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Problemas do Direito Natural

(conferência no III Seminário Internacional Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte
– Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, 25-6-02)

 

Paulo Ferreira da Cunha
Prof. Catedrático da Univ. do Porto

 

1. Do Direito ao Direito Natural [1]

Falar em Direito Natural é, ao contrário do que possa pensar-se, não falar em direito puro, em direito ideal, mas falar, antes de tudo o mais em Direito, em Direito tout court. Será impossível compreender a questão do Direito Natural se não se compreender a questão do Direito em geral.

Mas acontece que poucos, mesmo de entre os especialistas, mesmo de entre os juristas, realmente sabem o que é o Direito. E os que se põem esse problema muitas vezes não problematizam, mas limitam-se a recitar definições decoradas.

O caso mais agudo é o dos positivistas legalistas (e há muitos que o são sem sequer o saberem). Para os positivistas legalistas, o Direito não é mais que um conjunto de regras e/ou normas (cremos que as expressões são sinónimas) estaduais, coercivas e visando um fim eudemónico qualquer, como a paz, a segurança ou a organização social.

Ora esta definição é completamente errónea (por desajustada) se olharmos simplesmente para a realidade:

a) há Direito que não é regra ou norma (o direito consuetudinário, o direito contratual, o direito jurisprudencial, o direito doutrinal, etc.).

b) há Direito que não é estadual (o direito dos corpos intermédios, das autarquias locais, das regiões; o direito dos organismos inter-estaduais, internacionais, da União Europeia, etc.)

c) há Direito que não é coactivo (quer em casos de direito tradicional, quer no caso do Direito Internacional Público clássico, que se mantém em muitos aspectos ainda hoje, apesar de todas as declarações e mecanismos de tutela inter-nacional).

d) A regulamentação e organização sociais, a paz e a segurança podem, finalmente, ser levadas a cabo através de múltiplas formas que não são, rigorosamente, jurídicas, nem é necessário que o sejam sempre. Ordens sociais normativas hoje muito olvidadas mas até de grande valor adjuvante para o Direito (se virmos as coisas apenas da perspectiva deste) são a religião, a moral, as normas de trato social, a etiqueta, etc..

Todavia, apesar de todas as deficiências da definição, que sumariamente acabamos de expor, os positivistas não se preocupam muito com a imperfeição da sua visão do Direito. Para eles, o importante é a prática, uma prática de total dependência dos textos das leis. Em boa verdade, a definição acaba por ser mais um elemento decorativo no positivismo, ou melhor: decorativo e de afirmação do poder. Não fora a regra do método positivista geral (supra- e extra-jurídico) ter gravado nas mentes a exigência científica do procedimento definitório prévio, e não fora a conveniência da definição, uma definição deste tipo (evocadora do poder e da força), estamos em crer que o positivismo poderia passar bem sem qualquer definição de Direito. Pelo menos, o choque entre o real e a definição nunca o sobressaltou, e dorme descansado sobre ela.

Pouco lhes importa a teoria. Há curiosamente, hoje, muitos positivistas que professam exteriormente um credo pós-moderno, normalmente sociologista (mas dito sociológico apenas), ou até mesmo jusnaturalista ou, pelo menos, assumidamente não-legalista e não-positivista. É já proverbial a situação dos professores que professam o credo jusnaturalista até às férias do Natal (começando as aulas aí em Outubro ou Novembro), e depois se devotam à exegese pura e dura da lei positiva. Disse-se, com razão, que o positivismo é a filosofia espontânea dos juristas.

E contudo há ainda, sempre houve, os que não aceitam que as Antígonas de todos os tempos sejam mandadas matar pelo « crime » de dar sepultura a um irmão. Para o ditador Creonte, este condenado post mortem não passa de um traidor. Mas, visto com o olhar não contaminado pelo poder de um uma pessoa normal, ele nem por isso deixa de ser uma Pessoa também. Em consequência, os decretos do novo rei de Tebas, impedindo o funeral e cominando a pena de morte para quem ao traidor desse sepultura, são verdadeiramente leis injustas (ou actos do poder injustos, mais propriamente, dado o seu carácter não geral nem abstracto). E lex iniusta non est lex, a lei injusta não é lei, como afirmou, justissimamente, Tomás de Aquino.

