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O Ser Humano na Etimologia Coreana – uma nota antropológica

 

Hae Yong Kim
Professor da Escola Politécnica - USP
hae@lps.usp.br

“Quem ama a sua vida perdê-la-á, e quem neste mundo
aborrece a sua vida conservá-la-á para a vida eterna [Jo 12, 25]”

 

Nesta nota, procurarei explorar um aspecto dessa sentença um tanto enigmática de Cristo por meio de um fato etimológico da língua coreana, a minha língua materna [1, 2].

Nessa língua, o homem (saram 사람) significa “o ser que vive”. Assim, as palavras homem (saram 사람), viver (sarda 살다) e vida (sarm ) compartilham o mesmo radical (sar). Nenhum ser vivo, exceto o ser humano, é chamado de “o ser que vive” (saram 사람) e esta palavra aplica-se indiferentemente a homem e a mulher.

É interessante notar que os verbos viver (sarda 살다) e queimar (sarûda 사르다) também compartilham o mesmo radical. Na verdade, sarûda 사르다significa mais do que simplesmente queimar. Significa queimar até a destruição total. Assim, o homem seria o ser que se consome pelo fogo. Como mais um exemplo do relacionamento entre os conceitos viver e queimar, podemos citar o verbo reviver (saranada 사라나다). O sentido original deste verbo é reavivar o fogo que estava se extinguindo mas que se aplica também a reverdecer um galho seco e a sair de um estado próximo à morte.

O homem é o ser que se queima até a sua destruição total. O sentido reflexivo de queimar (sarûda 사르다) torna-se mais claro considerando que a palavra carne (sar ) também possui o mesmo radical que as palavras homem, viver e queimar. Com isso, o homem poderia ser caracterizado como o ser que queima a sua própria carne até a destruição total.

Até aqui, parece haver uma unanimidade quanto à origem comum das palavras mencionadas. Embora haja discordância de alguns autores, muitos consideram que também a palavra amor (sarang 사랑) procede do mesmo radical que homem, viver, queimar e carne. Assim, a atividade própria do homem (saram사람) seria dar amor (sarang 사랑). O homem seria portanto o ser que queima a sua própria carne até a destruição total para amar e por amor. Ora, estes fatos etimológicos da língua de um país sem tradição cristã refletem perfeitamente a visão cristã daquilo que o homem está chamado a ser. Jesus Cristo, o homem por excelência, o modelo perfeito do que um homem deve ser, morreu na cruz para redimir a humanidade. Ele queimou inteiramente a sua vida por amor a nós.

No plano meramente natural, já é necessário sacrifício para a realização plena do homem. A plenitude natural do ser homem é o que se designa classicamente por virtude, como diz Pieper [3]: “Tomás de Aquino designou a virtude humana como ultimum potentiae, ou, em linguagem de hoje, o máximo daquilo que uma pessoa pode ser”. Assim, no plano natural o homem realiza-se adquirindo as virtudes morais. As quatro principais virtudes morais são denominadas de cardeais: prudência, justiça, fortaleza e temperança. E é a virtude da fortaleza que “dispõe a pessoa a aceitar até a renúncia e o sacrifício de sua vida para defender uma causa justa [4]”.

No plano sobrenatural, a realização plena do homem, em união íntima com Deus, está situada muito acima destas potencialidades naturais. Estamos chamados a nos identificarmos com o próprio Cristo. Este processo realiza-se pela graça e pelas virtudes teologais: fé, esperança e caridade. E é nessa perspectiva que podemos compreender melhor que o homem se realiza, chega à sua plenitude, torna-se verda-deiramente homem, quando queima generosamente a sua vida por amor. Uma pessoa que procurasse a sua realização de forma egoísta estaria destinada ao fracasso. “Quem procurar salvaguardar a vida, perdê-la-á, e quem a perder, conservá-la-á [Lc 17, 33]”.

Costuma-se comparar o Decálogo a um manual de instruções de um eletrodoméstico: contém instruções precisas do fabricante sobre o que se deve e o que não se deve fazer para que o aparelho funcione de forma apropriada. Assim, os dez mandamentos descrevem o que se deve fazer para que o homem “funcione” apropriadamente no plano natural. Porém Cristo, na última ceia, deu-nos um novo mandamento, um novo “manual de instruções”, mais apropriado para o bom funcionamento do homem no plano sobrenatural: “Dou-vos um novo mandamento: (...) assim como eu vos amei, vos ameis uns aos outros [Jo 13, 34]”.

“O que devo fazer para ser feliz, para me realizar?” Cada homem traz dentro de si uma resposta íntima para esta pergunta, mesmo que não chegue a formulá-la explicitamente. Esta resposta funciona como um divisor de águas: um centímetro para a esquerda ou para a direita acaba por levar a gota de chuva para o Oceano Atlântico ou Pacífico, para a realização ou para o fracasso final e definitivo. Só existem duas respostas possíveis, como já indicava Agostinho na Cidade de Deus: ou procurar os interesses próprios tentando salvaguardar a sua vida ou procurar os de Deus (e, por Deus, os dos demais homens) queimando alegremente a sua vida até a destruição completa.

Agradecimentos: Gostaria de manifestar os meus agradecimentos ao Prof. Kyu Hyun Park, da Faculdade de Medicina da Universidade Nacional de Pusan, Coréia, que me alertou para esses fatos etimológicos e ao Prof. Jean Lauand, Faculdade de Educação da USP, que me estimulou a escrever esta nota e a submetê-la a esta revista.

Referências:

[1] 정호완 (Jung Ho Wan), 우리말의상상력(The Power of Imagination of Korean Language), pp. 226-230, 정신세계사 (Mind World Publications), 1991, 서울 (Seoul, Korea – in Korean).

[2] 최창열 (Choi Chang Ryoul), 우리말어원연구(Introduction to Origin of Korean Language), pp. 30-31 and 192-195, 일지사(Il Gi Publications), 1986, 서울 (Seoul, Korea – in Korean).

[3] Josef Pieper, “Estar Certo Enquanto Homem - As Virtudes Cardeais”, disponível no site http://www.hottopos.com.br/videtur11/estcert.htm.

[4] “Catecismo da Igreja Católica”, ponto 1808.