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Sem-teto, sem pertencimento ou
como a elite brasileira produziu
ideologicamente a grande tribo
dos excluídos brasileiros

 

Carlos Bauer
Doutor em História pela USP
Professor do Centro Universitário Nove de Julho – Uninove

 

A sociedade brasileira experimenta hoje um processo de maturação o que expõe, de forma acentuada, quando não dramática, suas principais contradições. Dentre elas, as insistentes e reiteradas tentativas para esconder os excluídos, abafar os ex-escravos e exilá-los nos morros e favelas, submeter ao silêncio os homens brancos e pobres, prender os sem-terra e os sem-teto, transformando todos em personagens que precisam ser reeducados, quando não os reduzindo à condição de marginais e indigentes que precisam ser assistidos pelos serviços se segurança pública e social. Mas, eles estão em cena, não se deixando estigmatizar e reivindicando um lugar na história, suportando as mais sórdidas condições de existência, os limites impensados da miséria e dizendo que, também, fazem parte da nação.

Para melhor entender como se produziu a exclusão social no Brasil, veja como suas elites conservadoras e autoritárias pensaram a idéia de nação.  

Desde há muito tempo, vem sendo discutido se existe ou não uma identidade brasileira. Fora dos discursos triunfalistas, próprios das datas comemorativas e dos percalços da xenofobia, as repostas são principalmente negativas.

As formas pelas quais as elites projetaram e implementaram a construção da identidade nacional são, numa perspetiva histórica, uns obstáculos à construção de uma identidade comum não excludente, não marcada pela segregação e pelo reconhecimento afirmativo do multiculturalismo presente em nosso processo societário.

De pronto três questões precisam ser debatidas:

a primeira, a nação brasileira não é tão antiga quanto à chegada dos primeiros colonizadores europeus;

a segunda, em nosso país, a possibilidade da identidade nacional resulta de um esforço consciente e militante;

a terceira, principalmente desde os meados do século XIX, foram forjadas as grandes e principais ideologias nacionais.

De fato, a idéia de se produzir uma nação moderna e higienizada no Brasil remonta ao séc. XIX. Para seus ideólogos, sempre conservadores e positivistas, a nação brasileira aparece como uma grande comunidade. Excluindo-se os escravos, os homens brancos e pobres e os índios que estão permanentemente sendo exterminados, ela é concebida dentro de uma idéia de fraternidade de nascimento. Esta nova idéia concebe as pessoas não como parte de uma classe, ou religião, mas como parte de uma nação.

Futuro e passado colonial aqui, necessariamente, se cruzam. Para passar do Brasil dos engenhos e dos senhores escravocratas para um instante de identidade comum, quantos problemas não seriam necessários superar?

Por exemplo, até agora – e este agora é marcado pela transição do século XX para o XXI e pelo nascimento de uma nova era – não existe nenhum elo comum sólido entre um sem-terra e um grande proprietário responsável pelo avanço da agro-indústria. As diferenças são imensas e, talvez, impossíveis de serem superadas. Pergunta-se: quais são os argumentos que possam convencê-los que eles – sem-terra e latifundiários – fazem parte da mesma comunidade? Como convencer os habitantes de regiões como Corumbiara e Eldorado dos Carajás, que todos eles – latifundiários e sem-terra – fazem parte da mesma comunidade?

Entre nossos românticos nacionalistas existem aqueles que, partindo de uma concepção francesa, comungam da perspectiva que o conceito de nação nasce de uma vontade política a que os indivíduos aderem livremente.

Há a concepção alemã, com muito mais influência sobre nós, afeitos ao formalismo jurídico, que é naturalista e nesta predomina o componente étnico na formação da nação.

Estas oposições serão bastante vulgarizadas no Brasil, pelo menos, desde os primeiros instantes de sua independência e, no transcurso das ações de nossas elites políticas, econômicas e culturais e deverão aparecer articulados.

No golpe militar, que forjou a República, predominaram politicamente as perspectivas fundantes da nação. A primeira lição que a escola republicana ensinou às crianças foi o papel dos seus heróis, em particular, aqueles que assumiram patentes militares ou se notabilizaram por ações próprias deste segmento. Neste contexto é interessante notar, entre outras coisas, que:

A escola foi no imaginário republicano, signo da instauração da nova ordem, arma para efetuar o progresso na sociedade excludente que se estruturou nas malhas da opção imigrantista, nos fins do século XIX e início deste, a escola foi, entretanto, facultada a poucos. [1]

Assim, desde há muito tempo ou, para ser mais preciso, desde a primeira hora da república, houve um grande trabalho de construção da identidade nacional. Uma tentativa consciente de realização de uma ação pedagógica que visava disseminar a idéia de que as pessoas pertenciam a uma comunidade.

