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 Aula de Gramática

 

Gabriel Perissé
Doutor em Educação pela FEUSP
Professor da Pós-Graduação do Programa de
Mestrado em Educação da Uninove
perisse@uol.com.br

 

Pra  falar errado é preciso
saber falar errado.
(Adoniran Barbosa)

Que moça culta, a Maria Eduarda: usa ponto e vírgula!
(Mário Quintana)

Um homem de letras
Dizendo idéias
Sempre se inflama
[...]
Mas se é um sujeito
que se sujeita
Ainda é objeto
(Luiz Tatit)

 

 

1. Certa vez, li na apresentação de um livro: “Esse texto, que recebeu cuidosa revisão...”

À primeira vista, ocorreu-me que o descuidado revisor teria deixado escapar esse “cuidosa”? O curioso é que “cuidoso” existe, sim, e consta dos nossos atuais dicionários. Embora, nos nossos dias, seja palavra rara (era mais comumente empregada no séc. XIV), tem plena legitimidade. Mas como poderá o leitor menos “malicioso” descobrir que o autor da apresentação foi tão erudito e o revisor tão cuidadoso a ponto de ambos correrem o risco de serem tidos por descuidados?

Escrever é tarefa perigosa, mesmo para quem conhece as convenções da escrita e os mais sutis caminhos que levam ao “certo” ou ao “errado”.

Do ponto de vista pedagógico, perante os solecismos que se cometem em todos os tipos de textos, ainda existem uns poucos professores “gramatiqueiros” que defendem o ensino da língua como transmissão e fixação das regras. A tendência atual, porém, é bem outra, para não dizer totalmente oposta. Muitos professores põem à parte a gramática normativa, alguns por considerá-la um fardo muito pesado para colocar aos ombros dos alunos, outros porque a desconhecem.

Pensando da maneira mais “ingênua”, podemos dizer o que muitos dizem: escrever corretamente é difícil, em virtude das inúmeras regras e exceções a serem observadas, sem se falar nas mudanças que essas regras sofrem ao longo do tempo como aconteceu com muitos acentos diferenciais abolidos pela reforma ortográfica de 1971 e como vai acontecer quando se tornar lei o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (de 1990), que prevê, por exemplo, a extinção do trema, que para muitos nem nasceu e, no dizer do acadêmico Arnaldo Niskier, é um “elemento quase supérfluo”.

A propósito dessas mudanças periódicas, um exemplo pequeno mas significativo é o da palavra “álibi”, que nem sempre foi acentuada. Esta recomendação, em obediência à regra segundo a qual devemos acentuar as proparoxítonas, chegou-nos pelo Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa editado pela Academia Brasileira Letras em 1981, sob a orientação de Antônio Houaiss. O VOLP alertava para o aportuguesamento do termo latino (de largo uso nos textos jurídicos) que se grafava alibi. Hoje, quem escreve “alibi” sem acento (provavelmente por ter esquecido que se trata de proparoxítona) o máximo que poderá alegar é que estava em outro lugar (alius ubi) quando decidiram aceitar a força do uso.

O uso tem sua força, e o uso nem sempre se submete à força (abusiva?) dos gramáticos. Veja-se o caso da mesóclise. Dificilmente a encontraremos nos textos contemporâneos, influenciados pela fluidez da fala, e por sua não menos influente lei do menor esforço. Encontrá-la-emos, talvez, na produção acadêmica, ou em textos oficiais redigidos por “cuidosos” escribas (com base em modelos egrégios...). Já os brasileiros que produzem literatura e trabalham na mídia recorrerão a diferentes formas de escrever para evitar a dita cuja, ou simplesmente a ignorarão (ou ainda, eventualmente, a utilizarão para obter efeitos estéticos). Luis Fernando Veríssimo, recomendado por exigentes amantes da gramática como Eduardo Martins, é considerado um grande cronista, mesmo quando despreza a mesóclise, e escreve num trecho de uma crônica sua, no Jornal do Brasil (27/04/96): “Talvez conseguissem que suas barrigas roncassem em uníssono. Mas aí, lhes faltaria a retórica.”

2. Existe uma tensão — alguns poderão considerá-la necessária e profícua — entre o que prescrevem os cultores e guardiãs da norma culta e o que falam e escrevem os “incultos”, ou até mesmo aqueles que simplesmente escorregam de vez em quando, com maior ou menor consciência de seus pecadilhos contra os mandamentos gramaticais.

Dentro deste contexto, vê-se como função tradicional dos professores explicar que “interviu” fere a conjugação canônica do verbo “intervir”, que não se deve descobrir utilidades novas para o “aliás” e o “inclusive”, que “haviam duas pessoas na sala” e “somos em seis irmãos” são atentados ao pudor da língua, e por aí vai.