Vejamos agora o problema por um outro ângulo. Os que recusam a omnipotência da lei e das decisões dos detentores do poder constituem a outra família de juristas.

Muitos de entre eles se dizem jusnaturalistas ou, mais simplesmente, defensores do Direito Natural, outros falam da natureza das coisas, outros de princípio normativo, ou de justiça, outros ainda em direito vital, etc.. Mas existe um elo comum entre todos: nenhum aceita que a decisão política que cria a lei seja a única fonte do Direito, além de que tal norma não pode contrariar uma dada ordem superior (variando entre si que ordem seja essa: ordem natural, vital, natureza das coisas, justiça, etc…). Existindo uma essencial oposição entre o direito positivo e alguns padrões extra-positivos, estes juristas negam-se, em geral, a conceder à norma em causa o reconhecimento de plena juridicidade.

Evidentemente, não se deve pensar que se trata de um perigoso e subversivo grupo de anarquistas. Pelo contrário, estamos perante gente ponderada e razoável, que luta, no seu posto de juristas, contra a anarquia e a barbárie que é o arbítrio dos que, detendo o poder de fazer normas, de as aplicar, de julgar com base nelas, todavia o fazem mal: erroneamente e de forma torta, em prol dos seus interesses ou dos interesses dos seus, ou dos seus preconceitos. E o seu sentido de responsabilidade é tal que admitem frequentemente a obediência à norma ou à decisão injusta se os males derivados de tal acatamento se revelarem plausivelmente menos graves que os decorrentes de uma alternativa atitude de desobediência.

De tempos a tempos, essa prudência e submissão ao Bem Comum com prejuízo da justiça no caso concreto (que pode ser bem geral, se se tratar de uma lei injusta) é criticada como constituindo uma pura cobardia. Muitas vezes, sem razão ; algumas com ela.

Se a definição é um tipo de paradigma próprio dos positivistas, os seus opositores, a que chamaremos ainda, sem rigor e por sinédoque, comodidade e tradição histórica, jusnaturalistas, desconfiam normalmente da camisa de forças das definições (definir é sempre pôr um fim a alguma coisa, limitar algo).

O Digesto di-lo claramente, de resto: a definição de tudo em Direito (civil) é perigosa, porque é susceptível de subversão.

Há uma boa e velha passagem de Ulpiano, célebre jurista romano, sábio e mártir da Justiça, que funciona algumas vezes, no seio desta teoria jusnaturalista, como um horizonte de explicitação do Direito. Porque os jusnaturalistas, e sobretudo aqueles que, de entre eles, se reclamam do realismo clássico (que não devemos confundir com com os jusnaturalistas das Luzes que falam também de um direito natural, todavia contaminado já de ¾ de positivismo, como detectou Michel Villey), continuam muito ligados às fontes primeiras da arte jurídica : o pensamento e a acção dos romanos.

Diz Ulpiano no Digesto, I, 1, 10 (ou no 1 reg., ou Inst. I, 1, pr. e 3, 1): «A Justiça é a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu. Os preceitos do Direito são os seguintes: viver honestamente, não prejudicar ninguém, atribuir a cada um o que é seu. A Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, o conhecimento do justo e do injusto.»

O espírito sintético dos romanos oferece-nos neste trecho um tesouro abundante de sugestões para uma tópica sobre o que é o projecto cultural e espiritual do Direito, tal como foi criado pelos romanos (o procedimento genético conhecido por ius redigere in artem), bebendo na filosofia grega, sobretudo aristotélica, e depois do trabalho de sociologia axiologizada, ou seja, do trabalho, levado a cabo pelos primeiros juristas, de decantar dos comportamentos sociais em uso aqueles que poderiam ser considerados o mínimo denominador comum de civilidade ética, e assim aptos a passarem, estilizados, para o domínio do juridicamente imposto.

