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Reinventar a Roda

 

Prof. Dr. Rogério Lacaz-Ruiz
(Professor de Metodologia Científica
e Microbiologia - FZEAUSP)
(e-mail: roglruiz@usp.br)

 

     Mário Quintana diz que "A preguiça é mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda". Preguiça é uma palavra que tem sofrido uma mudança de polaridade valorativa (principalmente em seu uso pelos preguiçosos...) e, cada vez mais, as pessoas assumem uma atitude preguiçosa em tom de vantagem. Talvez tenha sido neste sentido (- Eu não queria fazer força..., então inventei a roda) a afirmação de Quintana.

     Este estudo, porém, não é sobre a preguiça ou invenções, mas sim sobre duas outras atitudes que merecem reflexão por parte dos cientistas: a humildade e a prudência (também estas palavras estão desgastadas...). Aquele que não procura vivenciar a humildade é capaz de atribuir a si o invento de algo que já foi inventado por outro; enquanto o imprudente faz o que já está feito. Para os que se dedicam à ciência e à administração, veremos que existem graves conseqüências nesta postura, principalmente para os subordinados dos reinventores... ou vice-versa.

 

O reinventor na televisão

     A Fundação Padre Anchieta, produz um conhecido programa televisivo, apresentado na TV Cultura, o "Castelo Rá-Tim-Bum". É um programa de grande audiência para o público infantil e que, por sua qualidade tem também grande aceitação do público adulto. Um dos seus personagens, o Nino, representado pelo ator Cássio Scapin, é o mais famoso. Nino vive recluso num castelo, e como afirma de si mesmo, "Ele é angustiado, carente e inquieto (...) Também, o que se pode esperar de um garoto que, apesar de já ter 300 anos, não consegue sair da infância, não tem pai nem mãe e ainda é obrigado a arcar com uma série de obrigações domésticas?" (Sá, 1997.) No castelo costuma receber a visita de três amiguinhos: Biba, Pedro e o Zequinha. Os que vêm de fora, também são bastante animados, e vivem as aventuras do mundo infantil com o amigo recluso. Devido ao sucesso do programa, já existem fitas no mercado para o grande público e uma delas, apresenta o Nino fazendo uma surpresa para os três amiguinhos recém-chegados, mostrando seu mais novo reinvento: uma máquina fotográfica. A surpresa do trio é muito expressiva, e com a sinceridade que lhes é peculiar, as crianças afirmam que o que ele inventou já existe há muito tempo (Videocultura, 1996). O ditado popular é recordado instantaneamente: - Ele reinventou a roda!

     Este fato está relacionado a um fenômeno que merece comentários, uma vez que todos aqueles que se dedicam a fazer ciência, estão sujeitos a situações semelhantes. Quem não passou por momentos parecidos, pelo menos no campo da hipótese, ao ler um trabalho de investigação? A Introdução dos trabalhos publicados em periódicos especializados, costuma situar os leitores, de forma histórica, do geral para o particular, no tema que se pretende pesquisar. Mesmo antes do término da leitura desta parte do trabalho científico, surge na mente do leitor a hipótese: - "Bem que ele poderia analisar tal aspecto..."; e ao terminar a leitura, observa-se que a idéia-hipótese foi exatamente a do autor. Isto não ocorreu por acaso. O pesquisador que sabe escrever, também sabe induzir.

     Por outro lado, ainda ressaltando o lado positivo do Nino, que reinventou a máquina fotográfica, existe um mérito muito grande, pois ele foi capaz de inventar algo, recluso num castelo. Mas o mundo de hoje, particularmente para os cientistas, não é nada comparável a um castelo.

 

O reinventor no Laboratório e nas Instituições

     Num antigo Index Current Contents, apareceu um desenho, de quadro único, que representava um típico cientista em um laboratório muito bem equipado. Ao lado do cientista, um cartaz com os dizeres: "Laboratório para o Prêmio Nobel" e flutuando no ar um anjo da guarda dizendo: "Ei meu amigo, pare de pesquisar sobre isto, pois este fenômeno já foi descrito!"