Por outro lado, os que “não sabem falar português” e “não sabem escrever corretamente” constituem, afinal de contas, a maioria não silenciosa que transforma o idioma e, em algum momento, mesmo sem querer, “vira o jogo”, obrigando os gramáticos a “evoluírem de opinião”, brilhante conceito filosófico da famosa marchinha O cordão dos puxa-sacos, de Roberto Martins e Erathóstenes Frazão. A turma da gramática “evolui de opinião” e aceita, ou pelo menos tolera (embora artificialmente), que o “povão” não fale e escreva “corretamente” em tal ou tal caso, ou que até mesmo os falantes cultos adiram ao uso comum (tido como anormal...), receosos de parecerem pedantes.

Tomemos o advérbio “alerta” que, na sua forma clássica (aprendemos com Cândido Figueiredo, Antenor Nascentes, Francisco Fernandes e Evanildo Bechara), permanece invariável: “fiquem alerta aos movimentos do atacante!” — conforme exemplifica o Dicionário Houaiss. No entanto, com que deparamos no cotidiano? Nos jornais, é comum ler manchetes como “hospitais alertas”, “ressurge febre amarela — comunidades alertas”, “os EUA continuam alertas”, empregando-se o “alerta” como adjetivo.

O VOLP registra as duas possibilidades: advérbio (“em atitude de vigilância”, “atentamente”) e adjetivo (“atento”, “vigilante”). Mas se trata aqui de uma convivência forçada. Em breve, o advérbio “alerta” tornar-se-á um arcaísmo, uma curiosidade lingüística do passado, se já não é um anacronismo aqui e agora. Hoje, as instituições mais alertas recomendam que, ao se prepararem as questões de seus concursos e provas, ninguém toque neste assunto.

A tensão entre aquilo que o gramático legisla e aquilo que o falante pratica (lembrando-se que o gramático é também falante, “usuário” do idioma, e não raramente poderemos detectar suas “incoerências”) assemelha-se ao diálogo entre o Pequeno Príncipe e o rei mandão. Num primeiro momento, o rei proíbe que o principezinho boceje, mas como o viajante explica que não pode evitá-lo, pois não dorme há um bom tempo, o monarca “evolui de opinião”: “Então eu te ordeno que bocejes. [...] Vamos, boceja! É uma ordem!”

Intimidado, o principezinho explica que, diante da obrigatoriedade do bocejo, não consegue mais bocejar, e o rei evolui novamente: “Então... então eu te ordeno ora bocejares ora...”

O rei autoritário não tolera a desobediência, mas não se torna por isso um rei irracional. Tem nítida consciência do quanto é inconveniente dar ordens que estejam acima da capacidade dos súditos. Se ordenasse que o general se transformasse em gaivota e este não obedecesse, o culpado seria o rei, evidentemente:

— Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem — ele ou eu — estaria errado?

— Vós — respondeu com firmeza o principezinho.

— Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar — replicou o rei. — A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis [1] .

3. O mesmo arrisco-me a pensar com relação à gramática. A complexidade das regras gramaticais (bela e atraente, diga-se de passagem, para quem a seu estudo se dedicar) pode desanimar aquela pessoa que, de modo assistemático, espontâneo, aprendeu a se comunicar bem, para os padrões da sua comunidade, por vezes criativamente, mas talvez não tenha motivação nem meios para, ao falar e escrever, flexionar os verbos, especialmente os irregulares, como manda o figurino, explorar todas as potencialidades das conjunções subordinativas, colocar os pronomes nos seus devidos lugares etc.

Nem de longe vamos defender aqui o pragmatismo de certos professores que, diante da angústia dos alunos (e diante da própria dificuldade que eles, professores, experimentam na hora de ensinar os meandros da gramática), recorrem ao “cortem as cabeças!” da Rainha de Copas, como aconteceu numa sala de aula de algum cursinho para pré-vestibulandos. Alguém levantou a mão e perguntou: “Mas, professor, quando é a que a gente usa o ponto-e-vírgula?” E o mestre, sem maiores cerimônias ou escrúpulos, atalhou o problema: “Não se usa mais o ponto-e-vírgula”.

O ponto-e-vírgula, felizmente ou infelizmente, ainda se usa; são muitas as razões para que seja utilizado em determinados momentos. Uma das razões mais razoáveis é indicar pausa mais forte que a da vírgula e menos que a do ponto. Contudo, é justamente numa explicação desse tipo que surge a dúvida cruel, capaz de esmagar o mais solícito dos súditos.

