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Erik F. Gramstrup
Juiz Federal Professor da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo
Introdução
Graças à generosidade de nossos amigos [1] , tivemos a oportunidade de estar à mesa da conferência proferida pelo Prof. Paulo Ferreira da Cunha, na Faculdade de Educação da Universidade de S. Paulo. O eminente professor do Porto e autor de mais de trinta obras é ums dos jusfilósofos vivos mais importantes, na comunidade de lingua portuguesa. Já nos era grata a convivência com sua estatura intelectual, por via de seus textos conhecidos no Brasil [2] ; tornou-se ainda mais pelo contato com sua simpatia e simplicidade. Na alocução sobre o problema científico e pedagógico do Direito Natural [3] , restou evidente que a tais qualificativos deve ser acrescido o dom retórico, pois o mestre, a rogo dos organizadores, deixou de lado o texto para brindar o público com animadas e envolventes indicações, temperadas por seu natural bom-humor, preciosas para quem principia o estudo do tema e que procuramos, com avidez, registrar.
O que pretendemos fazer aqui é desprovido de qualquer pretensão de originalidade. Queremos apresentar aos estudantes alguns tópicos tratados pelo conferencista, por entender que aplainam o caminho e apressam os passos de quem se introduz na Filosofia do Direito. Decerto que seu próprio artigo anotará com maior rigor e irá mais longe; não podíamos, no entanto, perder e oportunidade de deixar grafadas as idéias do modo informal e atraente como apresentadas naquela ocasião. Acrescentaremos comentários de nossa lavra, mas queremos deixar claro que somos tributários do pensamento do preclaro professor luso.
Com estas advertências, seja-nos permitido, com objetivos apenas didáticos, alguns tópicos.
I. O direito não se confina nas normas
Iniciou-se a exposição pela crítica da (hoje imperante) teoria normativista do Direito. É demasiado difundida e ensinada nas escolas, explicitamente ou não, a idéia de que o Direito compõe-se de moléculas [4] chamadas normas, cujo atributo principal é o de ser coativamente impostas. O conferencista chamou tal estereótipo mental de “engenharia legal” ou ainda de “tecnológico”. Não negou, é claro, a presença de normas dentro da conotação do verbum Direito, mas as classificou como mera estilização ou formulação verbal deste.
De fato, não há como negar que o reducionismo normativista predomina na Academia e na prática, ligado a outro, ainda mais restritivo, que identifica as normas com aquelas impostas pelo Estado (ou pelos menos reconhecidas pelo Estado) e vincula-se ao preconceito legalista: o Direito é o conjunto de prescrições que consta dos Códigos, dos Estatutos, das leis complementares, das lei ordinárias et coetera. Jurista seria o manipulador desse fraseado; um técnico versado em lógica e em retórica, que reúne os átomos (as proposições prescritivas que encontra nos diplomas legais) e constrói as normas. As elabora e interpreta, atribuindo-lhes sentido e buscando otimizá-las (preenchendo lacunas, corrigindo antinomias, conferindo sentido a termos indeterminados...). Esta visão projeta pano de fundo nos manuais elementares: quando se define qualquer ramo do Direito, o gênero é “o conjunto de normas que trata de...” , seguido da diferença específica atinente a uma área de relações sociais, como “a vida privada”; “a receita e a despesa do Estado”; os “fatos típicos e as penas”; e assim por diante. Mas tudo se resolve em um amontoado de regras, mandamentos, prescrições, princípios ou como se lhes queira chamar. À força de repetir-se a cantilena, nem é necessário discuti-la com os estudantes; bacharelam-se com a convicção de que assim é, e pronto.
E tudo isto, em País cujo maior expoente crítico, o Prof. Miguel Reale, tem procurado ressaltar, pelo menos, que à dimensão normativa deve ser acrescida a dos valores e a dos fatos, para compreensão do fenômeno jurídico! [5] Presenciamos, em certa ocasião, a seguinte crítica de Ricardo Guibourg: como pode ser o Direito três espécies totalmente heterogêneas? Responde-se a isto que talvez não seja por menos que não possa ser facilmente encerrado em definição concisa; continuando seus cultores em busca incessante, porque produzida no lugar equivocado.
