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Alessandra Sterzi
Professora da FASM
Mestranda em Ciências
da Religião, PUC-SP
A tradição escolar do ensino médio e superior enfatiza o acúmulo de conhecimentos tendo em vista, freqüentemente, o vestibular ou diretamente o mercado de trabalho, o que equivale a dizer que o estudo visa, unicamente, a um fim pragmático, produtivo. Seja para um mercado menos sofisticado ou mais declaradamente tecnológico, o ensino médio parece conceber o homem apenas de forma parcial, desligado de qualquer necessidade de transcendência ou busca de razões últimas e exaustivas para a sua existência e da realidade que o cerca. Seguindo essa mesma linha, a universidade parece apenas desenvolver a missão de explorar tecnológica e cientificamente a realidade, levando em consideração a necessidade de especialização solicitada pelo mercado diante de um ou outro objeto em particular.
A ciência é, de fato, fundamental para nos ajudar a descobrir e explicar o mundo que nos cerca e é através dela que o homem segue em direção ao conheci-mento. A estes avanços, que muitas vezes têm uma aplicação prática no cotidiano e que cada vez mais tomam o tempo do homem, o filósofo alemão contemporâneo Josef Pieper denomina de ‘mundo do trabalho’: “é o mundo do dia de trabalho, o mundo da utilidade, do oportunismo, da produtividade, do exercício de uma função; é o mundo das necessidades e do produto, o mundo da fome e do modo de saciá-la. (...) é o mundo do trabalho na medida em que trabalho significa o mesmo que atividade útil, a qual tem o caráter de atividade e esforço ao mesmo tempo”. (Pieper, 1981, p.3).
Neste sentido, vemos que os cursos superiores oferecidos estão se especializando cada vez mais, preocupados em oferecer aos alunos um embasamento teórico-prático atualizado para formar bons profissionais. E, para o estudante universitário, é cada vez mais gritante a necessidade de ter uma formação não somente na área escolhida, mas também do conhecimento de línguas estrangeiras, de informática, ou até mesmo da tão falada “inteligência emocional”. O aluno é coberto de tarefas e afazeres, sentido-se compelido a correr contra o tempo, já que o ritmo do mundo globalizado é cada vez mais frenético.
Entretanto, não é só do que pode ser explicado satisfatoriamente e aplicado utilitariamente que o mundo é feito. É muito bom saber que a medicina, a cada dia, conhece mais sobre o funcionamento do corpo humano; que temos remédios e tratamentos mais eficazes; que uma política econômica sólida nos coloca em menor grau de risco diante das crises mundiais; e que a Internet nos oferece vários serviços e assim ganhamos tempo para nos dedicarmos a outras atividades. Esse “mundo das utilidades”, porém, não abrange a totalidade do real. Para o homem, não basta conhecer a técnica, o “como”; ele também precisa conhecer o significado das coisas, seu “porquê”.
Para a compreensão da totalidade do real não é suficiente a consideração do aspecto utilitário. Para tanto, a filosofia, a religião e a arte são fundamentais, pois favorecem uma abertura para o ser e para o mundo. Elas nos remetem a uma dimensão essencial da existência que é, o que Pieper denomina de “in-utilidade”: “A Filosofia é ‘in-útil’, no sentido de ausência de utilidade e de aplicação imediata (...). A Filosofia não se deixa usar, não é utilizável para fins que estão fora dela mesma, pois ela é o seu próprio fim”. Continuando, Pieper comenta: “Não se trata de um saber ‘útil’, mas de um saber ‘livre’. Essa ‘liberdade’ significa que a Filosofia não tira sua legitimidade da utilidade ou do emprego que dela se possa fazer, nem da função social nem da referência à ‘utilidade comum’”. (Pieper, 1981, p.9-10).
O que Pieper diz acerca da filosofia é também aplicável às artes e às “artes”: “Também é esse o sentido da ‘liberdade’ das ‘artes liberales’, em oposição às ‘artes serviles’, artes servis, as quais, como diz S.Tomás, ‘estão ordenadas para uma utilidade que se alcança pela atividade’”. (Pieper, 1981, p.10). No mesmo livro lemos: “Ocorre o mesmo com a prece: ‘Nós Vos louvamos, Senhor, nós Vos glorificamos, nós Vos damos graças por Vossa imensa glória’. Como pode isto ser compreendido pelas categorias da utilidade racional e da organização utilitária?” (Pieper, 1981, p.6).
A filosofia, a arte e a religião fazem parte do grupo das atitudes fundamentais do ser humano, pois a ele mostram as raízes da existência, vislumbram a fronteira do ser, levam a perceber não apenas o imanente, mas a se dar conta também do transcendente. O homem de hoje é chamado a responder às exigências do mercado de trabalho, ao que é útil. Afinal, é isso que traz retorno às empresas e dá fôlego à visão consumista da vida. Percebe-se, então que o homem é estimulado a conhecer aquele tipo de realidade que pode ser medido, que é mensurável, um objeto em particular, que pode ser aplicado no cotidiano. Torna-se, então, um especialista em sua área, e não lhe sobra mais tempo nem espaço para conhecer a si mesmo.