Hoje, quando observamos o Brasil, encontramos a presença de alguns elementos ideológicos comuns:

1º valores – ou mitos – fundadores;

2º cada unidade da federação é pensada como aquela que constrói uma história continua de lutas pela integridade, sobrevivência e identidade nacional;

3º a história oficial também registra grandes nomes e inúmeros heróis nacionais;

4º as grandes obras e monumentos históricos; o folclore e as paisagens típicas e até mesmo a fauna e a flora são apresentados como constituintes da nação;

-   5º a nação é apresentada como aquela que reúne elementos pitorescos: culinária, animais, danças e músicas típicas e uma grande variedade de tipos humanos.

Numa das mais importantes instituições, a escola, responsável pela reprodução social, essa lista de elementos é regularmente apresentada para identificar para identificar à nação brasileira. Fora da escola e dos livros didáticos, basta olhar uma cédula e lá estará presente este ou aquele item dos que foram acima listados.

No Brasil, pelo menos desde o século XIX, foi realizado um trabalho imenso por intelectuais, artistas e muitos outros na construção da identidade nacional. Houve um grande intercâmbio entre todas as regiões e os autores ditos regionalistas firmaram valores nacionalistas o que levou a um processo de padronização desta identidade; o que, por sua vez, foi acompanhado pelo intenso e acelerado processo de urbanização da vida social brasileira.

Na literatura, não exclusivamente, mas principalmente, estes elementos estão presentes na conformação da nação, tornando-os inteligíveis e aceitos pela população – a letrada, é claro! Na perspectiva literária, a nação funda-se no universalismo e os personagens que habitam suas páginas são os grandes heróis comprometidos com a disseminação dos valores que tornem possível a sua consolidação. Em José de Alencar, por exemplo, o índio é encarado como uma musa viva da nação.

Na historiografia, hegemonizada pelo pensamento positivista, o esforço é o de mostrar os vestígios das grandes realizações que nos levam, inexoravelmente, ao nascimento, a gênese do próprio povo. Este paradigma incentiva a uma coleta dos vestígios da cultura popular. Não serão poucos os arautos do nacionalismo que irão incentivar a uma coleta dos valores da cultura popular. Chega-se mesmo a afirmar que a literatura popular deve traduzir a alma nacional.

Um outro elemento importante é a construção da língua. A idéia de uma língua nacional pressupõe o idioma como um elemento de confraternização entre todos os que compõem a nação. Agora o idioma uniformiza e a unificação lingüistica comparece como uma obrigação das instituições escolares junto aos cidadãos, com a perspectiva de sufocar os múltiplos assassinatos que, cotidianamente, se cometem contra a língua pátria. Em muitos estados do país foi necessária uma verdadeira batalha, no dia a dia das escolas de 1º, 2º e 3º graus, para unificar a língua portuguesa. Em muitos casos, ensinar a língua portuguesa e outros fundamentos aos educandos pressupõe o estabelecimento de um ousado projeto governamental. Vejamos como, nos idos de 1826, a elite brasileira projeta a educação dos seus filhos:

Nas escolas de 1º grau, se compreenderão a arte de escrever e de ler, os princípios fundamentais de aritmética, e os conhecimentos morais, físicos e econômicos, indispensáveis em todas as circunstâncias e empregos (...) Nas escolas de 2º grau, se compreenderão os conhecimentos das ciências morais e econômicas(...) Nas escolas de 3º grau se compreenderão: a análise completa das faculdades e operações do entendimento; a gramática geral ou a arte de falar (sic); a retórica ou a arte de escrever (sic); o estudo das línguas mortas e os das vivas; o conhecimento dos diversos modos da sua escritura, ou seja em diplomas ou em moedas e inscrições lapidares; a hermenêutica ou a arte de distinguir os monumentos e diplomas genuínos dos apócrifos; e finalmente a geografia antiga e moderna, a cronologia e a história filosófica, tanto civil como literária. [2]  

Foi preciso, também, escrever a história da nação. Evidentemente, trata-se de uma narrativa mormente de corte positivista e liberal, uma narrativa centrada em grandes feitos militares, em grandes acontecimentos: a Guerra do Paraguai, por exemplo. Está em curso a construção de um ser coletivo e nacional. Essa história da nação precisa ser vulgarizada. A literatura, o teatro e até mesmo postais e utensílios domésticos deverão se prestar a tal intento.