No corpo docente (ou padecente) dos cursinhos havia e há, porém, aqueles que desejam dar ao aluno uma explicação mais racional para o ponto-e-vírgula, e para outros muitos pontos. Dele surgiu o mais famoso professor de Língua Portuguesa de que dispomos no Brasil, Prof. Pasquale Cipro Neto.

Talvez o maior mérito do Prof. Pasquale seja reconhecer implicitamente como correta a famosa frase de Adoniran Barbosa: “pra falar errado é preciso saber falar errado”. Pasquale tem sensibilidade para discernir o que é norma culta, por um lado, e o que é vitalidade lingüística, quando se trata, por exemplo, de analisar as letras de um Chico Buarque ou de um Lobão ou de um Arnaldo Antunes, e manifestações verbais do “povão”.

Evidentemente, seu papel é separar o joio do trigo, o que significa, do ponto de vista normativo, que Pasquale tem todo o direito de puxar a brasa para a sardinha da gramática e não perdoar que alguém escreva “séquiço” ou fale “a gente vamos”, por mais que possamos descrever e compreender os processos pelos quais tenhamos este “séquiço” (note-se o cuidado do “cuidoso” escritor ao acentuar uma proparoxítona) e, no caso de “a gente vamos”, possamos entender que se trata de uma concordância do verbo com a idéia (a gente, isto é, nós, que formamos esse grupo, vamos...), em analogia com o que os clássicos mais clássicos já fizeram, como um Júlio Dinis: “muita gente há que nunca na vida sentiu os tais vagos e erráticos sintomas, a que me refiro, e que contudo amam ou amaram deveras.” (As pupilas do senhor reitor, capítulo VII).

Voltando a Pasquale, em geral repudia o joio sem xingá-lo. Também não é do seu estilo valorizar demais a terminologia gramatical, embora nos ensine o que é o quê. A sua prática de professor em cursinhos, palestras, na televisão e nas redações de jornais, lhe deu a capacidade de falar com clareza, sem a afetação típica de quem entende demais de gramática. Num capítulo de um de seus livros [2] , começa assim, ao comentar a diferença entre xeque e cheque: “Eta duplinha danada!” E em outros momentos utiliza expressões coloquiais como “cá entre nós”, “é aí que a roda pega”, “até aí, tudo bem”.

Pasquale procura ser um profissional sensato. Reconhece não caber “a um gramático castrar hábitos lingüísticos diferentes dos que prega a norma”, mas, ao mesmo tempo, é fiel ao dever de ofício e afirma “que, em certos casos, o conhecimento e o emprego da norma culta são desejáveis e imprescindíveis”.

4. Só para não perder de vista o nosso ponto-e-vírgula, Pasquale escreveu num artigo [3] :

E lá vamos nós, com a bendita vírgula a tiracolo. Terminei a coluna passada com o seguinte texto, incluído numa questão da Fuvest: “O cheque em branco que o eleitor passa ao eleito é alto demais, faz parte da condição mesma de candidato expor-se ao escrutínio público e abrir mão de uma série de prerrogativas, entre elas a privacidade”.

A primeira leitura certamente não é lisa. O leitor tem a clara impressão de que a forma verbal “faz” se refere ao “cheque em branco”. Parece tratar-se de uma enumeração relativa a esse “cheque em branco”: o cheque é alto demais, o cheque faz parte...

Não faz parte de nada. O sujeito da forma verbal “faz” é posposto, ou seja, vem depois. E qual é esse sujeito? Só pode ser aquilo que “faz parte da condição mesma de candidato”: “expor-se ao escrutínio público e abrir mão de uma série de prerrogativas, entre elas a privacidade”.

A primeira vírgula do texto é a responsável pela impressão de que haveria uma enumeração relativa ao cheque em branco. Com ela, cria-se a expectativa dessa enumeração. Para que a leitura fosse mais lisa, duas seriam as opções: ponto-e-vírgula ou ponto final. Com o ponto-e-vírgula (“O cheque em branco que o eleitor passa ao eleito é alto demais; faz parte da condição mesma de candidato expor-se...”), separar-se-iam os blocos e manter-se-ia a idéia de que esses blocos fazem parte do mesmo assunto. Com o ponto final (“O cheque em branco que o eleitor passa ao eleito é alto demais. Faz parte da condição...”), seria acentuada a autonomia entre os dois blocos (o que se refere ao cheque e o que se refere a expor-se e a abrir mão de uma série de prerrogativas).