Entretanto, o homem tem como dado emergente em seu comportamento – o que, como tendência, atinge toda a sua atividade – a interrogação sobre tudo o que realiza: “Que sentido tem tudo?” Como escreve o teólogo italiano Luigi Giussani: “O fator religioso representa a natureza do nosso eu enquanto se exprime em certas perguntas: ‘Qual é o significado último da existência? Por que existem a dor, a morte? Por que, no fundo, vale a pena viver?’ Ou, a partir de outro ponto de vista: ‘De que e para que é feita a realidade?’ O senso religioso coloca-se dentro da realidade do nosso ‘eu’ ao nível dessas perguntas: coincide com aquele compromisso radical do nosso eu com a vida, que se mostra nessas perguntas”. (Giussani, 2000, p.71). O senso religioso surge em nossa consciência através de perguntas nascidas no encontro com a filosofia, a arte e toda a realidade circundante. Ele proporciona ao homem uma abertura na busca de uma resposta totalizante.
Essas questões não suscetíveis de respostas definitivas margeiam a mente humana. A preocupação excessiva com métodos específicos e aspectos parciais relativos a cada área profissional fragmentam a visão do aluno em sua busca de compreensão da totalidade do real. O ser do homem é negligenciado em detrimento de uma evolução funcional. O homem torna-se como que “compartimentalizado”, sem referencial. Não sabe quem de fato é, nem de que é feito. Torna-se, dessa forma, incapaz de uma crítica pessoal diante da vida.
Há, portanto, a necessidade de um olhar atento, diante de todos os fatores que compõem a vida do homem, se este busca o amadurecimento. “Estar comprometido com a vida não significa um compromisso exasperado com um ou outro de seus aspectos: o compromisso com a vida nunca é parcial. O compromisso com um ou outro aspecto da vida, se não for vivido como derivação de um compromisso global com a própria vida, correrá o risco de tornar-se uma parcialidade desequilibrante, uma fixação ou uma histeria”. (Giussani, 2000, p.60). O compromisso com a vida, na sua totalidade, faz com que o homem sinta curiosidade pelo mundo e por si mesmo, e traz à tona uma urgência ontológica de entender o todo. É papel fundamental da Universidade fomentar no aluno a busca por fundamentos sólidos, através de uma formação que leve em consideração toda a sua realidade existencial.
Faz-se necessário aqui, sublinharmos a característica básica do “ser homem”, aquilo que o distingue do resto da realidade. “Para o pensamento grego clássico, o homem é uma unidade entre o corpo e a alma, o espírito e a matéria, as coisas e as idéias. O homem é o ser onde estes dois universos, ou estas duas dimensões da realidade, se acham presentes. Isto permite, ao mesmo tempo, a percepção sensível da realidade material e a apreensão inteligível do conceito. Por isso, o homem é aquele que pode conhecer a totalidade do real e encontrar-lhe o significado mais radical”, esclarece o pesquisador paulista Jair Militão. (da Silva, 1996, p.80). Nas palavras de Giussani, “O homem é aquele nível da natureza em que ela se pergunta: ‘Por que existo?’ O homem é aquela minúscula partícula que exige um significado, uma razão, a razão”. (Giussani, 2000, p. 45).
O homem é, pois, um ser que quer conhecer, compreender a existência das coisas. Não podemos falar em educação sem considerar o homem singular, sem nos perguntarmos sobre essa sua sede de significado e sobre o nexo existente entre aquele aspecto específico de uma profissão e a pessoa que vai exercê-la. Ou seja, não há co-mo negligenciar, no processo educacional, a busca de ligação entre o particular e o todo. Essa busca de significado, origem e sentido para as coisas não é de forma alguma incompatível com o desenvolvimento e aperfeiçoamento tecnológico. Afinal, é o desejo de conhecer cada vez mais o que o cerca que possibilita à ciência e à tecno-logia continuarem avançando, com benefício direto para as suas utilidades práticas.
A busca de um sentido é, pois, tão importante para o homem quanto a sua realização profissional e afetiva. Essa realização, aliás, se dá tanto mais facilmente quanto mais a pessoa sabe quem é e para que foi feita. Luigi Giussani afirma: “a personalidade do homem adquire densidade e consistência exatamente como exigência, intuição, percepção e afirmação do significado”. (Giussani, 2000, p.117). A afirmação do significado faz o nexo entre a pessoa e o mundo mas, para que isso ocorra, o homem não pode se contentar em conhecer parcialmente a realidade, pois o particular não é suficiente para explicar como as coisas existem. Essas indagações são importantes para o homem que, aparentemente, se satisfaz com o parcial mas que, na verdade, quer conhecer a realidade como um todo.