Com a idéia de nação surge também o conceito de patrimônio histórico. Uma obra literária, do chamado romantismo brasileiro, pode ter como personagem principal a cidade de Vila Rica ou até mesmo a Ilha de Paquetá.

Nestes e outros casos, os escritores procuram nos ensinar que a nação e sua história e a de seu povo é a história dos seus monumentos e patrimônio arquitetônico. Em toda a nação, nas mais variadas regiões, houve um grande trabalho de convencimento de que os prédios tinham um papel de preservação da história nacional e dos feitos dos seus ancestrais. A partir da preservação do patrimônio histórico e artístico surge a idéia de que a nação tem sua própria história.

Paralelamente à idéia da construção da identidade cultural, houve a necessidade da construção do território nacional. Aqui, mais uma vez, veremos os feitos militares e a argúcia diplomática de nossas elites serem vangloriados.

No Brasil, outro elemento importante da construção da identidade nacional e a produção de um folclore  que, pretensamente, pertence à ancestralidade do nosso povo. Por todo o país, os museus serão largamente disseminados, como expressão de um gesto político. O caso mais notório, mas não único, é o do Museu do Ipiranga, na cidade de São Paulo, construído, exatamente, onde a independência foi decretada.

Uma nação digna, como a brasileira, não pode apresentar-se como imperialista e agressora dos seus vizinhos. Ela não pode tomar o território de outra nação. Quando ela luta, luta pela defesa ou pela retomada do seu território... O problema é que o território brasileiro cresceu e as agressões foram feitas.

É interessante notar que as elites nacionais justificam o seu futuro industrial reivindicando um passado agrário. No Brasil, o fato de mudar, dando a aparência de que nada mudou, é o que permite a consolidação – conservadora e autoritária – do Estado Nacional.

No século XX, os diferentes governos autoritários souberam trabalhar a idéia de um homem novo e moderno, com vínculos com os seus ancestrais do mundo rural.

A nação foi pensada como uma fraternidade cristã, uma comunidade democrática (econômica, política e racial) e sem contradições. Este posicionamento ideológico não foi capaz de mascarar a realidade e, mesmo submetidos a mais profunda e sórdida exclusão, surgiram diversificados grupos concorrendo com as elites na construção dos valores nacionais.

Na segunda metade do século XX, toda a história do Brasil transcorreu em torno desta dicotomia. Não faz mais do que duas ou três décadas e muitos intelectuais acreditavam que os valores do nacionalismo, que a elite brasileira produziu com base na exclusão, estavam consolidados e que, quaisquer outras perspectivas, nem mesmo existiam.

Com o desmoronamento do regime militar, instaurado de forma golpista e pela força em 1964, foi necessário reorganizar o pensamento, foi necessário reorganizar a vida social com base em novos protagonistas que entraram em cena e que, com suas lutas e perspectivas de organização política, rearticularam a sociedade civil. Antigos ativistas políticos e sindicais, perseguidos nos idos das décadas de 1960 e 1970, transformavam-se em ocupantes privilegiados das principais instituições nacionais.

Este quadro é novo e povoado de contradições. Isto nos permite dizer que a construção de uma identidade nacional encontra-se totalmente em aberto. A elite brasileira, formada em torno de valores autoritários e conservadores, produziram uma nação povoada por sem terras, sem tetos, sem renda, sem cultura e educação, sem trabalho e esperança. Como vislumbrar que um homem que não tem nem mesmo um teto que lhe possa abrigar contra intempéries que a natureza produz, aspire pertencer a uma nação?

A cidadania não existe para milhões de brasileiros, excluído das mais elementares condições de vida e submetidos as mais sórdidas das explorações. Logo, não se pode falar em identidade nacional.

Notas:

1 CARVALHO, Marta Maria Chagas de. A escola e a república. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 7.

2 ANNAES do Parlamento Brasileiro: Câmara dos Deputados, 1826, tomo II, sessão de 9 de junho de 1826, título IV, art. 1º, p. 152.



[1] CARVALHO, Marta  Maria Chagas de. A escola e a república. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 7.

[2] Annaes do Parlamento Brasileiro: Camara dos Deputados, 1826, tomo II, sessão de 9 de junho de 1826, título IV, art. 1º, p. 152.