A Arte
Árabe e a Teologia Islâmica
Aida Rámeza Hanania
(Chefe do Dpto. de Línguas
Orientais - FFLCHUSP)
Quando nos referimos à Arte Árabe,
referimo-nos também à arte islâmica, à qual está intimamente vinculada e com a qual,
em boa medida, se confunde. Isto porque o conjunto de características que a definem
vai-se delineando paralelamente à formação da civilização muçulmana, que decorre do
movimento expansionista árabe, com o advento do Islão no século VII.
A reflexão sobre qualquer segmento de
Cultura Árabe impõe, necessariamente, a consideração de algumas peculiaridades de
ordem espácio-temporal, fundamentais à sua conceituação sob quaisquer pontos de vista.
Tendo início em 622, a formação da
almejada "nação árabe" adquiriu seus contornos maiores com a chegada dos
muçulmanos à Península Ibérica em 711.
O processo de implantação da língua
árabe e da religião islâmica (implicando, naturalmente, o enraizamento cultural árabe)
gerou uma realidade bastante complexa, determinada basicamente pela união de várias
etnias, culturas e filosofias sob a égide do Islão. Na verdade, o grau de islamização
de cada região, país ou grupo social foi extremamente diversificado, não só porque o
momento histórico em que ocorreu era outro, mas e sobretudo em virtude do
maior ou menor arraigamento das populações conquistadas a seus valores originais.
Para exemplo, tomemos a Pérsia, à
época da arabização, região das mais florescentes sob todos os aspectos, que manteve,
com a incorporação dos valores árabes islâmicos, muita autonomia na condução de seu desenvolvimento cultural. Pelas mesmas razões, foi análogo o caso da antiga Síria,
acrescendo-se o fato de que parte de sua população cristã resistiu à islamização,
chegando a preservar principalmente através da região libanesa um
importante núcleo cristão no Oriente Médio e grande liberdade na determinação dos
rumos de sua vida administrativa.
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Tenho a religião do amor, para onde se
dirigem
seus caravaneiros,
pois o amor
é minha religião
e minha fé (Ibn Arabi).
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Apegados de modo intenso a sua condição
de povo de "amazigh" (homem livre), os berberes, instalados ainda hoje na
região do Maghreb, islamizaram-se apenas no século XI, mesmo assim guardando respeito
por tradições ancestrais e usando, ao lado do árabe, sua língua berbere original.
É interessante notar que a ordem
instaurada pelo Islão, ao longo de oito séculos, pôde, em certo momento, aproximar mais
culturalmente a Andaluzia do Egito que do Norte da Espanha. A propósito, observa O.
Grabar: "No ano 700 de nossa era, é provável que Córdoba e Samarcanda não
tivessem conhecimento uma da outra; em 800, faziam parte do mesmo mundo, o que não mais
era válido em 1200. Na mesma época, Granada fazia parte da civilização de Samarcanda,
mas não mais da de Córdoba. Em 1450, Constantinopla era ainda um bastião da arte
bizantina cristã, mas, em 1500, sua produção artística poderia se comparar à de Delhi
ou Marrakesh" (1) .
Essa desigualdade, manifesta tanto em
dimensão histórico-geográfica quanto sócio-cultural, por certo repercutiu no modo de
expressão artística, levando à coexistência de posturas, mais ou menos rigorosas no
que toca à relação da doutrina islâmica com as culturas pré-existentes nos contextos
que se iam arabizando.
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Dize
o bem
ou, senão, cala-te
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Ainda que rápida, uma incursão no
domínio da Arte Árabe, a partir de suas origens, revela-nos uma produção tão rica
quanto variada no que se refere à Caligrafia, ao Arabesco, à Arquitetura, à Música...
para citar as artes mais proeminentes.
Quando nos detemos nas características
mais presentes, nas peculiaridades que configuram a Arte Árabe, para além da adoção de
traços ou o amalgamento de traços adquiridos pelos caminhos trilhados pela Civilização
Árabe, constatamos de imediato a sensível ausência da imagem na obra de artistas
muçulmanos, bem como a fascinação por uma forma decorativa não-figurativa.
A ausência da imagem trouxe à
discussão uma das questões mais significativas, envolvendo a atitude do Islão com
relação às artes. A polêmica estabelece-se, basicamente, a partir da dúvida com
referência ao fato de a religião muçulmana condenar ou não a representação de seres
animados no plano teológico.
Quando se analisa o texto alcorânico,
verifica-se que nele não há interdição alguma ao figurativismo ou à arte em geral. A
condenação alcorânica existe, sim, na direção da idolatria, uma vez que "será
proscrito todo objeto de arte que se torne cultuado".