O universo do Direito é encarado de uma forma tripartida:

a) O Direito é visto como manifestação da Justiça, que é seu objectivo constante e perpétuo, seu princípio e seu fim;

b) O Direito é encarado em si mesmo (arte prática do Direito), na sua dimensão normativa, cujo preceito mais importante (o terceiro preceito jurídico, que segundo o uso retórico romano define a diferença específica do objecto em análise) é precisamente o objecto da vontade de justiça, ou seja, a atribuição do seu a seu dono;

c) O Direito é considerado como Jurisprudência (com maiúscula) ou Ciência (episteme) jurídica, que pressupõe conhecimentos muito vastos (mesmo de coisas ditas divinas, mas certamente de muitas muitas coisas humanas : e não apenas consideradas propriamente jurídicas) para poder correctamente avaliar o que é justo e o que é injusto.

A primeira frase citada revela-nos igualmente os tópicos essenciais de um Direito justo:

a) A Justiça (Iustitia), que é um fim sempre inatingido, e consequentemente sempre objecto de uma demanda constante e perpétua, a que se chama, pela sua força, pelo seu dinamismo, e por vir de dentro, do ânimo dos Homens justos, vontade (voluntas);

b) O seu (suum) que é a coisa em disputa na lide jurídica. Não há Direito sem um objecto do litígio. O seu é a coisa (lato sensu) que pertence a uma pessoa…

c) E a Pessoa (porque o suum cuique, o seu de cada um, implica evidentemente a existência de uma pessoa concreta que seja o titular da coisa disputada) faz-nos pensar na máscara grega, na Persona, com a qual o homem isolado, o indivíduo, se torna ser social, e age socialmente. A pessoa tem conseguido, com o passar dos séculos, agregar a si a dignidade que sempre foi sua, mas nem sempre lhe foi devidamente reco-nhecida. Os direitos, designadamente os direitos subjectivos, hoje relativamente banal atributo de qualquer um, não se encontravam explicitamente previstos na concepção romana, mas não se pode dizer que a contradigam. Pelo contrário, desenvolvem eles num sentido humanista a criação epistemológica do Direito em Roma.

A esta tríade suum, Persona e Iustitia, que é, afinal, a tópica ontológica do Direito, se junta uma outra tópica, mais de índole fenomenológica. Na verdade, não podemos olimpicamente quedar-nos pela noção rigorosa de Direito, mas ir um pouco (muito, na verdade) mais além. E para detectarmos onde há direito haveremos de perseguir os fumos do Direito, ou “disso a que chamam direito”: o que tem já pouquíssimo a ver com a necessária correspondência do Direito positivo com o Direito Natural, entendamo-nos.

E o que é isso a que chamam Direito? É uma realidade fenoménica, que está aí, muito independente, na verdade, de valores, de virtudes, até de princípios axiológicos, e que se detecta por algumas formas mais subtis e formalizadas de poder e de força, por execuções, carrascos, prisões, guilhotinas, papeladas, confirmações, selos, atestações, notários, oficiais de diligências, juizes, advogados, conservadores de registo, arquivos, relatórios, actas, certidões, alvarás, diplomas, leis, decretos e afins, polícia, togas, becas, cabeleiras, martelos, e o pathos de todos esses rituais.

Para um Direito que se contente com o fenoménico, com esta tópica indiciária que referimos (ou algo análogo), o Direito Natural, é uma hipótese dispensável, quando não uma quimera incómoda ou um ópio dos juristas. Para os que, para além e por detrás ou por baixo ou por cima dessa simples existência vegetativa da juridi-cidade almejem um sentido, descubram valores, virtudes, princípios, e se preocupem com o conteúdo de justiça, então haverá que perguntar pelo Direito Natural.