O reducionismo normativista converteu-se em armadilha inescapável, quando se aliou à perspectiva nominalista. Deixou o pensamento humano de concentrar-se na busca humilde do ser, voltando-se para si mesmo. Há algo de mórbido nesse processo: como se o artista ficasse tão encantado com seus instrumentos, que abandonasse a obra para adorá-los! Num segundo passo, ainda mais desastrado, voltou-se para as palavras. Assim, “dos entes para os conceitos e destes para os termos”, eis o grito de batalha do que se converteu na filosofia contemporânea. Tudo é um mundo (terrivelmente aborrecido, notemos) de signos, deixando-se de lado a elementar idéia de que signo é o que está em lugar de outra coisa... Os operadores do Direito não foram exceção à virada do cognoscente para o estéril e para o vazio: concebe-se o jurista como tecnocrata do conjunto de sinais que compõem o discurso prescritivo. Não por outra razão, os centros de ensino jurídico produzem gerações de entediados.
Em vista do que, abriu-se um abismo, de linha kantiana, entre ser e dever-ser. Seriam duas dimensões incomunicáveis. Lançou-se fora a clássica identidade dos transcendentais: no ser está o belo, o verdadeiro e o bom. Quem ouse afirmá-lo é excomungado da comunidade pensante, pela heresia de “platonismo”.
Livra-se o Prof. Ferreira da Cunha deste emaranhado com uma salutar retificação – e quiçá nossos estudantes façam uso do antibiótico: as normas são mera estilização, formulação verbal ou “casca” do Direito. Este é o SUUM, decorrência da Justiça.
II. A coercibilidade não é essencial ao direito
A coragem de asseverar a não correspondência dos termos Direito e Coercitividade pode ser mesmo escandalosa para os ouvidos contemporâneos. Afinal, vêem neste o divisor de águas entre o sistema de normas jurídicas e outros, como as éticas, religiosas, de etiqueta e outras. Em perspectiva, de novo, kantiana, faz-se vulgarmente a distinção do Direito, pelo atributo de ser imposto de fora ao indivíduo (heterônomo) – e mediante a força, se necessário – da Ética, que seria autônoma.
Tudo isto é irrelevante para quem não encerre o Direito em normas, porque a coercibilidade seria um qualificativo das mesmas. Do peso daquelas distinções artificiais livrou-se o Prof. Ferreira da Cunha, invocando o exemplo de S. Agostinho: apresentado o pirata diante de Alexandre Magno, justificou-se o primeiro, esclarecendo que a diferença de sua profissão com a dos imperadores era uma questão de grau. O que seriam os reinos senão grandes ladrões? Efetivamente, se o atributo distintivo do Direito for a violência, cairemos na aporia de Kelsen: torna-se muito sutil a diferença de um governo com um bando de facínoras.
III. O direito não é mero produto do estado
Ademais, lembrou o comentado conferencista, permanece por explicar o fenômeno do Direito Internacional, que não dispõe de soberano único, nem de polícia que o imponha. Assim é que, livrando-nos do dogma da coercitividade, devemos também nos despir do postulado da estatalidade. Ao lado do Direito do asfalto, há um Direito da favela. [6] O Estado é apenas um ator dentre outros. Ridiculariza-se o desejo de intrometer a vontade governamental em tudo. No Código Civil Português, há dispositivo que permite ao Juiz, não havendo acordo entre os pais, decidir o nome do filho de acordo com seu melhor interesse... [7]
Acenou o Prof. Ferreira da Cunha com a noção de que não tem o Direito fonte apenas na lei positiva estatal, o que nos trouxe a memória a circunstância de que, realmente, o preconceito contrário não tem foros de respeitabilidade, fruto que é de tradição histórica bem recente. No máximo, remonta ao século XVIII. Até então, sempre se admitiu a pluralidade de fontes. Surgia o Direito da natureza das coisas; da atividade prudencial de seus operadores; do estudo e discussão dos casos; do aproveitamento das fontes históricas – ao lado do Ius Romanum, ensinado nas escolas, havia o Direito das Cidades, das Corporações, dos Feudos, da Igreja e do Império.