     Nos laboratórios das Universidades, das Indústrias, e Institutos de Pesquisa, existe muita gente pesquisando a mesma coisa. Algumas vezes por necessidade, outras por falta de zelo. No primeiro caso, a competição por se tentar chegar a um produto otimizado ou a necessidade de se obter algum produto que resolva um problema social importante justifica a "duplicação" dos esforços; mas quando alguém tem uma idéia muito interessante e parte para a práxis sem verificar se o problema já recebeu solução, este na melhor das hipóteses está prestes a reinventar a roda. Os reinventores da roda, podem estar dotados de grande inteligência e espírito de iniciativa, mas correm sério risco de perder tempo e dinheiro; e o que é pior, tempo alheio e dinheiro "público".

     Diferente é a posição dos alunos de Iniciação Científica ou de Pós-Graduação em nível de mestrado. Estes estudantes, iniciantes na pesquisa, muitas vezes repetem técnicas e protocolos já realizados por pesquisadores de renome. São pessoas em fase de treinamento ou aprendizado, e nestes casos também se justifica a reinvenção da roda.

     Nas Instituições que promovem a difusão do saber, ou mesmo prestam serviços de extensão no setor público, ocorre uma freqüente substituição das pessoas que assumem os cargos de chefia ou direção. As demais pessoas, segundo o jurista Ives Gandra, representam "A nova classe ociosa" (Martins, 1988), que assistem não só à reinvenção da roda, como também à da pólvora. É o que opina Miranda (1997), ao escrever sobre a criação de uma "nova" carreira para o Fiscal da Defesa Agropecuária: "Entendo que isso não acrescenta absolutamente nada. Muda a denominação, e só. Aliás, é típico da mentalidade do administrador público brasileiro, ao menos de um número expressivo deles, reinventar a pólvora e a roda. Quando ele acha que determinado setor ou serviço não está funcionando a contento, não consegue deixar de sucumbir à tentação de criar uma estrutura nova, quando o lógico seria saber as razões da deficiência - que, na maioria das vezes, aliás, já são conhecidas pelo pessoal da área - e procurar corrigi-las, pura e simplesmente. As novas tarefas do Fiscal da Defesa Agropecuária, além de antigas, são peculiares da Veterinária naquilo que se refere à defesa sanitária agropecuária, à inspeção de alimentos de origem animal e às executadas pelos órgãos de apoio, como os laboratórios."

 

A medida como atitude para não reinventar a roda

     Se por um lado existe o mérito dos auto-didatas, é preciso questionar sobre a medida (do gr.grego.gif (1711 bytes)), para que não se gaste tempo em uma atividade cujo fim já foi atingido. A humildade é a verdade, segundo Santa Tereza de Jesus. E o pesquisador precisa buscar esta verdade.

     Diante deste panorama, o cientista antes de iniciar seu projeto ou trabalho, precisa debruçar-se diante das inúmeras ferramentas de busca bibliográfica nas bibliotecas ou bancos de dados na internet, para verificar se alguém já estudou sua hipótese. E ao escrever seu projeto, saber onde pretende chegar, e quais os meios materiais e humanos que disporá nesta atividade; e ter a humildade - que repito, é a verdade - de saber dos limites pessoais e do local de trabalho.

     Quem não sabe para onde vai, não vai a lugar nenhum, e quem sabe para onde quer ir, mas não se organiza, está arriscado a ter problemas mentais (e aí estão o estresse e dezenas de psicoses acometendo esta casta de indivíduos da sociedade dita moderna).

     A medida não pode ser o bom senso. Parece difícil encontrar alguém que reclame ao Criador por ter pouco ou mesmo não ter bom senso. As pessoas reclamam que não têm saúde, dinheiro, amigos; mas bom senso, não! A humildade é a atitude básica que serve como fundamento e como o orgulho, a vaidade, a prepotência acompanham o ser humano no seu dia-a-dia, é preciso estar sempre atento, pois "El hombre es un ser que se olvida!" (Lauand, 1998). O homem é um ser que esquece, e esquece justamente destas claudicações que todos estamos sujeitos.