2. Do Problema Científico do Direito Natural

Num tempo de produtos naturais, de atitudes naturais, de Natureza, naturismo, naturalismo, falar em Direito Natural, paradoxalmente não parece fazer muito sentido.

Por um lado, é expressão que fora de círculos jurídicos — e certos círculos jurídicos — não parece encontrar qualquer eco, por inexistir qualquer uso.

Por outro lado, parece ter algum sabor a contradição nos próprios termos (contraditio in terminis): afinal, como pode ser o Direito, que passa pela mais artificial (e artificiosa) das ciências, ou, pelo menos, uma das artes mais culturais, como pode o Direito combinar com a Natureza? Conúbio bastardo, união contranatura.

Não vai há muito, na preparação mediática de um colóquio sobre Direito Natural precisamente, alguém muito bem intencionado nos perguntou, fazendo já um esforço de desvendamento, se se trataria de um seminário de direito da natureza, ou seja, de direito ambiental ou ecológico. Confesso que lamentei ter de desiludir um tão honesto esforço.

Não. Realmente o Direito Natural não é nem campestre nem ecológico, nem verde, nem informal, nem espontâneo, e como não terá corpo físico, não pratica naturismo — que eu saiba.

Mas precisamente com tamanha imaterialidade ou, melhor se diria, incorporalidade, o Direito Natural arrisca-se a ser um fantasma. E, como já não se acredita em fantasmas, pode bem ser que o espectro do Direito Natural se desvaneça nos ares como pura fumaça.

Como vamos então cientificamente resgatar o Direito Natural da sua ameaçante inexistência, ou, realmente, como o vamos tornar aparente aos cegos?

O maior adversário de uma teoria - já o viu, em sede geral, o filósofo das ciências Thomas Kuhn e no Direito viu-o o jusfilósofo e penalista Hassamer - não é a antítese ou a contradição dessa teoria. É o manto de esquecimento que sobre ela paira.

Ora com o Direito Natural ocorre precisamente esse fenómeno: o jusnaturalismo não foi refutado triunfantemente nem pelo juspositivismo nem por qualquer mescla filosófico-sociológico-politicamente-correcta. Foi banido conjuntamente com a Filosofia do Direito por decreto pelo poder positivista, e, quando a Filosofia do Direito se viu reinstaurada, já os problemas pareciam ser outros — e assim o Direito Natural se quedou esquecido.

Significativamente, apenas subculturas ou "nichos de mercado" se mantiveram: por um lado, certos sectores mais apegados ao ser e à verdade que às aparências e às conveniências não consideraram nunca que tivesse desaparecido simplesmente por haver passado de moda; e, por outro lado, alguma preocupação, digamos "historiográfica", não ignorou o jusracionalismo. Aliás, esta corrente, na verdade mais exógena à especificidade do Direito e por isso menos comprometida com o fazer efectivamente Justiça, acabaria por ser responsável por uma deformação na ideia que sobre o Direito Natural acaba por ter toda uma élite filosófica, literária e afim — que confunde Direito Natural com a doutrina racionalista e abstracta (com alta percentagem de de positivismo já, como sublinharia Michel Villey – já o dissemos) posta em voga pelo Iluminismo.

Mas não nos esqueçamos: o Direito Natural foi verdadeiramente abatido pelo esquecimento, não pela refutação. E assim continua a sê-lo.

Quando do seu sono esboça acordar essa princesa jusnaturalista, logo se eriçam em seu redor espinhos de plantas dormideiras, que a convidam a novo sono — quiçá ao derradeiro e letal.

De guarda ao redespertar do Direito Natural está sobretudo o preconceito, que mora no je-ne-sais quoi de um acordo sem consciência entre todos os que pretendem estar à la page, ou “in”.