No entanto, percebe-se que essa aparente satisfação com o mundo do trabalho apresenta uma tendência totalizante, uma pretensão de cada vez mais “dirigir” toda a existência humana, sufocando – inclusive, e principalmente na educação – o despertar das questões fundamentais e essenciais do homem. Por isso, a pessoa deve estar à frente de qualquer estratégia de ensino. Trazer à tona o ser do homem é dar-lhe a oportu-nidade de uma formação que englobe a totalidade dos fatores que compõem a si próprio e à realidade, possibilitando o nexo entre o sentido da vida e o seu objeto de estudo.
Nesse sentido, é tarefa do ensino superior resgatar o valor do termo “universidade” procurando realizar, como diz J. Pieper, “a mesma concepção fundamental que se exprime sob o nome de universitas: uma instituição que, de modo específico e singular, está relacionada com a totalidade do real, com o mundo como um todo”. (Pieper, 1989, p.23). “Essa experiência [a universidade] tem por objeto, nada menos, a natureza do espírito humano. Para formulá-la, pode-se dizer o seguinte: o espírito, por sua própria essência, refere-se ao todo da realidade; não é, no fundo, senão aquela capacidade de relacionamento que aponta para a universalidade do real; está capacitado e disposto a entrar em contato (e a manter este contato) com o ‘em si’ de tudo que é”. (Pieper, 1989, p.24). É dessa forma, segundo Giussani, que o senso religioso define o ‘eu’: “o lugar da natureza onde é afirmado o significado do todo”. (Giussani, 2000, p.74). O senso religioso é, pois, o ímpeto que move o homem rumo à busca da exigência primordial da razão humana: a do significado.
No ensino universitário em geral faz-se necessário resgatar e aprofundar a concepção de homem, do espírito humano, do senso religioso que define o “ser homem”. Interessa observar que, nos cursos vinculados à criação, em particular nos cursos de artes, tal concepção se torna urgente. Talvez porque nesses cursos o produto - quadros, músicas etc. - não esteja relacionado na categoria de bens diretamente úteis.
Torna-se fundamental a pergunta sobre as razões da arte: para que servem os girassóis de van Gogh ou uma sinfonia de Beethoven? A música, as artes plásticas, a poesia, fazem parte do mundo, mas não podemos dizer que as artes têm uma função utilitária, pois não estão ligadas diretamente à sobrevivência. Para que serve tocar um instrumento, desenhar, ou pintar? Ou mesmo, apreciar um quadro ou assistir a uma peça de teatro? A arte ajuda a revelar quem o homem é. Segundo a poetisa mineira contemporânea Adélia Prado, “a arte não tem função utilitária, não tem função de serviço (...). A arte é expressiva e diante daquilo eu tenho uma atitude como ser humano (...). O valor da arte é a humanização do homem”. (Prado in Canalle, 1996). Assim, o encontro da arte com o homem propicia a este um olhar para si mesmo, pois possibilita que ali a própria humanidade seja revelada.
A arte não se enquadra no mundo da utilidade, não é controlável por uma produção em série, como uma equipe de engenheiros de uma fábrica de automóveis, buscando desenvolver um melhor desempenho em seus carros. Tampouco se parece com uma equipe de biólogos ou médicos que têm no seu exercício o objetivo de pesquisar remédios para a cura de uma determinada doença. A arte não é um veículo “para” se chegar a algum lugar que não seja ela mesma, pois tem seu fim em si mesma, não pode ser transformada em um produto que sirva a uma outra finalidade.
A arte tem como fim a expressão do homem e seu mundo, como afirma A.Prado: “A linguagem poética desvela o ser e me dá ele na sua palpitação íntima, na sua transcendência (...). É a vida humana apresentada para mim, porque a arte é espelho”. (Prado in Massimi, 1999, p.20). A universidade, como instituição educadora, deve estar atenta para uma formação integral do aluno, que possa propiciar a ele uma abertura para si e para a realidade. Essa formação integral deve estar presente de uma forma ainda mais especial nas faculdades de artes, uma vez que estas – assim como a filosofia e a religião – têm papel primordial na identificação das características fundamentais do homem.
Bibliografia
Canalle, Cecília. Fundamentos filosóficos da poética de Adélia Prado: subsídios antropológicos para uma filosofia da educação, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 1996.
Giussani, Luigi. O Senso Religioso, São Paulo, Nova Fronteira, 2000.
Massimi, Marina (org.). Diante do Mistério: psicologia e senso religioso, São Paulo, Loyola, 1999.
Pieper, Josef. O que é filosofar? O que é acadêmico?, São Paulo, EPU, 1981
------------------ A Chance da universidade, São Paulo, Apel, 1989.
Silva, Jair Militão. A autonomia da escola pública, 4a ed., Campinas, Papirus, 2000.