omne quod licet honestum est. Nesse sentido, muito do permitido tem de ser honesto, e nada do permitido pode ser de tal forma desonesto que seja prescrita a desonestidade. Seria difícil não fundar eticamente o Direito, e não o fundar, ao tempo, nas virtudes.

Com este esteio, Tomás de Aquino passa à divisão entre a lei recta (ou justa?) e a lei apostomasmenos - ou lei sem ciência, sem previsão (640). No fundo, uma lei injusta... Mas como lhe falta previsão e ciência, mais que tudo, preferimos chamar-lhe para nós – com a liberdade de quem chama algo privadamente – apenas lei tonta.

d) Justiça e virtude

Continuando a chamar-lhe virtude (já sabemos que este é o molde ou paradigma ético e ético-jurídico em que tudo então gira), o comentador, depois de ter seguido Aristóteles no panegírico da Justiça legal enquanto justiça universal e virtude das virtudes, citando o inevitável Teógnis de Megara sobre o brilho inexcedível da Justiça e de considerar que, pelo seu carácter de alteridade é a mais completa das virtudes, que às demais compreende (641-643), distingue, apesar de tudo, virtude de justiça legal. São a mesma coisa, segundo a substância, mas diferem segundo a sua razão própria – dirigindo-se precisamente a justiça ao outro, e a virtude correspondente identifica-se com o hábito pessoal que se manifesta nesse projectar-se sobre o outro ou os outros.

e) A Justiça particular

Tendo sido a justiça geral (aqui sobretudo dita legal) apresentada como súmula de virtudes, o facto de existirem acções injustas que não atingem todas as virtudes parece significar, na lógica do sistema, que também haverá uma justiça que não se espraie por todas elas (647).

E de entre os vícios que podem constituir injustiça uns parecem mais rigorosamente atentados ao justo que outros: assim – o exemplo é já de Aristóteles - sobretudo quando um adultério é cometido com fim do lucro material parece mais claramente injusto em sentido particular (ou estrito) que quando, pelo contrário, seja cometido com intuito luxurioso, e até com perda material. Neste último caso, trata-se de uma injustiça mais de ordem moral (648).

Além disso, comparando as virtudes com formas de injustiça, vê-se que, de todas, uma há que não é nem cobardia, nem luxúria, nem ira, nem se reconduz a qualquer outro vício particular, antes configura uma injustiça autónoma e particular, como quando alguém lucra sem justificação, roubando o que é dos outros (649). (E todavia – pensamos nós - não será este um caso de avareza, no sentido referido, ou de cobiça?)

Comparando a justiça particular com a dita legal, comungando ambas da alteridade, a primeira relaciona-se com as pessoas privadas e a segunda com o bem comum (650) . Aqui Santo Tomás parece procurar concatenar justiça política e justiça privada, mas temos dúvidas que a relação tão profunda da moral (v. 651) e da virtude com a justiça mais lata ajude a uma construção juspublicística com utilidade: não só no nosso tempo, como até no seu.

f) Justiça e Política

Sublinha o Anjo das Escolas uma dúvida suscitada por Aristóteles. Na verdade, o legal comanda o homem segundo uma disciplina que deve visar o bem comum, e há entretanto uma outra disciplina que se dirige mais particularmente à virtude de cada um. Sendo esta matéria da Política, Tomás recorda a lição (1276 b 16 – 1277 b 32) segundo a qual varia de comunidade para comunidade política a relação entre ser-se virtuoso, bom em si mesmo, e ser-se bom cidadão. Todavia, na melhor sociedade política coincidem de algum modo virtude e cidadania.

Entra depois o Aquinatense no comentário ao carácter distributivo e comutativo da justiça particular, bem como na análise da justiça cumutativa em voluntária e involuntária (658 ss.). Esta matéria prepara a ideia de que a proporcionalidade é inerente ao justo, que é um meio segundo certa proporção (663). Recusando a ideia de reciprocidade dos pitagóricos, a que chamamos lei de talião – olho por olho, dente por dente - , Aristóteles prossegue argumentando e exemplificando, até determinar a operação justa como um meio entre cometer injúria (injustiça) e sofrê-la (703 ss.).