Explicando: compreendemos e saudamos (embora não concordemos) os que, por fé na lei ou na política, advoguem sem complexos o dura lex sed lex ; entendemos os que, mais subtis decerto, falam em "superação" do positivismo e concomitantemente do jusnaturalismo; consideramo-nos até em fundamental acordo quanto ao essencial com os que preferem teorias de Justiça, da natureza das coisas, ou afins como métodos novos para o mesmo problema.

Mas todas essas posições não anulam a essencial aporia do Direito Natural. O que desertifica o nosso universo, o que o apaga do mundo, é uma arma mortífera que não tem defesa, um veneno que não conhece antídoto. E essa oposição é fatal, e tanto mais fatal quanto o número de opositores aumenta e se reproduz.

Mas então, sejamos claros: Qual é o argumento decisivo contra o Direito Natural? Qual é a irrespondível questão que o embaraça? Qual é o pacto que lhe tolhe os movimentos? Qual é a ciência que lhe desmascara os erros?

Não é argumento, nem questão, nem facto, nem ciência. É um esgar. É o sorrisinho petulante e trocista que repete ou quase nem repete: "Direito Natural". E dito com uma entoação que não deixa dúvidas de duas coisas: da imensa, da incomensurável ciência de quem o profere, e da nesciência abissal, muito abaixo de cão, de quem "ainda" (e carreguemos nesta ainda) vai nesses contos de fadas, nessas canções de embalar.

Perante o sorrisinho assassino de ideias, e que se transmite mimeticamente entre os confrades da congregação dos que querem ser sérios, respeitados, importantes juristas — que pode um honesto jusnaturalista exprimir? Pobre funda a do Ulisses do Direito Natural face ao Golias de um só olho de um Direito só positivo.

O que venho propor-vos é um tiro certeiro. Só com pontaria se acerta no coro suficiente dos que primeiro ignoram o Direito Natural, e depois lhe objectam nada mais que um sorriso — pois mais que isso parece nem sequer ele merecer.

Sejamos claros. Sejamos sinceros: o Direito Natural não se pode provar. Em vão o bisturi do filósofo do Direito procurará no cadáver da juridicidade essa alma que lhe dava alento — a legitimidade. Mas se o cirurgião positivista também não vê espírito, quererá dizer que o homem é apenas mais ou menos 90% de água e aproximadamente 10% de outra matéria?

O sorrisinho rejubila: vês? — parece dizer. Vês como isso é uma fé, melhor: uma crença? Mais: uma crendice?!

Voltamos à carga com as únicas armas que temos — que são introspecção, sinceridade, recta intenção, tenaz busca da verdade, na qual acreditamos, embora não nos proclamemos seus donos ou arúspices. Voltamos à carga, como Sísifo que de novo mete pés ao caminho da mesma montanha:

Concedemos que, cientificamente, na perspectiva daquela ciência que só vê o que está à frente dos olhos e elegeu São Tomé como seu patrono, na visão apenas do visível desta ciência, o Direito Natural, enquanto essência, não pode captar-se. É como se não existisse.

Se o Direito Positivo se manifesta em plúrimas fontes normogenéticas, em diversísssimas facetas fenoménicas, é ao invés óbvio que apenas por interpretação, dedução, decantação, generalização … (ou adivinhação — dirão outros) se chega ao Direito Natural.

Mas, como diria o Principezinho de Saint- Exupéry, o essencial é invisível para os olhos. E, se é verdade que não vemos autonomamente o Direito Natural a passear-se na nossas ágoras e nos nossos tribunais, nos parlamentos e nas repartições, o certo é que é de sua própria natureza não existir no mundo sensível da juridicidade prática a não ser precisamente pelo, através do direito positivo. Ao contrário do que muitos julgam, o Direito Natural não é o arquétipo inteligível do Direito, a Ideia de Direito, não é o Direito justo cuja transposição ou directa aplicação práticas garantiria a felicidade. O Direito Natural é critério do Direito positivo e seu limite máximo ou mínimo — por isso pôde ser identificado já com um conjunto de "Princípios", que as normas “depois” positivariam, adaptando a base universal às particularidades do tempo e lugar. É uma forma algo simplista de ver o problema, retratando-o muito à imagem e semelhança do Direito positivo, mas pode valer como ponte de acesso ao problema. Primeira ponte, a substituir em tempo útil por novas passagens mais seguras, mais autênticas.