IV. O direito natural não é uma cartilha de emprego residual
Permanecendo fiel às palavras do conferencista, o Direito Natural não pode ser tomado como “código-sombra de reserva.” Vale dizer, na omissão ou na insuficiência da lei estatal, recorrer-se-ia a uma espécie de cartilha ou catecismo, para solução de um litígio.
V. Abordagem tópico-fronológica
Definir o Direito, portanto, preferível de evitar-se, do estatalismo positivista. Melhor método consiste em relacioná-lo com a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o que é seu.
VI. O direito natural não é um direito ideal
A observação de que o Direito Natural não deva ser confundido com um ideal abstrato decorre imediatamente da anterior. Na verdade, o Direito Positivo está embebido do Natural. Este tem a feição de um moto-perpétuo; não é uma entidade morta, como que um ideal estético irrealizável. Suas características são a incompletude e a permanente inquietação.
VII. O direito natural supõe um tormentoso problema didático
Um dos piores desastres (pensamos) para a História do pensamento em torno do Direito Natural foi a tentativa de fechá-lo em um catálogo de preceitos. É antes uma metodologia, uma dialética. Por isto, não pode ser ensinado segundo método puramente expositivo. Apreende-se, mas não se ensina. Nasce do diálogo, da técnica do pro et contra e da quaestio, da qual, um dos poucos sobreviventes, segundo o Prof. Ferreira da Cunha, seria a dissertation française.
Lembrou o conferencista um divertido exemplo tirado de sua experiência didática, digno de ser registrado: em certa ocasião, sustentava um estudante que a desigualdade de tratamento, para efeito de sucessão causa mortis, entre filhos legítimos e naturais seria de Direito Natural. O que muito espantou seus colegas, que enxergavam, na isonomia perfeita, a expressão do justo. Logo se esclareceu a origem da divergência: o defensor da discriminação provinha do meio rural, no qual o trabalho em regime de economia familiar era comum, gerando patrimônio que, em parte, advinha da colaboração do filho legítimo. Por aí se enxerga o perigo de encerrar o problema do Direito Natural em fórmulas prontas de uma vez para sempre.
VIII. Considerações complementares
Como se nota, o ilustre conferencista tratou do tema à moda de médico que procurasse extirpar certos males, que turvam a vista do paciente, de onde as proposições em torno do que o Direito em geral – e o Natural – não é. E no tempo corrente não há outra saída. É que a mentalidade reinante de preconceito e rejeição perante o assunto deriva de dois desvios.
O primeiro, já poderíamos batizar de desvio linguístico, que já comentamos. Está muito ligado a certas correntes nominalistas que principiaram no século XIV, foram abraçadas pelo empirismo anglo-saxão e finalmente encontraram guarida na filosofia analítica. Esta, por sua vez, impregna o pensamento de muitos jusfilósofos, e o faz notavelmente em países como o Brasil e a Argentina (há mesmo uma “escola analítica” em Buenos Aires). É muito difícil sintetizar o que tudo isto significa, mas podemos dizer que se trata do confinamento do Direito a um problema de linguagem. Comportaria, portanto, três abordagens, semântica, sintática e pragmática, referidas a um discurso de caráter prescritivo. Tal discurso seria o das normas, um tipo especial de prescrição, ao qual se acrescentam os supostos atributos que já analisamos. Há uma preocupação especial com os termos jurídicos indeterminados e com a associação da atividade do jurista como atribuidor de sentido. Rejeita-se a concepção da dita “Escola da Exegese”, que predominou no séc. XIX, porque via um único sentido correto como resultado da atividade interpretativa; mas não se consegue fugir do estatalismo, do positivismo e da associação do Direito com a violência e com a coerção. Produzem-se, assim, jogos e passatempos interessantes, mas o Direito, pensamos, é mais que isto. As justas observações do Prof. Ferreira da Cunha parecem-nos terapia adequada em vista destes equívocos.