     O pesquisador humilde, deve lembrar-se de que não existe todo o dinheiro do mundo para o seu projeto de pesquisa; que nem sempre poderá contar com o auxílio de outras pessoas de seu ambiente de trabalho, pois elas também têm suas idéias para levar adiante; que alguém já pode ter feito a mesma coisa ou algo muito semelhante. No caso do cientista-administrador, se vai fazer algo que não seja o objeto de pesquisa propriamente dito, mas, digamos, ampliar suas instalações na área de informática, precisa lembrar-se também da prudência. Neste caso, ter a humildade de lembrar que esta não é sua especialidade, e que existem outras pessoas que dedicaram suas vidas em construir redes de computadores, é algo muito relacionado com a docilidade da prudência. Aqui docilidade pode ser entendida como pedir conselho, escutar a voz de quem entende da arte.

     A lembrança da humildade como atitude, auxilia no curso natural das atividades da sociedade. Pelo fato da natureza humana ser limitada - ela se particulariza e se concretiza em cada pessoa - a diversidade na variação, obriga à vida social. Assim, as pessoas, parecem ter tão somente em comum a antiga e atual definição de pessoa de Boécio (sec.VI): Substância individual de natureza racional. O homem que é humilde se conhece, e é capaz de dizer algo quando solicitam sua ajuda; e vice-versa, se precisa de ajuda, é capaz de buscar alguém que como ele, possa ajudar.

     A prudência (em seu sentido clássico de recta ratio agibilium - reta razão no agir) também auxilia na busca dos valores próprios do agir humano. Os pressupostos da prudência, são três: memoria, docilitas, e solertia. A memória que é esta fidelidade ao ser, por "conservar" as coisas e os acontecimentos reais tal como são e realmente aconteceram; a docilidade, que não é submissão ou zelo superficial, mas é "aquela disponibilidade leal que, em face da multiplicidade realista das coisas e das situações experimentadas, renuncia a refugiar-se estupidamente na absurda autarquia dum saber fictício."; e finalmente a solertia que é "a plena capacidade, em virtude da qual o homem, quando o inesperado lhe aparece diante, não obedece ao reflexo de fechar os olhos, e então, às cegas, ou com força ruidosa, fazer qualquer coisa; pelo contrário, de olhos abertos e penetrantes, consegue decidir-se pelo bem, e vencer assim a tentação da injustiça, da covardia, da intemperança." (Pieper, 1960.)

     A prudência de um homem humilde é a característica, a marca registrada de alguém capaz de agir, a medida do atuar quando realiza algo com olhos em si e nos outros.

 

Considerações finais

     O cientista humilde, não é um cientista coitado; um homem prudente, não é uma "estátua" que está no seu ambiente de trabalho para fazer número. O humilde é aquela pessoa que sabe de suas qualidades e limitações, e tem a capacidade para perceber que sabe muitas coisas, mas que os outros podem saber e fazer melhor as coisas do que ele. O prudente se esforça por lembrar dos acertos e erros do passado, e pede conselho, onde ele possa estar ou ser encontrado, e finalmente atua, livre e responsavelmente.

     Quem pretende "reinventar a roda" nos dias de hoje, talvez não tenha na lembrança o que significa humildade e prudência, e facilmente se torna um tirano dentro de seu próprio mundo faz de conta. Se o poder chegar às mãos daqueles que são acometidos por este tipo de esquecimento, a história irá retratar tão somente um reprise, em tom de déjà-vu, e o tempo e recursos expendidos, serão motivo de lamentação ou cumplicidade.

 


Referências Bibliográficas

Lauand, L.J. "Memoria y Educación", Mirandum, Pamplona, Univ. Navarra, v.2, n.4 (suplemento), pp. 9-16, 1998.

Martins, I.G.S. A nova classe ociosa. Série Realidade Brasileira. vol.III. Rio de Janeiro: Ed.Forense/Academia Internacional de Direito Econômico e Economia. 1988, p.214.

Miranda, Z.B. "Uma nova carreira: Fiscal da Defesa Agropecuária", Rev. do Conselho Federal de Medicina Veterinária, v.3, n.11, p.10, 1997.

Pieper, J. Virtudes fundamentais. Aster: Lisboa, 1960, p.24-27.

Sá, L.F. "O pequeno senhor do Castelo", Veja: São Paulo. v.30, n.33, p.12-17, 1997.

Videocultura - Olha o passarinho. Coleção Castelo Rá-Tim-Bum, n.8, TV Cultura. Premier Filmes Ltda - SESI, São Paulo. VHS-60min. 1996.