No plano científico, em conclusão, o Direito Natural não pode provar-se facilmente num tubo de ensaio. Mas, ainda assim, ele não é alheio ao mundo real, e nele se desenham manifestações suas. Por exemplo, como observava Truyol Serra, há uma sociologia do Direito Natural — porquanto é inegável que um número apreciável de juristas e não juristas, ao longo dos tempos e em muitos lugares diferentes, a ele se referiu, ou, se preferirmos, "nele acreditou". É verdade que a Sociologia de uma religião não faz essa religião verdadeira. A Sociologia do Direito Natural não o faz existente. Mas daí podemos dar um salto mental, que aliás nos recorda Umberto Eco. A revolução epistémica é esta: Eco, como estarão lembrados os que por essas agruras académicas passaram, admite uma tese sobre unicórnios, embora se trate de animais inexistentes, mitológicos. Os professores de Direito Natural e os jusnaturalistas são por vezes tratados um pouco como eruditos que se ocupassem apenas das sereias ou das musas do Direito. Mas detenhamo-nos: se é inegável que esses seres fantásticos são património da cultura e, assim, merecem estudo adequado, como recusar ao Direito Natural estatuto semelhante, como produto da imaginação humana, como aquisição cultural?

Ora aqui temos de ter muito cuidado: porque o próprio Direito dito sério, real, concreto, também não vive motu proprio nos cutelos dos carrascos ou nos martelos dos juízes, ou nos casse-têtes dos polícias, ou sequer nos códigos e tratados dos juristas. Esse Direito Positivo dito real é uma criação cultural ao mesmo título que o Direito Natural. Nada na natureza inculca o Direito como facto, como ente autónomo. A mesma faculdade efabuladora, formalizadora, mitificadora que criou o Direito positivo criou também o Direito Natural

Na verdade, estamos é perante duas criações antagónicas: depois do mare magnum da síncrese inicial, o cutelo histórico cortador do Nó górdio cria o Direito, arrancando-o à religião, à moral, à política: é o chamado ius redigere in artem. Os Romanos, inspirados filosoficamente nos gregos, criam o Direito como arte autónoma, relativamente livre da álea fugaz da sorte política. E concebem-no com parte natural e parte positiva. Compreendendo que a aspiração humana à Justiça nunca se deixará enclausurar no papel das leis. E por isso é a Justiça (e o Direito que dela deriva e para ela quer tender) "constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o que é seu" – constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi. Daí que o Direito Natural seja o grande inspirador e o grande julgador do Direito positivo.

Esta, em termos simples, a teoria original que fundou o Direito.

Quando os poderes querem colocar o poderoso instrumento do Direito à mercê dos seus caprichos ou dos seus sonhos demiúrgicos, quando a desesperança dos homens em qualquer transcendente os leva a serem Tomés do pedestre "ver para crer", quando a soberba do cientismo recusa o que não se encerra (porque por definição é imaterial) nas suas redes de malha afinal tão larga, é natural que o Direito Natural não possa existir, por subversivo, por perturbador, por invisível.

E contudo ele move-se.

Perante a Inquisição dos poderes dos cépticos e dos cientistas, o Direito Natural não faz como Galileu, porque não tem a pele a salvar — afirma-se.

3. O Problema Pedagógico do Direito Natural

E a Pedagogia do Direito Natural é testemunha contra (contra?) a ciência negadora do Direito Natural.

Serei muito breve. A matéria não consente demasiadas palavras, e o que em geral penso sobre pedagogia nem sequer é exclusivo do Direito. Acredito, na verdade, muito mais no aprender que no ensinar.