Recorrendo-se, entretanto, aos hadiths
(2), verifica-se
que em suas declarações está contida a hostilidade à arte em geral e, particularmente,
ao figurativismo. Verifica-se ainda, que a condenação surge com mais veemência contra o
artista do que contra sua obra, conforme explicita um de seus mais reconhecidos aforismos:
"Os artistas que fazem imagens serão punidos no dia do juízo por um julgamento de
Deus que lhes imporá a impossível tarefa de ressuscitar suas obras". Porém, muito
embora as afirmações contidas nos hadiths adquiram um valor quase canônico, não
têm elas a força indiscutível das leis do Alcorão.
Outra razão implícita da condenação
do artista e da imagem que produz escuda-se no fato de que a mensagem teológica central
do Alcorão consiste em afirmar a unicidade e o total poder de Deus. A relação dos
Atributos de Deus (Asma`Allah al-Husna) aponta-nos que um dos qualificativos do
Criador é Al-Mussawwir (o criador de formas), o mesmo termo utilizado para pintor.
A partir daí, todo artista seria um rival de Deus no exercício de Suas atribuições
principais.
A amplitude da questão da imagem tem
convocado figuras eminentes do mundo islâmico, dentre elas, a de Algazali, em sua obra Ihya
ulum Al-din (Vivificação das ciências da religião), em que, ao enumerar o
cortejo de vícios que acompanha os banhos bizantinos situa, em primeiro lugar, "os
afrescos, representando seres humanos e animais", não tolerando senão "os que
representam árvores, isto é, seres inanimados"(3).
À medida que o Islão se expandia; à
medida que, cada vez mais, distanciava-se do universo idólatra que o antecedera; à
medida que se intensificava o contato com a arte dos conquistados, foram sendo
reproduzidas realidades inanimadas, como árvores, flores, conjuntos arquitetônicos...
Lentamente, tomou lugar a representação de seres vivos: animais, de início, e, mais
tarde, esparsamente, a figura humana. A importante arte figurativa árabe muçulmana será
a iluminura, miniatura árabe desenvolvida por influência persa.
Entretanto, embora presente de alguma
forma ao longo da história, o percurso da arte figurativa árabe nunca foi tranqüilo:
pairou sempre sobre a mão do artista ainda que de modo não canonicamente
explícito o desprezo pela imagem. A esse respeito, Ibn Rashek afirmou que "os
árabes reservaram para si a arte do verbo", sobrelevando a produção do espírito e
o caráter essencialista da expressão humana.
Verbo que, porém, se transformou em
arte. O árabe substituiu a imagem pelo signo, voltando-se para o abstracionismo. A
escrita tornou-se o veículo principal da simbologia islâmica.
Signos e símbolos são a matéria
privilegiada do pintor espiritualista, e este é exatamente o caso do árabe, que se
expressa na arte caligráfica.
Se, para o muçulmano, de início, a
tendência para o abstracionismo pôde confundir-se com a transgressão sutil de uma
proibição, não tardou a identificar-se inteiramente com ela, a ponto de a crítica
realizada no mundo islâmico considerar quase que exclusivamente a arte em sua forma
abstrata.
Se o figurativismo se associava, de certa
forma, à degradação da arte, a arte da Caligrafia estava associada à elevação, à
ascese. Ligada à palavra divina, pôs-se à serviço da fé e da beleza. Tornou-se
símbolo religioso.
Pertinente, aqui, a palavra de Jamil
Almansur Haddad: "O Alcorão pôde dizer que Deus ama a inteligência e ama a Beleza,
e, segundo Schuon, o mundo é cheio de sinais, de ayat, que são símbolos
elementares de música congelada"(4).
E, retomando o calígrafo Massoudy: "Nos edifícios religiosos, a caligrafia se
desenvolve como uma obra musical. Ela é espantosa. Só um olhar mais aplicado permite
tomar consciência do ritmo e da cadência, elementos essenciais"(5) .
Ritmo e cadência obtidos pela
repetição das letras, das palavras, das frases... Repetição que é marca profunda do
Oriente: "A repetição que é a música, a repetição que é o arabesco, as frases
que se repetem infinitamente. Em plano religioso e em plano místico, o dhikr: a
repetição ininterrupta, pelos tempos infinitos, do nome de Allah, em que o crente se
anestesia apenas com a repetição do nome de Deus, que leva ao êxtase, o que, em
definição rápida, é o contato direto, imediato, com Deus, dispensando
intermediários"(6) .
1. La Formation de l'Art
Islamique, (coll. Idées et Recherches), Paris, Flammarion, 1987, p. 14.
2. Hadiths, entre nós, Tradições,
são compilações que se referem à conduta e à fala do Profeta.
3. Cit. por Mohamed Aziza en L'Image et
L'Islam, Paris, Albin-Michel, 1978, p. 45.
4. O que é Islamismo, São Paulo,
Brasiliense, 1981, p. 44.
5. "Escrita e Caligrafia Árabes: A arte de
Hassan Massoudy", Revista de Estudos Árabes, Ano I, No. 2, 1993, p. 27
6. "Interpretações das Mil e Uma Noites", Revista
de Estudos Árabes, Ano I, No. 2, 1993, p.58.
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