Mas o que mais importa no domínio da ligação entre Justiça e Política é a chamada de atenção para o facto de ser necessário apartar o justo em sentido cabal, entre iguais, numa comunidade política, que é o justo político, de outras formas (de algum modo imperfeitas de justiça), como a relação entre senhores e servos (justo de domínio ou dominação), ou entre pais e filhos (justo paternal), marido e mulher (justo doméstico), este último, apesar de tudo, o mais próximo do político, mas dele diferindo como uma casa se distingue duma comunidade (712-722).

g) Justo natural e Justo legal – direito natural e direito positivo

Santo Tomás vai de seguida muito directo ao grande problema ontológico do Direito, resolvendo qualquer dúvida que um jurista pudesse ainda ter: identifica imediatamente e de forma expressa a divisão feita pelo filósofo entre justo natural e justo legal (as duas modalidades em que se desdobra o justo político) com a divisão dos juristas entre direito natural e direito positivo. Apartando eventuais problemas de palavras, e identificando o político com o civil (o da Pólis, no fundo), o Angélico insiste na equivalência das designações, explicando designadamente que os juristas chamam Direito ao que o filósofo chama justo. (Aliás, Ius est quod iustum est... Recordemos sempre…) E sobre tal invoca a autoridade de Santo Isidoro de Sevilha (Etimologias, V, 3, 1 – PL 82, 199).

Também se fazendo eco de um problema que passa pelo Digesto e por Santo Isidoro, Santo Tomás considera que os juristas (romanistas afinal) dividem o direito natural de Aristóteles em dois: o comum a homens e animais (a que restringem o conceito) e o que deriva de inclinação própria da natureza humana (a que chamam direito das gentes). Mas parece concordar mais com o Estagirita (724, in fine).

Depois recorda a lição de Aristóteles sobre as características do justo legal ou direito positivo:

-      imperatividade depois da sua promulgação, mas indiferença antes dela;

-      possibilidade de estabelecimento positivo de privilégios ou leis privadas, para certas pessoas – o que a nós choca um pouco por colidir com a generalidade e abstracção da lei, embora não devamos esquecer que nesta noção de direito positivo se engloba todo o direito, logo, também, actos não normativos.

-      Inclusão das sentenças no domínio do direito positivo

h) Teoria geral do direito natural e do direito positivo

Chegamos pois ao um dos pontos mais significativos do comentário de Tomás. E como não podemos tratar de tudo – e a paciência do amável público tem limites - vamos terminar com esta questão associada à da equidade.

Tomás invoca a autoridade de Cícero, na Retórica (De invent. II, 2, 65) para afirmar que todo o direito positivo (justo legal) deriva do direito natural. O que pode ocorrer de duas formas:

-      como uma conclusão a partir dos princípios: se se não deve causar injustamente dano (direito natural), também não se deve roubar (direito positivo).

-      como uma determinação: se o roubo deve castigar-se (como é de direito natural), a concreta determinação de como deve ser a pena deve incumbir ao direito positivo.

Tomás reconhece que pode haver pureza ou erro na passagem do direito natural ao positivo.

Mais concretamente ainda, os decretos e as sentenças justas são fruto da (correcta) aplicação do justo legal aos casos particulares, estabelecendo-se assim uma cadeia de causação e hierarquia a nossos olhos kelsenianos: direito natural – direito positivo – decretos e sentenças (725).

O comentário recorda ainda um passo decisivo, motivado ao filósofo do Liceu pela posição monista positivista dos cirenaicos, discípulos de Aristipo. Se é verdade que o fogo tanto arde na Grécia como na Pérsia, a verdade também é que há coisas em nós naturais, como ter dois pés, e outras coisas em nós não naturais (culturais ou positivas...) como estar vestido com uma túnica. Aristóteles e Tomás de Aquino estão de acordo sobre um ponto que chocará quer adversários do jusnaturalismo (doutrina do direito natural) quer alguns dos seus seguidores: é que há coisas que na natureza permanecem e coisas que mudam (727).

Aristóteles estende ao justo natural o que vê para a natureza humana em geral. É normal, é natural que sejamos dextros, mas podemos ser ambidextros. Assim também o justo natural inclina a uma normalidade, como a de devolver os depósitos aos depositantes, mas tem excepções, como nos citados exemplos do que deseja custear uma sedição, traindo a pátria, ou daquele que enlouquece e vem pedir de volta a sua espada. Trata-se, uma vez mais, da clara e evidente filosofia do bom senso. E por isso mesmo se adverte que esta mutabilidade, que os dissolventes, os cépticos, os cínicos, os relativistas, os nihilistas, tanto nos exibem em face, não é uma mutabilidade senão acidental. Pois as próprias razões da mutabilidade não mudam – aqui Camões não tem razão: pois quando afirma:

E afora este mudar-se cada dia

Outra mudança faz de mor espanto

Que não se muda já como soía

Parece que não. Podemos não conhecer todas as razões da mudança, e por isso nos parecer que se muda de forma diferente. Mas Tomás pensa que as razões da mudança são permanentes. Assim, o que pertence à razão da justiça não pode variar de forma alguma: nunca roubar pode deixar de ser um acto injusto, afirma (728, in fine).