Permitir-me-ia convocar apenas um par de recordações.

Quando há anos num 5º. ano da Faculdade, comecei a ensinar Direito Natural não sabia que reacção iria ter. Confesso que esperava alguma rejeição. Afinal, os finalistas querem coisas práticas, técnicas de inserção segura na vida activa… No limite, querem emprego. Fiquei por isso surpreso. Não só as classificações na matéria foram altíssimas como, mesmo sem o prémio da nota, numerosos estudantes se inscreveram para fazer trabalhos de investigação que eu definira como sem influência expressa na classificação.

A verdade é que o entusiasmo foi tão grande que, quando, depois de um interregno, voltei a preleccionar essa matéria, decerto já mais seguro do seu êxito, os estudantes brindaram-me com um presente: na última aula, puseram em cena uma peça de teatro em que re-criaram em tragédia dramática o Crime e Castigo de Dostoiewsky. Tenho pena que não possa ter havido mais representações desse trabalho absolutamente gratuito e fruto do entusiasmo e do empenhamento dos estudantes.

Não desejaria, porém, que ficasse a ideia de que fui pessoalmente o responsável por este êxito pedagógico. Aqui, como em muitas matérias — quase todas — a pedagogia não é auto-subsistente, mas decorre em larguíssima medida da natureza — e da apelatividade ou da importância — da matéria, da substância. Os professores não ensinam verdadeiramente, os estudantes é que estudam e aprendem – ou não. Mas isto não se pode dizer alto...

Claro que ensinar Direito Natural não pode ser debitar uma rima de apriorismos preconceituosos e dogmáticos. Mas torna-se um desafio interpelante quando se problematizam os quotidianos não-pensados, e se apela para a discussão dos valores.

Ensinar Direito Natural não é apenas conversar, discutir. Mas convidar a expor, treinar a argumentar, obrigar a pensar. E aprender também não pode ser conformar-se com opinião, ou consenso, ou encerrar com o dogma magister dixit.

Estudar Direito Natural, mais do que "ensinar Direito Natural", hoje, é uma grande aventura conjunta de demanda da verdade. E de verdade essencial, que tem em jogo a questão da justiça, ou seja, o destino afinal da vida, honra, fazenda e liberdade das Pessoas. Poderá haver, aparte a discussão dos fins últimos, questão mais interpelante para o Homem?

Depois de um curso que deve ser de rigor, mas em que a especiosidade das soluções do quid juris não raro fazem esquecer os problemas da Justiça, do quid jus, e depois de uma reacção inicial de algum espanto – chamemos-lhe o “choque jusnatural” - , só tenho visto estudantes entusiasmados. Alguns atreveram-se a dizer: agora é que me reencontro com o Direito. Ou então: agora é que percebo porque fiz bem em não desistir. Ou ainda: Agora é que estou a gostar. Finalmente estou a gostar.

Ao debate, à polémica, à livre discussão e indagação sem preconceitos, fazendo do Direito Natural um método dialéctico e não um dogma, juntei o estudo dos clássicos. E assim, os estudantes de Direito passaram a ver filmes e a ler romances, contos, poemas e peças de teatro. Folclore pedagógico? Não. Muito pelo contrário. Apenas reencontro com as raízes. Juristas cultos, bons juristas. Não tenhamos ilusões de que o bom jurista é o tecnocrata que estudou muito e de tão embrenhado nos livros da sua especialidade não vê um palmo à frente do nariz... O Direito é jurisprudência, e a prudência é virtude que tem absoluta necessidade de conhecimento da vida e dos Homens: o que se obtém por experiência pessoal (indispensável) e pelo conhecimento da alheia – e que se colhe sobretudo nas grandes obras da humanidade, nos grandes livros da nossa grande conversa de séculos. E que só numa mínima parte são livros de direito positivo, ou sobre direito positivo, sempre tão mutável.

4. Conclusão

É altura de terminar, sintetizando.