A segunda distorção está na identificação do Direito Natural com aquele apresentado pela escola jusnaturalista. Estamos a nos referir a autores como Grócio, Puffendorf e Thomasius. Na melhor linha de um evolucionismo canhestro, costuma-se pensar que este é a melhor e mais acabada concepção do Jus Naturale e que, com sua crítica e dissolução, o problema está enterrado de uma vez para sempre. Como este tipo de antolhos é voluntário, não há o que fazer em benefício do paciente senão dizer: retire as viseiras, pois existem concepções alternativas (se nos for perdoado o emprego do termo, tão em voga).
Antes de discutir-se da pertinência da lei natural, é preciso, seguindo Tomás de Aquino, estabelecer que a lei (em geral) é certa medida dos atos, segundo a qual alguém é induzido a agir ou se abster. [8] Pode-se dizer, portanto, que a lei pertence à ordem da razão, porque este é o princípio de todo ato humano.
O fim a que almeja o ser humano é a felicidade, do que se infere que a lei deva dirigir-se ao bem-comum. Nenhum preceito assim pode ser chamado enquanto não se ordenar à felicidade geral, em comunidade perfeita. E se assim é, o poder de legislar é de toda comunidade, ou de quem tenha de velar pela mesma [9] . Ganha força obrigatória quando promulgada.
Logo, a lei é certa ordenação da razão ao bem comum promulgada por quem tem a comunidade a seu cargo. [10] Ou, em outra formulação, ditame prático de quem governa uma comunidade ordenada ao bem-comum. Para os que crêem, e reconhecem o mundo regido pela Providência, não é difícil extrair a regência da lei eterna, ditame prático da Razão Divina.
A participação da lei eterna nas criaturas é a lei natural. Não há problema nenhum em admitir, a par daquela, uma lei oriunda da razão humana.
Já estamos a antecipar a velha objeção de que há uma petição de princípio aqui: estar-se-ia definindo lei com o atributo inerente de justa. Mas isto não é correto. Tomás de Aquino distingue lei humanas injustas, em trecho de espantosa atualidade, por três motivos:
a) pelo seu fim, quando o governante impõe leis não dirigidas ao bem-comum, mas a sua gloria ou capricho;
b) por sua forma, pela distribuição desigual de cargas entre os súditos; e
c) pela indução à idolatria ou incongruência com a Lei Divina. [11]
Isto é apenas um deformador resumo ou extrato, que pretende apenas ilustrar que há uma visão pluralista, generosa e diferente do que seja a lei natural; e bem mais ampla e flexível do que se imagina, quando se reporta ao Direito Natural. Será trabalho para outra ocasião, com maior desenvolvimento.
[1] Registramos, nominadamente, nossa gratidão ao Prof. Luiz Jean Lauand e ao Dr. Mauro de Medeiros Keller.
[2] Em particular, temos recomendado a nossos alunos a leitura de sua excelente Propedêutica Jurídica, escrita em co-autoria com o Dr. Ricardo Dipp.
[3] Conferência que se recolhe nesta mesma edição (pp. 25-34). Nota do Editor
[4] Logo a seguir esclareceremos porque não grafamos “átomos”.
[5] O que se batizou de teoria tridimensional.
[6] Comparação que nos lembrou a de um insigne romanista germânico, entre Reichsrecht e Volksrecht.
[7] De fato, cuida-se do art. 1875o., 2, do CC de 1966: A escolha do nome próprio e dos apelidos do filho menor pertence aos pais, na falta de acordo decidirá o juiz, de harmonia com o interesse do filho.
[8] Suma Teológica, c. 90, a. 1.
[9] Não há sombra de autoritarismo nesta concepção, porque se está a referir, justamente, à autoridade legítima, reconhecida como tal pela comunidade.
[10] Op. cit., c. 90, a. 4.
[11] Op. cit., c 96, a. 4.