Em contrapartida, o justo positivo é mutável (730). E a razão que dá Santo Tomás poderia satisfazer um certo pluralismo actual – estando contudo na verdade: se há diferentes formas de punir o roubo é que, diz o nosso autor, há diferenças de vida cultural e política de uns lugares para os outros (730). Isto não é ser relativista, é ser objectivo.

i) Justiça e Equidade

Depois de continuar a comentar nova indagação de Aristóteles sobre o justo e quem comete injustiça, e antes que se embrenhe por algumas aporias da justiça, Santo Tomás trata da equidade. De uma forma também muito útil para a interpretação jurídica, depois de considerar, seguindo o comentado, não haver nem completa identidade nem contradição entre equidade e justiça, explica que o equitativo é melhor que o justo legal e afirma (o que é importantíssimo) que se enquadra no justo natural (773).

A equidade é parte da própria justiça, do próprio direito. É uma espécie de erupção do natural aquando da aplicação do positivo – seríamos tentados a afirmar. A formulação de Tomás é a da direcção e regulação do direito positivo, necessárias pela generalidade das leis, que necessitam de adaptação – a qual vem pela equidade. E retoma Tomás, explicitando-o, o exemplo da régua da Ilha de Lesbos, onde as pedras são duras e não toleram o ferro, mas já se afeiçoam a uma régua de chumbo, que se lhes adapta. Recorda ainda que o equitativo é brando, e apenas aplica a pena para conter a falta (779). Mas a pena suficiente para isso – notemos.

 

III. Conclusão

Aristóteles termina concluindo que não se pode ser injusto para consigo próprio, num sentido metafórico (1138 a 4 – 1138b14), e é disso que trata depois Santo Tomás. Primum vivere, deinde philosophari, já estou sentindo alguma fome (Santo Tomás compreenderia o vício, pois tinha uma mesa especial para si). Não vou sacrificar-vos mais porque me não vou sacrificar também, e a caridade, excelente virtude, se bem entendida, começa por nós próprios.

Apenas duas palavras mais, em jeito de sumário e conclusão.

Só para sublinhar que realmente o Aquinate segue muito de perto o seu comentado, mas introduz-lhe, neste nosso caso do livro V, algumas coisas de sua lavra:

-      introduz-lhe uma ordem, uma organização, que de modo nenhum é grega clássica; é a regra escolástica, que ajuda muito, mas que às vezes também é excessiva. Veja-se, por exemplo, os sumários iniciais a cada capítulo, que procuram tornar completamente lógicos os argumentos do Estagirita;

-      acrescenta-lhe uma moralização, no sistema de pensamento do cristianismo, procurando de algum modo traduzir as virtudes helénicas para virtudes cristãs, e enfatizando as conexões das virtudes.

-      Todavia, e deve sublinhar-se este aspecto, Santo Tomás, que ainda não deu o golpe de misericórdia no chamado augustinismo político-jurídico (o que fará apenas com a II IIae da Summa Theologiae), abre porém muitas portas para uma autonomização do jurídico e uma sua depuração face ao confessionalismo ou simples moralismo do Direito – sem todavia esquecer que o Direito tem imperativos éticos de que não pode prescindir.

-      Mas o que é mais notável, e vai nesta linha, é que Tomás de Aquino já lê Aristóteles como que seguindo a lição deste – passando ainda mais abertamente que o Estagirita para a justiça particular, para a justiça jurídica. E num tempo, como o seu, em que o legado aristotélico já havia desabrochado, e depois murchado, vai recuperá-lo e devolvê-lo ao Filósofo. Conhecedor dos melhores frutos do Direito Romano, que aliás se nutrira filosoficamente de Aristóteles, vai lê-lo à luz desses mesmos frutos. E por isso com desenvoltura nos fala de direito natural e positivo, localiza a equidade sem vacilações, e nos explica com exemplos jurídicos grande parte dos temas em questão. Se o Livro V da Ética a Nicómaco poderia ser já, pela sua distância temporal e pela incerteza semântica decorrente do literatismo das traduções, um texto de algum modo opaco, Tomás de Aquino, falando uma linguagem de rigor, explicando com paciência ao longo de muitas páginas, e usando um vocabulário e exemplos mais familiares, torna-o muito mais acessível, desvenda-no-lo.

-      E é também por tudo isto que o nosso diálogo prévio com Aristóteles, pretensamente sem passar por Tomás, já por ele na verdade passava: pois dele estava já de algum modo impregnado o saber de segunda e terceira mão que se condensou no comentário pretensamente directo do Estagirita.

Grave problema o do conferencista de hoje - e problema aporético - com que, Deo Gratias, finalizo: é que se fui bom pedagogo, corro o risco de não vos ter suscitado necessidade de ler os originais de um e outro autores. Se fui mau, corro o mesmo risco. Donde concluo, como gosto de fazer, que a pedagogia é, realmente, impossível.