O Direito Natural tem um problema científico, o qual cabalmente se ultrapassa, afinal, pela compreensão dos limites da ciência; e mais: pela redescoberta do carácter problemático, tópico, retórico, dialéctico — artístico e não puramente "científico" — do Direito em geral.

O Direito Natural não tem um problema pedagógico verdadeiro, porque a pedagogia universitária do Direito vive não de umas folies bergères de didactismo folclórico, mas do fundo, da substância, da própria juridicidade. Por isso também é que os juristas não precisam de lições dos pedagogos. Temos muita pena, mas de Direito sabemos nós e não venham outros, não juristas, ensinar-nos a ensinar Direito se não souberem Direito e melhor que nós.

Também não duvido que haveria um problema pedagógico insuperável para o Direito Natural se este fosse ainda concebido, como no jusracionalismo, como um corpo de trunfos na manga anti-Direito positivo, ou como um conjunto de leis inscritas no céu dos conceitos a letras de oiro sobre tábuas de mármore. Essa fixidez, essa cristalização só podem funcionar contra o Direito Natural. Ainda hoje a tentação de fazer listas de elementos do que, positivamente, constitui o Direito Natural acaba por lançá-lo na sua própria negação. A positivação do Direito Natural, ainda que em listas principiais tem de ser feita com grandes cuidados, porque, ao positivar-se, o natural torna-se perecível, contextual, e assim efectivamente deixa de ser Direito Natural para passar a ser Direito positivo, designadamente sub specie Princípios Gerais ou Fundamentais do Direito.

Ora hoje o Direito Natural, recuperando e renovando o velho legado clássico, é sobretudo uma preocupação pela Justiça e o ressurgir de um método para procurá-la.

E todos sentimos esse apelo. Numa excelente exposição das perspectivas do Direito Natural desde as origens a Tomás de Aquino, o jusfilósofo italiano Reginaldo Pizzorni sintetizou com apolínea clareza esta ideia simples. E a simplicidade é normalmente sinal de verdade:

“Em geral, podemos afirmar que todos os homens, possuindo uma certa capacidade de discernir entre o bem e o mal, assim como entre o justo e o injusto, uma inclinação a fazer o bem e uma repugnância em fazer o mal, possuem ainda uma certa ideia do direito natural e dos direitos naturais do homem, como exigência da recta razão para a realização autêntica da pessoa, como lei constitutiva da pessoa, como uma certa ordem essencial, que se encontra intimamente ligada à natureza humana, ou melhor, à pessoa humana, e que vale, ou pelo menos deveria valer, de per si, independentemente da intervenção do legislador humano ou do Estado.” [2]

E prossegue (permitam-me apenas esta linha mais, que é essencial):

“O homem, de facto, é naturalmente levado a subordinar a validade da lei à sua conformidade com o valor da justiça, aos fundamentais princípios de uma ordem interior a todos os seres e em seguida interior ao próprio homem (...)”

Tenho para mim que essa preocupação pela Justiça e essa sintonia com ditames mais altos que a mera engenharia legal ao sabor dos ventos da efémera política, essa preocupação é o critério verdadeiramente definitório do jusnaturalismo e do jusnaturalista. Antígonas sempre clamarão por Leis mais altas que os decretos arbitrários dos ditadores Creontes. O jusnaturalista está ao lado daquelas; o positivista cumpre as ordens destes. Cientificamente, Antígona não prova nada. Mas todos sentimos com o coração quem está certo.

Essas razões do coração não são a melhor pedagogia? Cada um responderá pelo seu.



[1] Neste primeiro ponto retomamos, na nossa exposição oral e sem tópicos, em geral, ainda que mutatis mutandis, a nossa exposição respectiva de O Ponto de Arquimedes, Coimbra, Almedina, 2001.

[2] REGINALDO PIZZORNI, Il Diritto Naturale dalle Origine a S. Tommaso d’Aquino, 3.ª ed., Bolonha, ESD, 2000, p. 5.