Cá entre nós, a opção pelo ponto-e-vírgula ou pelo ponto final apenas atenuaria a idéia de enumeração, da qual ainda se sentiria um pequeno fio, dada a proximidade da forma verbal “faz”.

Melhor mesmo seria mudar a ordem dos termos do segundo bloco, ou seja, não iniciá-lo com a forma verbal “faz”. É por essas e outras que o ofício de escrever é obra sem fim.

Com direito a mesóclises, sem perder o tom coloquial, Pasquale não só demonstra o quanto é delicado usar o ponto-e-vírgula (e o melhor às vezes é esquecê-lo e tentar novas formulações), mas também como escrever constitui, de fato, uma tarefa ingente, ainda que exijamos que toda a gente cumpra à risca, sem esquecer um til, todas as leis.

Evitemos ser professores “gramatiqueiros”, mesmo porque já está demonstrado que a gramática, sozinha, não nos ensina a escrever e falar corretamente. E essa demonstração vem de longe. João Ribeiro, em 1930, no seu livro Gramática Portuguesa, escreveu: “Tenho visto que muitos alunos de Português sabem talvez analisar (análise sintática, por exemplo), mas não sabem ler, nem entender o que lêem, e ainda menos escrever corretamente, sem falar aqui dos que ignoram a história da língua”.

Um professor que queira ensinar gramática (e dela não podemos nos livrar, como não nos livramos de um guia de ruas ou de uma bula de remédio), uma vez que os alunos continuam necessitando comprovar sua competência gramatical em vestibulares, concursos e nas mais variadas provas de seleção, terá, a meu ver, que abandonar a idéia e a prática de um ensino que se traduz em enumerar regras, oferecer dicas, corrigir aqui e ali.

Diria mais. Essa matéria que ninguém aprende — a gramática — já torturou muitos de nós sem necessidade, e praticamente sem resultados. Ou melhor, os professores que torturaram os alunos com o látego da análise sintática ou com a palmatória da classificação morfológica obtiveram resultados muito magros.

Os melhores alunos de gramática, ou serão sempre uns poucos vocacionados (sempre existirão gramáticos, como existem especialistas em formigas), ou serão aqueles alunos que “gravam” as regras para uso imediato e as “apagam” da memória depois de terem passado no vestibular ou em algum concurso, ou serão alunos que lêem com freqüência, lêem bons livros, livros bem escritos (no caso de autores estrangeiros, livros bem traduzidos), e, como que por osmose, aprenderam a conjugar verbos, não tropeçam na pontuação, têm um bom desempenho ortográfico, empregam a crase acertadamente, mesmo que não saibam explicar, tecnicamente, o porquê disso ou daquilo.

5. Para escrever e falar com eficácia e beleza, seguindo a intuição de Adoniran Barbosa, precisamos saber. Saber saboroso, de quem assimilou (adquiriu similaridade com) aquilo que torna um texto agradável ao leitor e um discurso agradável ao ouvinte.

Uma boa aula de gramática será aquela em que o sujeito não se torna objeto, em que nós não precisamos nos sujeitar aos bons conselhos (e também aos caprichos) da gramática para comunicar, com toda a riqueza expressiva do idioma, nossas idéias e sentimentos.

“Supor” — nas palavras radicais do lingüista (usemos o trema enquanto nos for permitido...) Mike Dillinger — “que descrever palavras e frases ajuda o aluno a se comunicar é como pensar que descrever as partes da bicicleta ajuda a criança a andar de bicicleta. É uma posição insustentável. O ensino da gramática é irrelevante. [4]

Na aula de gramática, os alunos têm de fugir à inércia legalista. Seja em velocípedes, bicicletas, carros ou carretas, percorrendo os caminhos e atalhos do idioma, caindo e levantando, brincando e aprendendo, devem se tornar, com a ajuda de todos os professores (mesmo os que não são professores de Língua Portuguesa, Redação ou Comunicação e Expressão), conforme o discurso típico dos PCN, escritores e leitores capazes de compreender e utilizar a linguagem com diversas finalidades, motivados a continuar a aprender e investir na sua própria educação.



[1] Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe, São Paulo, Círculo do Livro, s/d., págs. 37-8.

[2] Inculta & bela, São Paulo, Publifolha, 1999.

[3] Em: http://www1.uol.com.br/vestibuol/pasquale/pas2110.htm (acessado em 8 de março de 2004).

[4] O ensino gramatical: uma autópsia. Em: SEMANA DE ESTUDOS DE LÍNGUA PORTUGUESA, I, 1993. Belo Horizonte, Departamento de Letras Vernáculas, Faculdade de Letras da UFMG, 1995, v. I, pág. 38.